Flash de sangue engolfada pela boca

E penso que há blocos sonoros e táteis onde essas criaturas-eventos ocorrem. 

Ali era o escuro da sala de cinema vasta pela sua solidão p&b. A música que fazem ecoar lá dentro me desloca para aqueles movimentos sonhados: a abertura de camadas sedimentadas pelos discursos dominantes, desfacelando-se, correndo pelo rio a paisagem interior; aqui eu te conheço, Manaus. Brota-se um mundo, habita-o na língua alheia – o botânico alemão, o xamã caxinauá, os padres espanhóis, os portugueses com suas manias excessivas. O mundo é uma fera indizível, se diz numa canção.

Nada; nem as mensagens piscando nos bolsos, ou as ligações perdidas de alguma urgência inútil e familiar, e-mail de noticiário catastrófico ou demissões, me tiram das imagens que estão rodando, sempre. Entre o filme e nossos silêncios me intriguei com o corpo na outra extremidade da mesma fileira. Traços que se recortavam líquidos, com o lançar imprevisível das luzes da tela. Cabelos curtos, olhos como dois reflexos de estrelas-no-rio. Uma presença suave e fictícia, sentada no tempo tênue. Demorei muito naquele imaginar. Minha delicadeza ali, o verbo amoroso entre nós-silêncio, nos deixaríamos partir, que vida errada levávamos nessas avenidas e ruas de São Paulo; será que ela perceberia, a minha delicadeza? Um estrondo nas luzes da câmara de ecos – o herói multilado. Levou um soco na boca, bem no meio desta chuva da rainforest.

Depois que as luzes se acenderam a delicadeza seda flutuante se levantou, o corpo me olhou por instantes e sorriu; éramos só nós dois na sala, estivéssemos a frente da cidade, soubéssemos segredos; e depois foi logo em direção à saída, daí para o calor das ruas. 

Nos nossos passos me percebeu, pensei em segurar seu pulso, entrelaçar-lhe os dedos, mas seria ridículo, apenas disse "vamos nos mandar pra Manaus". A minha delicadeza riu.