Entrevista a uma vedeta das redes sociais
/Ser vedeta maior dos facebuques não apascenta a alma deste escravo de trabalho que, à custa do par de anos a acartar cadernos de bolso a transbordar de frases enigmáticas, entusiasticamente acolhidas pelo crescente número de amigos e seguidores presentes nas redes sociais, virou manco, incapacitado para qualquer actividade laboral que exija ligar despertador, saltar da cama antes das onze da manhã. O seu destino é a grandeza. Os séculos XV e XVI agora na internet e no Bairro Alto. Facebuques, instagrames e tuíteres eram o trampolim necessário para a sua fama literária mas, emaranhado em frases misteriosas, poemas curtos e intensos e fotografias com filtro, a vedeta ficou presa às redes sociais, e a literatura já não é o seu ponto de chegada. Ainda pensa na escrita, não como algo urgente, a ser conquistado todos os dias, antes como um sonho, uma fantasia de verão, daquelas que se têm ao crepúsculo a trocar ideias com compagnons de route, vulgo amigos de facebuque. Não troca o certo pelo incerto. Dá a vida pelo tuíte perfeito, pelo tom de céu mais azulado que o seu android conseguir apanhar. Esta biografia é simples e brilhante: trinta e tal anos a partilhar tecto com os papás, possuidor de um curso de estudos portugueses genialmente por concluir, autor de várias trocas de contactos com o Instituto Camões que não deram em nada, notabilizado por estrofes e contos publicados em antologias e zines da moda e por uma actividade social intensa, consubstanciada em leituras de poesia e bebedeiras nos bares da capital.
O talento nasceu consigo ou é fruto do trabalho?
Essa é fácil (abre o caderno com as notas facebuqueiras e respiga uma frase). "Talento é 1% de inspiração e 99% de transpiração.” Thomas Edison. Este cadernito é a minha vida (beija o caderno preto de capa mole, marca moleskine). Demorei anos a construir o muro da minha sabedoria. Anos a coligir e melhorar frases de famosos. A maceira que é juntar uma fotografia de um dia na praia a uma citação de William Shakespeare. As pessoas não fazem ideia, a fama exige muito.
Qual o sentimento de ser famoso nas redes sociais?
Gratificação. Ver o nosso trabalho reconhecido é... Como diria o meu amigo Séneca, o esforço chama sempre pelos melhores. Nos facebuques não há melhor, cheguei a tão elevado nível de excelência que, postando frases como “Jantei verduras”, amealho nunca menos de duzentos likes. Ora, para quem começou do nada, a comer o pó levantado pelo sucesso dos outros, para quem se iniciou nestas lides com cinquenta amigos e postagens na ordem dos dois likes, não é coisa pouca ser considerado o Cristiano Ronaldo das postagens irónico-sarcásticas pelos melhores críticos.
Que críticos?
O Guerreiro.
O António ?
Outro.
De que trabalho mais se orgulha?
Sigo o lema de Confúcio. Escolhe um trabalho de que gostes e não terás que trabalhar nem um dia na tua vida. Trabalhos não tive, só prazeres. O prazer de que mais me orgulho foi uma fotografia captada na Praça do Comércio. Se bem me lembro (sorriso malandro), a loira que aparece de costas era uma sueca que conheci numa festa Erasmus. Tirar a foto foi fácil, menos fácil foi trabalhá-la, passar das cores naturais ao filtro. Naquele tempo (recuamos a 2012), a tecnologia não era a mesma. Atingir os quinhentos likes, ser considerado genial pela minha amiga Cristininha, receber não sei quantos pedidos de amizade. É para todos? Não. É para mim, que cito Adorno sem ter lido uma linha da sua obra.
Que posição ocupa a literatura na sua vida?
A literatura portuguesa incomoda-me. Não a leio. Nunca li. Quis ser um escritor americano e ainda não perdi esse sonho, falta-me aprender o inglês ou encontrar um bom tradutor ou até um bom ghost-writer, porque ainda não tive paciência para redigir os grandes romances que tenho idealizados (e não são poucos). “Não desesperes, nem sequer pelo facto de não desesperares. Quando já tudo parece ter acabado, novas forças surgem em marcha, e isso significa precisamente que estás vivo.” Quem o disse? Kafka. Enquanto não sou o tal escritor americano, contento-me com a glória nas redes sociais. Tenho um pombo na mão. É melhor do que dois a voar. Antes genial para o Américo do que um anónimo a flutuar num mar desconhecido.
Lê?
Se leio. Como responderia aos comentários dos meus seguidores se não os lesse? (intrigado). Ler livros? (coça a nuca). Ler é sobrevalorizado. Está tudo no facebuque e quem tem google, como dizer, googla, e quem googla, ora bem, é como olhar para a Terra a partir da Lua, vê-se tudo. Poemas, disso leio muito, não que goste. Mas para ser é preciso parecer.
Muitos escritores se debruçam sobre a dor causada pela reescrita. Que tem a dizer sobre isso?
Reescrever. Doloroso. Seria bom que cada postagem minha saísse bem à primeira. Infelizmente, os likes não vêm com primeiras versões. É preciso melhorar e melhorar e melhorar. Em termos literários, não reescrevo pelo simples motivo de não ter escrito. O que de meu saiu em papel foi vomitado, cuspido, esculpido pela sola do sapato. O mundo é complexo. Já ouviu falar da teoria da complexidade de Edgar Morin? (Digo que não). É melhor nem falar disso, ficaríamos aqui a noite inteira e, como sabe, as noites fizeram-se para amar.
Qual a sua opinião sobre Lobo Antunes?
Nunca li. Mas chato.
Diga-me, há pessoa que admire?
Havia. O César. Grande poeta, enorme leitor de poesia. Beberrão. Perdi-lhe o amor quando o apanhei a despejar cerveja no urinol durante a apresentação do livro do Carlos. Sacrilégio. Deitar cerveja fora. Por tudo o que é mais sagrado. Faço minhas as palavras de uma filósofa recente, de seu nome Lykke Li: never gonna love again.
Quais os seus planos para o futuro?
É longo o caminho que vai do projecto à coisa. Molière. Pretendo consolidar a minha glória cibernética, conhecer umas ninfas, morar em Lisboa, arranjar um tacho num jornal a cozinhar recensões, fundar mais umas zines, organizar uma exposição em que se misture versos da minha autoria com obras de artistas plásticos emergentes, ganhar um desses prémios literários atribuídos a tipos que nem assinar o nome sabem, entrar no Lux sem pagar.