Com touca na cabeça atravessando a tempestade

Conjuntivite, decretara o médico de família sem levantar os olhos do papel no qual gatafunhava a palavra colírio. Uma conjuntivite apanhada no metro. Uma cegueira no olho esquerdo acompanhada de vermelhidão e coceira. Por causa de uma velha perua que tropeçara e se atirara de boca contra a fuça do transeunte. Eis um malefício de perfumes caros e intensos cuja fragrância faça lembrar urina de gato: perturbações na visão. Chanel nº5, veneno. Para a próxima, mal sinta as narinas a tremer, fuja, recomendara o médico, corra para longe, Chanel nº5 em pescoço de velha é funesto. Médico conselheiro, excelso conselheiro. Lamentáveis as acusações de pedofilia que o afastariam do convívio com os pacientes. Jim Morrisson do Calvário lamentava a perda do doutor e esmurrava o saco de boxe plantado no meio da sala de jantar, ignorando a berraria da mamã, que o chamava para jantar, que previa que, com tanto estoiro, qualquer dia o tecto ruiria. Jim ou Jime ou Jimi, dependendo do papel social que encarnasse, perdia-se em delírios vários, tais como apaixonar-se por Márcia Felácio, roqueira/personagem de romance B da autoria do falecido Caio Fernando Abreu. Que cara teria Márcia Felácio, vocalista das Vaginas Dentadas? A mãe, mamã, que mãe nunca deixa de ser mamã para rapaz sempre imberbe em termos sentimentais, irrompia de colher de pau na sala, ameaçando parti-la no rabiosque do rapaz se este não se sentasse na cozinha a limpar a dose de bacalhau com batatas tão esmeradamente preparada. Racho-te este pau como quando tinhas meio metro de altura, menino Jime Manuel Santos Costa & Silva, que nesta casa ainda manda a idade e a sabedoria, e quando o teu pai chegar à noite já sabes que apanhas, quer te portes bem, quer te portes mal, portanto, juízo, ganha tino, que de duas lambadas não te livras. Trovejava, adivinhava-se um dilúvio, Jim Morrison do Calvário ainda tinha duas entregas a fazer. Quem manda não teres estudado. Sabedoria de mãe. Duas entregas, maldita cocaína. Parcialmente cego devido ao Chanel nº5.  A mota não pegava e o céu negro prometia o inferno. Um trovão numa árvore e aquele tique nervoso sempre a vir à superfície. Esmurrar o ar. Jim esmurrava o ar quando confrontado com situações de perigo. Não podias ser normal. A primeira entrega correu bem. O Faísca Caparrão vivia mesmo ao virar da esquina. Faltava a outra. Uma entrega na outra ponta da cidade. Um drogadito de sapatinho de vela e camisa encarniçada e cabelo risco ao lado, muito lacoste, residente na parte rica da cidade, ai a Lapa, que linda era a Lapa com aquela limpeza e arrumação de rico. Que linda e vazia e deprimente como o resto da cidade, malfadada capital do antigo império dos descobrimentos, desditosa cidade que obrigava um moço honesto a sair de casa com o Niagara a cair das nuvens. Jim acelerava, a mota não era uma mota, nem um cavalo, nem um avião era tão veloz quanto aquela mota que levou com um trovão e ardeu e com ela o dono, esturricado, tostado, sem tempo para esmurrar o vazio.