Espadas de aço fino

Francis Bacon 'Study for Portrait II (after the Life Mask of William Blake)', 1955

Francis Bacon 'Study for Portrait II (after the Life Mask of William Blake)', 1955

Nunca a horas. Sem dinheiro para apanhar um táxi. Os autocarros atrasados. Mais um sermão do psiquiatra. O senhor é uma criança, cumprir compromissos não é consigo, o que é feito dos duzentos euros de dízima? Um calhau no meio do caminho e os olhos pregados ao relógio parado e a criatura afocinhando no alcatrão, entrando na clínica a escorrer sangue do nariz. Pálida de espanto, a recepcionista abriu a boca mas não falou. Um homem ensanguentado perguntava-lhe pelo doutor, se já tinha chegado, se faltava muito para a consulta, se a consulta tinha sido adiada. A boca da senhora aberta de admiração. Um homem coberto de sangue. A criatura enfiou a língua para dentro da boca aberta da recepcionista e depois de ser mordida sentou-se no chão e perguntou pelo doutor. Que estava desesperado, que os medicamentos não faziam efeito, que as obsessões tinham regressado. Que não saberia exprimir-se de maneira conveniente. Que só o doutor o ouvia.  Com os lábios manchados de sangue, a recepcionista abriu a porta do consultório e afirmou entre, que Zeus aguarda-o vai para meia-hora. Zeus esperava impacientemente, chupando um cigarro maior do que uma caneta e tremendo da perna, hipereufemismo, provocando terremotos mediante patadas na mesa. A criatura ajoelhou-se, colou a testa aos sapatos do doutor e suplicou ajude-me, tentei matar-me ontem à noite, a mulher saiu de casa e levou os miúdos e as vozes dentro de mim. O doutor não quis ajudar logo, disse eu sou Zeus e não nasci para esperar, nem para mendigar, lamba-me os sapatos e talvez a partir daí possamos dar início a um diálogo, digamos, profícuo. A criatura lambeu e mordeu o cachucho do doutor quando este lhe esticou o anelar. O que lhe aconteceu à fronha?, perguntou o doutor. Caí, não tive tempo de me limpar, respondeu a criatura. O doutor pediu-lhe, não pediu, Zeus não pede, ordenou que explorasse melhor esse assunto da mulher e dos filhos. A criatura repetiu que a mulher tinha desaparecido com os miúdos. Qual mulher? A minha. Zeus puxava a criatura para os factos: você não tem mulher, a sua falecida esposa enfiou-se com os miúdos numa fogueira há uma vida, não é assim? É, é, doutor, é assim, mas sinto como se fosse agora. Uma dor profunda que escavaca como uma picareta. O doutor prosseguiu: e se lhe disser que nunca teve mulher? A criatura acreditava, Zeus não se enganava. Altere-me a medicação doutor. A criatura desesperançada. Receite-me mais comprimidos, injecte-me mais daquele líquido. Ontem tentei matar-me com uma faca. A criatura acordara de madrugada, dirigira-se à cozinha e espetara uma faca no ombro. Esperava morrer com uma faca no ombro? A criatura pediu licença para se explicar melhor: não me tentei matar, doutor, tentei substituir uma dor por outra, substituir a saudade ou amor ou paixão, ou o que raio lhe chamam as gentes normais, por uma dor física, substituir uma dor por outra. Zeus de cigarro na boca. Amor?, perguntou.