Paralelo 80

Na latitude a que nos gela a imaginação, 
algures depois do paralelo 80,
o branco invade e sobrepõe-se.

Ouvi dizer que, por esses lados,
algumas cidades acomodam deuses.
Vivem com nomes normais
em lugares iguais a tantos outros.
Sentados à entrada das casas
ou nas conversas de café,
jogam cartas como todos os outros
e bebem cerveja quente.
Até mesmo os traços dos rostos
São semelhantes aos nossos.

Só as vozes são mais suaves,
sussurram como o vento polar.
E podem fazer-nos sentir o brilho do gelo. 
Durante o equinócio
Suspiram o regresso a casa
e têm a impressão de, por uma vez,
se fundirem com a paisagem.
O branco dos deuses igual ao branco do ártico.

Por esses dias
há um silêncio que se aproxima em ondas
e que invade discretamente tudo.
Gentes e animais,
cumes e praias.
Não há destinos
nem percursos.
Não há rumos que levem a lugar algum
nem estradas para percorrer.
Tudo se transforma em igrejas
e a respiração torna-se prece.
As vozes são liturgias
e os gestos rituais novos.

Os homens não caminham,
os animais repousam,
o branco inunda.
E os deuses sonham com lagos
e montanhas verdes.
E acreditam ter voltado a folhear os livros sagrados.
E sentem o quente dos tronos que já ocuparam.
E saboreiam manjares divinos
em longas mesas pontuadas pelo mais rico néctar.
E ouvem os bailes.
E acariciam as feras mais dedicadas.

Ainda que encontrem uma solução temporária,
e gradualmente a inspiração se vá perdendo,
estes momentos não deixam de ser milagres.
Os milagres são precisamente isto
- regressos perfeitos.
A possibilidade de voltar às origens
torna-os mais profundos,
mais humanos.
São também vítimas de raiva,
desespero,
preocupação e obsessão.
Profundamente humanos, estes deuses,
quando termina o breve equinócio.

Dizem-me que as cidades são feitas de homens
mas o que as justifica é o ruído.
No silêncio nada é cidade
No branco tudo é horizonte.
No silêncio não há diferença.
É tudo igual a si mesmo.

Sobra a aurora boreal para colorir.