Sangrar até secar

 Cortar uma veia para respirar mais livremente, como certos cavalos (Goethe em Werther). Respirar melhor quando a dama não nos deseja e nos sentimos outra vez, uma última vez  (juramos que é a última), abandonados. Como  no ano em que, entre promessas de um futuro esplendoroso, os progenitores se despediram para nunca mais voltarem. Como no ano em que começaram os abandonos. Para o ano que vem estamos juntos e depois felizes para sempre. Cortar as veias. O quarto escuro. Onde estão os teus casacos e a tua roupa suja empilhada?  Estancar o sofrimento. Os sapatos em que tropeçava, as montanhas de sapatos em que tropeçava, onde estão? Parar de somar dores. A felicidade e os sorrisos de outrora transformaram-se em dores. O amor que sinto por ti é uma dor. Hoje estás aqui e amanhã será a última vez. Nunca mais te vejo, restam fotografias e outras quinquilharias, como frascos de perfume em que te procuro.  Rastejo nestes tacos de madeira mal envernizados de que nos queixávamos, encontro cabelos, longos cabelos teus que guardo na carteira para nunca, mas nunca deixar de te ter. O que serão estas borboletas no estômago se não dores? Isto é o fim do mundo. Deus não dizia, não li na Bíblia que o fim do mundo teria lugar neste quarto vazio às duas da manhã. Não era suposto acabar assim. “Virar-se-ia para o tronco da árvore e desataria a chorar”, leio num livro de Kundera. Chorar por quem? Por mim, pelo amor que sinto por ti. Agarramo-nos a árvores e, egoístas, pedimos: mata-me com um tiro. Salvaste-me de mim mesmo, salvaste-me para me atirares para um buraco ainda mais fundo do que aquele em que estava quando me conheceste. Precisavas de Londres e de Nova Iorque e eu, travão, aparecia-te no sono como uma figura vilanesca que te atirava ao tapete. Não estive à altura dos teus sonhos, nem dos meus, quem é que está à altura do que quer que seja com esta casa vazia? Também aspirava a levar uma vida boa num país civilizado, talvez a dar aulas ou a escrever. Talvez a descascar batatas. Queria ir contigo para Boston.  Não me escreves. Foi ontem, foi hoje, quanto tempo se passou desde a última vez que te vi? Dois anos, uma hora, o desespero bate com a mesma intensidade. O telefone toca, é do banco, do não sei quantos card. O telefone toca outra vez, é da companhia telefónica. O telefone toca, não és tu. Certo como ser noite, sempre noite no meu quarto, é que eu e tu não nos voltaremos a ver. Mostro o meu desprezo pelo mundo morrendo porcamente. Pinto o teu nome a sangue na parede do quarto e no meu peito e no fémur e no chão e espalho gasolina e com um fósforo respiro mais livremente, corro sem me cansar.