As Aventuras do Senhor Lourenço (preâmbulo II)

O senhor Lourenço sentia no corpo toda a pressão indefinida e prolífica da vida, às vezes julgava-se inadequado ao mundo, devia ter continuado na incubadora do velho hospital onde nasceu (Maternidade Alfredo da Costa) em Novembro de 1975. Talvez por isso nunca tenha desenvolvido “qualquer coisa de amargamente destruidor”, como “o homem sem qualidades”. Não havia nele esses impulsos demoníacos que protegem alguns excluídos de cair na irrisão de si mesmos.

            [visto de costas, serei eu “um príncipe do espírito ou um grande-escritor”? Vamos ao que importa, este é o 2.º e último preâmbulo sobre o Lourenço, depois de Proust, que pode prolongar magistralmente por 100 páginas a descrição das personagens, devemos ser modestos]

Lourenço aperfeiçoou uma metodologia que lhe permitia catalogar rapidamente alguém como amistoso ou perigoso, estimável ou detestável. Um método flexível, saíram e entraram critérios (por exemplo: o “parabéns” passou de pindérico a aceitável; ao inverso do “tal e qual”), fez e desfez ângulos de abordagem. Desta forma, apagava-se o mais possível com um gesto justo, mas evanescente, ao mesmo tempo que sorria ou punha uma face esfíngica. Sonhava, sem sucesso, ser um puro, desses, como Hölderlin, difíceis de discernir e que depois de morrerem alguém recupera para o estrato dos olímpicos.

Um dia perguntei-lhe:

– Não achas que há aí um pouco de batota?

– Como?

– Fazes desse método uma lei universal, mas ele é teu, não?

– Simplificas! Retorquiu, com a superioridade de quem domina o diálogo (coisa raríssima nele).

É verdade que reduzi esta questão quase à caricatura, deixem-me, pois, explicar melhor. Tinha como critério positivo o aperto-de-mão-viril, o que contradizia o seu cumprimento “picha-mole”, e ele estava longe de ser um génio onde a contradição é muitas vezes virtuosa. Sentia-se, aliás, bastante perplexo. Talvez por isso, quando percebeu que violava as sacrossantas leis da lógica tenha ido à net encomendar uma puta. Demorou uma hora a escolher, indeciso entre uma ucraniana de 30 anos em promoção e uma “estudante universitária portuguesa quente e meiga” de 24, poliglota e frequentadora assídua dos quadros de honra cognitivos. Acabou por ficar com a ucraniana por €100 (um bónus de €20 em cartão). Serviço ao domicílio meia hora depois (vantagem de viver em Lisboa).

Toque de campainha.

– Sim?

– Linha do prazer, é aqui?

– Sim, vou abrir.

Entrou no apartamento alguém com pelo menos mais 10 anos do que o anunciado, em sobrepeso e uma pele cheia de crateras mal disfarçadas com carradas de base.

– Senhor João?

– Sim, claro, sou eu. E você...

– Eu chamo o que o senhor quiser.

– Pode ser... Tina?

– Certo. Como vai querer?

– Oral e anal.

– Ai, eu não querer cu.

– Como não queres?

– Não ser bom.

– Mas não sou eu que decido?

– Por favor, eu não querer.

– Está bem, oral e manual (regressava ao fetichismo do aperto de mão).

– Booooom.

E lá fizeram aquilo, ora boca, ora mão, direita.

[esta cena não traz nada de novo à erótica ocidental. Mas ao lado do quadro prosaico há uma peça de sentido que reforça o traço agónico de Lourenço, encarnação de “o último homem”]

– Bem, Tina... aqui estão os €100, espero voltar a ver-te...

– O senhor gostar?

– Sim, sim, foi bastante bom.

Nenhum remorso, há muito que Lourenço usava de vez em quando prostitutas, e muito antes disso já tinha declarado que para si a prostituição era uma profissão pelo menos tão digna como a de medicina. Aliás, as senhoras e os senhores de bata branca faziam coisas bem mais imundas do que meter um pénis cheio de vitalidade num buraco do corpo ou apertá-lo na mão. Em boa verdade, Lourenço achava a prostituição bonita, não bela ou útil, não imoral ou insalubre, mas bonita.

Sem remorsos mas sem certezas também sobre a sua orientação sexual. Tina, ou lá como ela se chamava, não tinha dissipado, como mais algumas antes dela, as dúvidas que o contraste aperto-de-mão-mole / aperto-de-mão-rijo tinha inscrito no seu íntimo. Terá isto marcado uma ruptura profunda no Lourenço, fissurando o dique que continha a certeza da sua identidade? Não sei dizê-lo, foi nesta altura que se re-apaixonou pelo Livro do Desassossego, baralhando as razões que pareciam tê-lo tornado menos clarividente. A opacidade que ganhou por volta dos 40, pode, pois, dever-se tanto à confusão entre estilos de aperto-de-mão quanto a um reforço deslocado de Fernando Pessoa, que para não fazer mal, diz-se, deve ser lido na íntegra até aos 30 anos (a não ser que se viva de bolsas FCT).