O sábio chinês e a sua luta contra os presunçosos

Quando esbarrares contra um snobe ou contra um desses presunçosos armados em génios,  arrosta-o e lança-lhe os óculos de sol para longe, de modo a que os teus olhos se fixem nos dele, agarra-o pela gola do casacão vindo de um filme francês dos anos 70 do século passado e abana-o até que a gosma que o cobre se evapore para os céus. Desde que um sábio chinês me contou que esta era a maneira mais eficaz de sugar a presunção  do cidadão inflamado pela fé de que vale mais do que dez tostões furados por chumbada de pressão de ar, não tenho parado de agarrar gente pela gola do sobretudo. Conheci um garoto, incauto leitor desprovido de intenções criativas, que se encontrou sem saber como rodeado por poetas que, encarnando nos mais elevados espíritos artísticos nacionais, citavam Cesariny enquanto lambiam a mortalha e coçavam a lã ensebada que por cima do cérebro nunca deixa de crescer. Fraco de espírito, com a mioleira ainda por solidificar, o rapaz passou, desde esse malfadado choque com os poetas do subterrâneo, a rabiscar afectados versinhos em cadernos que exibe com um regozijo tal que, quem o vir, fica com a sensação de estar perante um bardo em formação. Não fui a tempo de lhe salvar a dignidade, lamento, e por isso ainda hoje me penitencio. O rapaz mudou de ares, diz-se independente, só compra livros de autores sublimes desconhecidos do grande público, arroga a si o direito de não passar cartão a antigos amigos e conhecidos e faz-se acompanhar por gente da sua condição, pela malta dos versinhos e do casaco roto e da barbicha palha de aço no queixo. O exorcismo, as rezas ou o hipnotismo não resultam com esta malandragem sofredora da enfermidade do talento ausente. O indivíduo chega aos cinquenta anos, levando uma carreira de autor de recensões no jornal de referência e tendo já publicado o seu romance da praxe publicado em editora incontornável. Não é possível explicar-lhe, sem uma pancada de chuço na tola, que nada daquilo que fez foi relevante para a arte ou para a cultura do seu país. Transbordando de mania, esse sujeito deita-se à noite acanhado por deitar-se consigo mesmo. “Como é possível eu dormir comigo, alguém tão bom, como é possível?” Casos destes resolvem-se como a natureza pede, com safanões e, em casos mais extremos, com pantufadas na nalga. O sábio chinês revelou-me, após longo silêncio, e não sem grande constrangimento, pois não é agradável para um sábio confessar que teve dificuldade em executar uma empreitada, que o caso mais intrincado com que se defrontou foi o de um varão que, tendo recebido o apodo de “o maior talento da sua geração" por parte de meia dúzia de transgressores de um suplemento cultural, virou megalómano ao ponto de supor que a sua caneta transformava em ouro aquilo em que tocava. Não havia festival literário a que faltasse. Leituras de poesia em bares de malta formidável eram a sua praia. Publicava livros a rodo, livros seus e de amigos, trocava elogios com os amigos que publicava e com os amigos que o enalteciam na imprensa. Marchava com uma ginga ou um meneio de corpo que dava a ideia de que a sua pessoa se transformava progressivamente em poema. O sábio chinês sacudiu-o e não resultou, o presumido insistia em bramir que era o melhor de todos, “e ai de quem diga o contrário”, o sábio chinês deu-lhe com uma barra metálica nas costas e nas pernas e, mesmo sangrando, “o melhor escritor da sua geração” desembrulhava uns rendilhados a lembrarem Luiz Pacheco. O sábio chinês cortou-lhe um dois quatro dedos, uma mão, e ainda o coquete assegurava ser o mais talentoso, o génio dos génios, nem ultrapassável por Camões. Revelou-me o sábio, suando e exibindo umas olheiras cavernosas, que nem com a morte a criatura se livrou da confiança desmesurada em si própria. Após a sua morte, os amigos inventaram um prémio em seu nome e registaram na sua lápide: “Aqui jaz alguém que ombrearia com qualquer um, caso não tivesse sido liquidado.”