Do vigor irremediável da presença nómada
/Texto de apresentação de Supertubos de Hugo Milhanas Machado, lido no dia do seu lançamento, 7 de Fevereiro de 2016, no Bar Irreal, Lisboa
0- Ao mesmo tempo que Hugo Milhanas Machado revê os marcadores ontológicos que povoam o mundo, faz emergir novíssimas possibilidades de sentido, a presença em vez da evanescência (ao contrário de Derrida, mais versado em “palavras nuas” ou “mitologia branca”). Tudo jogado em palimpsestos rústicos que nunca ganham a forma definitiva de uma inteligibilidade dominante, capazes, pois, de conjurar os velhos demónios da totalidade.
1- Supertubos é o mapa de uma viagem poética de 10 anos, tendo em conta a idade de Milhanas Machado, é o livro da sua vida adulta. Estranhamente coerente no estilo, pela aposta na desconstrução (que palavra tão gasta e tão ignorada) das regulações sintácticas. É como se buscasse uma para-sintaxe, refrescando os sentidos básicos que nos ligam ao mundo e a nós mesmos. Milhanas Machado reconsidera o óbvio pela dislexia calculada, mas nem sempre controlada, que introduz no estrato sintagmático do discurso.
1.1- A sua poesia é simultaneamente muito difícil e fácil, depende do ângulo de ataque. Podemos permanecer na sua musicalidade, dissonante, e deixar-nos envolver pelas palavras que conhecemos de uma longa tradição do léxico poético português (corpo, noite, viagem, céu, estrela, amigo, dança, amor, anjo, mar, praia, paisagem, café, sol, escuro, nevoeiro, barco, mundo, terra...). Mas se praticarmos uma leitura estética, então somos sacudidos por todos os lados, nada é suficientemente estável para repousarmos sequer um pouco numa eira de sentido já constituído, tudo é sempre outra coisa pelas possibilidades que se abrem logo na origem de cada fulguração (“Há aquele braço nas pedras / de colo parado da paisagem /quando é voz percebemos quase corpo / e agasalha se tornar a escutar”).
O espelho que reflecte esta arte poética é um “espelho torto”, talvez por isso tudo deva ser dito e lido circulando, seguindo o que Nietzsche escreveu sobre os benefícios do caos e das caminhadas.
2- Esboçará Supertubos uma poética do eu? De um eu, tantas vezes anjo e marinheiro, de um eu situado nos interstícios do descobridor que naufraga, que só porque fraqueja pode avistar ou inventar a praia onde repousar e beber um cocktail sentado na “areia maluca”. Mas ao mesmo tempo, talvez nunca um livro de poesia tenha tido tantos nomes de pessoas: zés, carlos, alfredos, paulos, vascos..., como se Milhanas Machado quisesse compensar o estilhaçamento do eu com processos tangíveis, carregados de história, de subjectivação.
Em marcha com “letra marinheira” rasga o invólucro frágil onde se guardam os antropónimos que fizeram a felicidade dos notários. Lacera também a gramática das vias terrestres GPScizadas, lineares e enfadonhas. Uma loucura controlada que se manifesta quase sempre através de ritmos dionisíacos recompõe a língua para atingir arqueologicamente as partículas que compõem os horizontes de sentido mais comuns.
Muitos vezes, Milhanas Machado abre espaços amplos, a que se chama por comodismo linguístico paisagens, onde o corpo se perde e se ganha, se dilui em algo mais vasto do que ele, ao mesmo tempo que se concentra furiosamente no único ponto certo, e cego, de si: pulsar, pulsar sem descanso. Certeza arrogante que talvez a paisagem não aceite manter.
3- Milhanas Machado desenha também uma indústria poética, uma “fábrica do gosto” que vai parindo palavras ligadas por fios de Ariadne electrificados. O caos, dizia Deleuze, não é a desordem, mas a velocidade infinita, é isso que nos choca, sem redenção possível. E na poesia de Milhanas Machado temos arranques bruscos, de corrida de bicicletas em perseguição por “caminhos anavalhados”, prontos a esfolhar e partir o corpo-ciclista, como se houvesse pressa em ir a tantos sítios quantos os que fazem e desfazem o absurdo, tudo “rumo ao futuro”. Porque ficamos “escangalhados sempre repousamos”, daí que não devamos passar de “campistas” ou ultrapassar a “babugem do clarão”.
4- Poética da desconstrução, as parcerias não duram nem na “sueca”. Foi a recuperação de linhas de memória escondidas nos batimentos da vida quotidiana que permitiram a Milhanas Machado ver, cheirar e tocar tanta coisa banal e fazer disso uma “vida jeitosa”. Uma banalidade que preenche biografias felizes e se eleva, com a força da metamorfose que acompanha a arte, até ao andar da cultura erudita. Numa espécie de homenagem metafísica, Milhanas Machado vai tricotando poemas com esse fio de vida passada. Trata-se, antes de mais, de feitiço, pegar nas coisas e repô-las em palavras, eterno retorno embruxado. Tanto mais que “dizemos por empréstimo”, pedir emprestado a outras vidas e a outros tempos para que a nossa se mantenha de pé, ora num pé ora noutro.
5- O amor acontece na dentada de um anzol. A corte faz-se como se pesca. Junto às rochas. A aventura pode ser miúda, como o peixe. Mas dará para a caldeirada.
6- Milhanas Machado reincide ao trazer a oralidade para a escrita divina da poesia, apontamentos de luz (em claro-obscuro: um brilho turvo de “fogueira de noite”, “alumiando um pouco diante do corpo”) despejados no caleidoscópio vital que recupera de uma memória descomplexada e prolífica. Tudo misturado com sons, muitos sons, imagens e por vezes cheiros, esbatidos por um tempo que oscila entre a eternidade e o instante. Talvez cada instante contenha a eternidade, não é preciso somá-los à força de máquinas de calcular para chegar aos números imensos, haver uma aproximação assíntota ao que dura desde sempre e para sempre. Mas também o instante carece de substancialidade, tudo se vai “esfrangalhando”.
7- Estrelas fora de nós e mar dentro de nós, para glosar, com deslizes, o grande/pequeno immanuel Kant. Pontos cardeais de Hugo Milhanas, ligados pelo voo incerto da linguagem e vividos num corpo inteiro, às vezes de anjo, não belo mas ferido, rasgado, demonstrando que vive acima da crença anódina das figuras de cera poéticas. Milhanas Machado encosta-se ao leitor e aponta um rumo, mas não o deixa tomar o leme, sugere linhas hermenêuticas vagas, desfralda uma ou outra vela, sopra o quente e o frio, sempre de través para evitar bolinar. Gostamos dele, como de um amigo, gostamos e antipatizamos, como a flecha que sai do arco.
8- É preciso “ver torto” e ler torto, são poemas em movimento, “mexem bastante”. Não nos levarão à “terra do nosso regresso”. Como podemos fiar-nos num verso que diz “sopra tão limpo cruel o fabuloso”? Mesmo com “pés gigantes e bronzeados”. Talvez as frases sirvam apenas de contraste ao “silêncio crepuscular”, o corpo é que tem de se bambolear à procura de um equilíbrio que evite uma e outra vez quedas na calçada, isto até chegar ao baloiçamento do barco (ou à biomecânica do ciclista em dia de montanha), mar a toda a volta, por cima e por baixo, esse mar infinito sem fronteiras que interrompam o viajante. Obliquemos e naveguemos pela vida fora!