Uma escritora possuída por forças ocultas

 A despeito da horrenda capa com letras cor-de-rosa a dar um ar de best-seller, interessei-me por A Louca da Casa, da madrilena Rosa Montero, por ter lido na contracapa que se tratava de “uma viagem através do misterioso universo da fantasia, da criação artística”. Diverte-me, não é outro o verbo, a leitura de textos sobre a escrita, sobre ser escritor, e mais me diverte que esses textos sejam dados à estampa por escritores determinados a cientificamente elencarem as forças extraterrestres e espirituais que os impelem a garatujar frases no papel. 

  Quem confere a arte à mão que empunha a caneta? A Rosa Montero acontece escrever acima das suas capacidades, muito melhor do que sabe, e para explicar esse fenómeno ou dom recorre a algo que Rudyard Kipling apelidava de daimon,  uma espécie de espírito intermediário entre os humanos e o Além. Rosa Montero escreve na “escuridão, sem mapas, sem bússolas”. Escrever, refere, é flutuar no vazio, e para flutuar no vazio há que sonhar, como Stevenson, proprietário de uns “pequenos duendes” que lhe sopravam ao ouvido os romances que deveria escrever. Incapaz de explicar o processo que o levou a cuspir duzentas páginas impressas, o escritor recorre aos demónios, aos duendes, ao sonho, em suma, a uma série de mitos abarcados pela palavra inspiração. Devemos acreditar que o escriba detém forças mágicas ou divinas, que depende de luzes e sons ou de surreais sensações para pagar a renda da casa. Declarar que o motor da escrita é um duende que nos sopra ao ouvido, é como professar que a chuva se deve mais a uma dança tribal do que ao Sol e à evaporação. 

Qualquer artista, mesmo o mais subsidiário do inconsciente, depende do trabalho. Não é, insisto no óbvio, possível vomitar uma obra-prima sem transpirar, sem falhar, sem tentar acertar no texto certo repetidas vezes ao longo dos anos. Uma frase legível resulta de frases mil vezes riscadas.  Ainda que convivamos com demónios interiores ou precisemos de certas sensações ou estados de alma para escrever com destreza e fluidez, não é garantida a qualidade de um texto resultante de um transe criativo. O que mais vezes acontece é o texto soprado ao ouvido, apelidado por simples mortais de primeira versão, originar inúmeras alterações que invariavelmente diluem aquilo que as divindades artísticas nos sopraram. Como viveram os autores que levaram décadas a escrever um só livro? Em transe intermitente? É o inconsciente que alinha as vírgulas, que aparafusa a prosa? Rosa Montero, e outros propagadores de lérias a metro, querem que acreditemos que a escrita é para predestinados. Se todos podem ser pedreiros, apenas quatro ou cinco se podem dedicar à escrita. Esta futilidade misturada com crendice até teria alguma piada, se por exemplo saísse da pena de algum génio mitómano. Que dizer desta escritora que, mesmo possuída por forças ocultas, tão sofrivelmente escreve? Será possível, num impulso de rudeza, considerá-la predestinada para a mediania?