Escrever é penoso, há muitas formas de escrever, diferentes maneiras de dizer a mesma coisa, é sempre possível encontrar uma frase mais bonita do que esta, a palavra escarrapachada no papel desagrada, as palavras nunca são as mais belas, as escolhidas não são as ideais, existem mais graciosas, mais apuradas, ao texto faltam parafusos, uma vírgula aqui que não devia, uma frase para ali que se repete, que não bate certo, os chavões aos pulos, o dicionário fechado, e no fim, qual fim, o texto não tem fim, morre de cansaço, de tédio, o texto não bate certo, sente-se a desarmonia, texto feio, o texto sofre de fealdade, não se pode ter texto mais grotesco do que o que escrevemos, o que nos pertence é fraco e custa aceitar a limitação, a ausência de apuro, a elegância foge para os textos dos outros, não só dos consagrados, mesmo um zé-ninguém, autor de romances de facebook, bate mais certeiramente nas teclas, isto de escrever seria tão mais fácil se em vez de escrever fechasse os olhos a pensar no texto e adormecesse sem nunca ter escrito e acordasse no dia seguinte esquecido de que alguma vez quis ou tentei escrever, não vale a pena o esforço, isto, se pensar bem nisto desligo e volto para debaixo dos cobertores, o macaco aprende, oh se aprende, lembremos o anúncio do Gervásio que levava o objecto ao contentor do lixo, o macaco sabe, o macaco escreve, mas escrever não é deixar de ser macaco, claro que não é, pegadas de animal por todo o lado, o texto manco à conta da limitação intelectual, educativa, e eu a perseguir a perfeição, a sujar o menos possível o caderno para não o conspurcar com o esterco cuspido pelo cérebro, chamemos assim o quadrado de osso e pus, escrever esgota a vaidade, queria ser escritor e agora quero ser nada, para ser escritor é preciso escrever e nada do que aqui está, nada nos jornais, nada nos livros é escrita, palha, isso temos de sobra, resmas de nada, o vazio assalta-nos, a caneta trespassa a folha para dar lugar a nada, é triste rodear o vazio durante tantos anos, ainda no outro dia o melhor ou um dos melhores ou sei lá se um dos melhores escritores portugueses comentava que poderia morrer depois de publicar os trinta livros que planeara, que depois disso se fechava um ciclo, e eu a ler aquilo e a imaginar o escritor morto e os trinta livros empilhados numa livraria ou na feira da ladra ou numa cave bolorenta, os trinta volumes, o tal ciclo, quarenta anos de escrita, tudo isso a valer rigorosamente nada, não nos enganemos em relação a isto, aqueles trinta livros valem o mesmo que a palha entalada entre a dentuça do burro, o escritor, esse tal melhor escritor, também é primo do macaco, os seus livros são papel, vestígios de uma civilização à beira de acabar, estamos à beira da extinção, como estivemos desde que apareceu tudo, nada dura, nada presta, e um dia o circo termina, e escrever dói tanto e não leva a lado algum e, mesmo assim, mesmo assim, aqui estamos.