As Aventuras dos Senhor Lourenço (§13 correr com o coração em fogo)

(cont.)

Lourenço regressou à escola, onde foi cumprimentado por todos, mais beijos do que apertos de mão. Até a Direcção, que sempre o considerou um banana, se prostrou aos seus pés.

– Caro colega, que gesto magnânimo. – Disse o subdirector, poeta nas horas vagas e incapaz, talvez por isso, de perder a oportunidade de elevar o discurso ao tom heróico dos Lusíadas. Sem esquecer que Luís de Camões não gostava do povo: verdadeiro algoz de Inês de Castro e pouco inclinado para a poesia. Bruto e cruel, no fundo.

– Nada de mais, retorquiu, Lourenço.

– Claro que há aí uma mais valia, não te armes em modesto comigo, o que fizeste vai ficar na história. – Continuou o subdirector, mãos sapudas a gesticular por cima de uma barriga descomunal. Era aí, aliás, que os olhos de Lourenço buscavam guarida, naquele semiesfera perfeita quase a rasgar a camisa, querendo mostrar ao mundo a velha geometria anatómica que tanto sucesso fez entre as mulheres de antigamente. Talvez o inconsciente visse ali ares de maternidade ou, mais plausível, uma forma semelhante à das Vénus arcaicas, arredondadas para o prazer da procriação.

– Está bem, mas não quero ser premiado.

– Isso não depende de ti, se o Presidente te der uma medalha qualquer, vais lá, de fato e gravata, e aceitas com muita honra, mais nada. – Costumava terminar muitos diálogos com “mais nada”, mas não cheirava a pequena ditadura, todos sentiam nisso um bordão longe do significado mais literal.

– Veremos, veremos...

Nisto, entraram a Directora e a Adjunta do primeiro cilo, beijos e mais beijos, sorrisos, admiração. Lourenço magnânimo, gesto aprendido nos filmes. Eram tantas as solicitações que não precisava de demorar-se no que lhe dizia cada interlocutor, vagueava, planava acima deles, dizendo que sim com a cabeça, sorriso fixo. E, talvez pela primeira vez na vida, era feliz.

No dia seguinte tinha de ir à TVI, Você na TV!, programa de Manuel Luís Goucha e Cristina Ferreira, trampolins para o reconhecimento de uma parcela arcaica da cultura portuguesa, sociologicamente dominante contudo. Tinha Lourenço algum interesse nisto? Não, falei com ele várias vezes e sempre me disse que era como estar no “poço da morte”, não se pode parar sem cair, e ele não queria ir novamente para o fundo do poço, mas também não gostava do movimento circular que o mantinha lá em cima, uma verdadeira loucura. Escolheu, ainda assim, não parar, ir a todos os lados, chegou a pensar-se em sósias ou milagres. Inventou uma invulgar maneira de responder a qualquer pergunta, da mais parva à mais elaborada. Tirou milhares de selfies, apareceu em centenas de páginas de jornais, muitos estrangeiros. Mas a fama real só aconteceu depois da TVI, e aconteceu porque Lourenço se saiu bem, creio até que a Cristina, esse paradigma da “mulher empreendedora”, teve um pequeno crush por ele.

Já vos disse que Lourenço não causava qualquer impressão de espanto, era tão mediano que até os homens médios sentiam um certo fastio ao pé dele. Mas quem sabe realmente como se produz a áurea, que condições são necessárias para que alguém se destaque? A beleza, claro. A riqueza também. A extravagância, até um certo ponto, para não cair no nojo. Mas Lourenço não tinha nada disto. Pertencia-lhe, porém, a estrela de herói, ganha num gesto modelo de altruísmo, que numa sociedade hipertrofiada pelo egoísmo vulgar se elevou até ao registo mítico. Lourenço transformou-se num mito, concorrendo com Viriato, D. Afonso Henriques ou Vasco da Gama. Mas só depois de ir ao Você na TV!

