Estética e ética das bofetadas

Demitiu-se o ministro da cultura João Soares, que prometeu bofetadas a Vasco Pulido Valente e a Augusto M. Seabra (por isto e isto). Foi-se embora, segundo ele próprio, prolífico como sempre em explicações, porque quer preservar a sua liberdade de expressão. Atente-se: “a sua”, não a dos outros.

Devo dizer que não gostaria de tomar café com nenhum dos três, e só Vasco Pulido Valente, porque é um cultor da escrita e da adjectivação, só mesmo por isso, teria alguma probabilidade de trocar um olhar comigo. Não que isto lhes interesse particularmente, têm com certeza nas suas relações pessoas mais interessantes com quem desejam conviver, mas devia fazer esta declaração de intenções, não vá alguém ver tendências afectivas onde existe apenas análise racional.

Há já uma vasta literatura sobre “bofetadas”, aliás, já havia, ficando ainda mais evidente na última passagem do romantismo para o classicismo (os clássicos duvidam da estética do esbofetear), e os Maias e as Farpas retratam bem a intempestividade decadente dos maluquinhos da honra telúrica (recorde-se que se deve remontar genealogicamente à primeira polarização mediatizada da Bataille d’Hernani). Portanto, João Soares não é, como tantos lhe chamaram, um arruaceiro ou, no mínimo, um desbocado adito de likes no facebook. Também não me parece que quisesse intimidar os adversários maldizentes (apesar da cinematográfica “peço desculpa, se os assustei”), saiu-lhe. À boa maneira romântica, o impulso de dizer o que vem, sem mediações, à cabeça, alimenta uma ética do desassombro que tem como lei: “age sempre de forma a que digas e faças o que te vem, ainda que sem porquê, espontaneamente à cabeça.”

Ora, isto contradiz uma ética do diferimento que elege a prudência como método de vida, mas também princípio estético (a arquitectura ou a pintura clássicas, por exemplo, resultam sempre de processos longos de depuração, isto é, de diferimento e apagamento dos primeiros impulsos que emergem no artista). Se João Soares fosse um clássico diria: “a forma como fui tratado por Augusto M. Seabra, e já agora Vasco Pulido Valente, revela acusações semióticas desajustados e uma incapacidade real para perceber que a concorrência entre actores e correntes estéticas reproduz, até certo ponto, a própria luta social de classes [uma nova luta de classes sem o proletariado].” Mas não, João Soares porta-se como um romântico, reflectir e ponderar é, para ele, uma espécie de contaminação da pureza de um pensamento-sentimento-acção que deve manifestar-se ainda antes de ser envolvido e espartilhado pelos preconceitos da civilidade.

Por tudo isto, a querela João Soares/Vasco Pulido Valente/Augusto M. Seabra é mais estética do que política ou ética, tem mais que ver com juízos de gosto (ou a falta deles), do que imperativos éticos, é um epifenómeno que diz bastante acerca de Portugal, claro, mas sobretudo se inscreve numa longa linha de dissensos, que talvez remonte à oposição entre românticos e clássicos no tempo das Cavernas, entre visões do mundo e do belo incompatíveis, uma, a romântica, impulsiva, crente nas virtudes do bom selvagem, a outra, a clássica, prudente, praticando por convicção a arte do diferimento.