Breves questões a um crítico

Encontrei-me com Alberto (o pudor e a humildade inibem-no de revelar o seu nome real), um dos mais prestigiados críticos literários da sua geração, numa reputada e careira confeitaria situada no Rossio. Enquanto aguardava pela minha chegada, este enfermo de uma horrível mania da pontualidade degustou dois “sublimes” pastéis de nata pintalgados de canela, um café “sem princípio” e telefonou à mãe, viúva que reside sozinha num apartamento parisiense a transbordar de gatos. Quando aportei, ainda dentro dos trinta minutos académicos, repousava em cima da mesa do pensador um montinho de obras poéticas dadas à estampa por talentos lusitanos para mim desconhecidos. “São bons?”, perguntei-lhe, ao que me respondeu que não sabia, pois não tinha por hábito ler livros sobre os quais escrevia. Os livros estavam ali à espera de um garçon escrevinhador de versos, que trocava bolos por poemas.

 

Num lendário bate-boca travado com o chamado “Poeta Desconhecido”, Alberto afirmou-se recentemente como o supra-Gaspar Simões. O que quis dizer com isso?

 

Em 1912, Fernando Pessoa anunciou a vinda do supra-Camões. Presumo que o novo Camões fosse o próprio Pessoa. Dada a minha natureza chalaceira, não demorei a apossar-me deste supra que, a juntar a Gaspar Simões, símbolo da crítica literária, me conferiria o transcendente título de crítico-mor da pátria. Quem, para além de mim, o melhor dos melhores, o crème de la crème, poderia assumir esse papel? Além disso, é notória a influência que o meu método de trabalho tem exercido sobre outros críticos.

 

Como descreveria o seu método de trabalho?

Há uns anos, ainda jovem de barba rala, lia qualquer coisa, devorava literalmente tudo. Era confuso, não distinguia os bons dos maus livros, até que uma depressão nervosa me fez entender que não havia homem mais importante no meu mundo do que eu. Reduzi as leituras até chegar a um número redondo, o zero. A leitura perturba o discernimento, a capacidade analítica. Passamos pelos dias sem dar pelo sol ou pela chuva, zonzos de tanto papel varado. Pagam-me para escrever uma vez por semana, abandonar a leitura foi um grito de sobrevivência. Chegara ao precipício da existência, ou eu ou os livros, ou a saúde ou o vício do entretenimento. Optei pela sanidade mental, livrei-me dos livros, de todos. Acredita que não tenho um único livro em casa? Nem um livro de receitas, nem uma lista telefónica. O meu método de trabalho é, pois, intuitivo, baseia-se na crença no poder da adjectivação e das frases floreadas.

 

Como avalia livros que não leu?

Confio no que ouço e no que sinto, conheço críticos e escritores, frequentamos as mesmas festas. E medito sobre o que vejo. O aspecto do livro é fundamental: a cor da capa, a fonte escolhida, a fotografia do autor. Em suma, o bom crítico depende do bom gosto. 

 

Poderia aprofundar sobre o “poder da adjectivação”?

Com o adjectivo, meu companheiro de longa data, evito horas de reflexão. O que demoraria um dia a escrever sai em dez minutos. Um “brilhante” resume um livro. A um poeta estreante ofereço o clássico “fulgurante” ou o mais composto “pedrada no charco”. Descubro expressões invulgares. Veja bem que fui eu quem esgalhou a seguinte frase: “Manuel, poeta lúcido cujo maior talento é deslindar, de modo vibrátil e voluptuosamente feérico, as angústias do mapa rememorativo.” Como se traduz uma frase destas? De modo nenhum. Nem eu sei o que pretendi dizer. Inspiro-me, despejo estes lirismos. Se me confrontarem, se me acusarem de não fazer sentido, retruco que para um asno só a palha é literária. Há uma outra questão, já abordada por seguidores meus, relacionada com a limitação de caracteres de um artigo de jornal. Como poderei reflectir sobre um livro se não me dão espaço para o fazer? Sou apologista do ensaio longo. Como não me dão espaço para esse ensaio, protesto com uma retórica absolutamente acrítica.

 

Que conselhos daria a críticos emergentes?

À semelhança de qualquer artista, o crítico depende das suas capacidades criativas, do tão desvalorizado talento, que é uma energia inata. Nascemos ou não dotados deste dom – porque é um dom avaliar convenientemente um livro sem o conhecer. Seguir o coração parece boa recomendação.

 

O crítico, exausto, recusou-se a responder a mais perguntas. Despediu-se com um intenso beijo na face e esfumou-se na tarde chuvosa.