Estive com Lourenço, confesso-o, na preparação da entrevista. Julgo que fui eu que lhe indiquei a tonalidade do discurso: “um bom lugar-comum é sempre mais humano do que uma descoberta, a estupidez quer lugares-comuns, coisas de que esteja à espera, diz-lhe o que quer ouvir mas mantém uma certa reserva, desde que não seja percebida como sobranceria.” Isto era perfeitamente compreensível, mas Lourenço tinha medo da hybris, que uma fama demasiado abrangente precipitasse a sua queda. Qualquer coisa o atraía para a notoriedade e qualquer coisa, talvez mais forte, o afastava dela. Um limbo de indecisão que se manifestava em muitas outras coisas. Isto era grave, às vezes parecia uma mosca a bater num vidro, insistindo sem sair do sítio, enquanto esmaga o seu próprio crânio. A ambivalência não é uma maldade em si mesma, mas é preciso equilibrá-la, coisa que Lourenço não sabia fazer, gostava de diluir tudo numa absoluta e irredutível indecisão que vivia de oscilações extremas entre pólos.

Mas uma coisa são os treinos, outra o jogo, como dizem os desportistas. No programa, com uma plateia de incríveis donas de casa reformadas, talvez viúvas, incapazes de perceber o mínimo conceito filosófico (prova final de que Piaget falhou ao universalizar o estádio do pensamento formal), à pergunta, com olhar maroto, do Manuel Luís Goucha, sobre o que achava do terrorismo, tanto mais que era professor de filosofia, respondeu: “É uma pulsão de morte mediatizada”. Cristina, como gosta de ser tratada, pôs-se em bicos dos pés e disse “hum”, antes de repetir, abanando a cabeça em sinal de assentimento, a frase do Lourenço. Depois: “Muito bem, isto é que é filosofar, parece uma sentença bíblica!” Seguiu-se a publicidade, Lourenço suava sozinho no meio do palco, estava na hora de mudar cenários e preparar os novos convidados. Suava de calor e sem-sentido, apetecia-lhe ir embora, podia fingir uma indisposição. Mas não, o velho comodismo ditou que ficasse, apesar de tudo era mais fácil ficar do que sair.

Cristina passou por ele e piscou-lhe o olho, dentes a entremostrar-se. Lourenço não percebia porque tinha ela umas pernas tão compridas. “E 1, 2, 3, estamos no ar”. Os novos convidados teriam de esperar mais um pouco, ainda havia perguntas para Lourenço, sobre a vida privada, casamento, namoradas, profissão, hobbies... Tudo misturado com sorrisos e acenos de cabeça, às vezes um olhar matreiro da Cristina, quando a conversa ia, “sem querer”, ao encontro da libido. Lourenço respondia e media as pernas da Cristina. Talvez ela também medisse alguma coisa do Lourenço. Veio finalmente a última pergunta: “O que teria acontecido se o Lourenço não tivesse feito nada?” – Creio que muitas pessoas morreriam, disse Lourenço com ar trágico.

– É isso mesmo, palmas para o nosso convidado, muitas palmas. Todas se levantaram, algumas a custo, mas o que era esse pequeno desconforto ao pé dos riscos que Lourenço tinha corrido para salvar centenas de pessoas?

A superioridade de um homem que é herói da TVI equivale ao do que se libertou do desejo de viver. Se os juntarmos temos um Ícaro com asas a sério, inquebrantáveis. Mas Lourenço só pensava numa frase que o tinha assombrado durante toda a manhã: “sou capaz de correr com o coração em fogo!” E mal saiu do estúdio foi a primeira coisa que disse, uma e outra vez. Depois, no carro, gritou-a a pleno pulmões: “SOU CAPAZ DE CORRER COM O CORAÇÃO EM FOGO!” Gritou-a durante mais de meia-hora, como um leitmotiv wagneriano preso num círculo vicioso de auto-reverberação sem fim. Lourenço era capaz de correr com o coração em fogo, cuidado para não incendiar os bonecos de palha que tantas vezes nos substituem.

(cont.)