nós somos
/A grande verdade sobre todos nós é que todos
nós somos alguém que não somos:
a dolorosa vítima de ontem ou talvez,
com menos alarde e sem qualquer ênfase,
o secreto algoz do amanhã.
Somos todos nós algo que já existia
em qualquer manhã de sangue e horror
antes de nosso nascimento e sob o luar
somos todos o amor renovado apesar
dos mananciais da loucura e do ódio.
Nós somos todos porque tantas vezes
é preciso dar nomes aos aos cordeiros
e então somos todos Heitor
forte, sem os calcanhares de Aquiles
e ainda podemos ser todos Quixote
ou – e quem pode dizer o contrário? -
talvez sejamos todos Rocinante a pastar
a grama verde enquanto no céu
os abutres volteiam e a má sorte
se consuma: aquelas nuvens tão
brandas, amontoados de espuma
que, quando muito, traziam uma vaga
melancolia, mal o sabíamos,
era a neblina que nos cercava,
tripulantes caducos de um navio
que ancora num porto devastado
e ainda antes de dizermos “tarde demais”
murmuramos – como que diante
do espelho – todos nós somos
o outro e ao mesmo tempo
não somos e nesse ser ou não ser
talvez alguém minta: A grande verdade
é que todos nós somos Hamlet
embora muitos não sejam príncipes
e tantos outros sejam os assassinos
do rei – o que importa? O que talvez
defina o herdeiro do trono roubado
é uma certeza que todos nós temos: existe
algo de podre infestando os ares
como a lembrança de um pesadelo
que nos sobressalta sem nos despertar,
que nos leva a um sonambulismo
tão eloquente, a ânsia de gritar
“nós somos” porque, não fosse assim,
o que seríamos nós
além do mais negro silêncio?