Adam Zagajewski, "Tenta louvar o mundo mutilado"
/Tradução de João Ferrão e Anna Kuśmierczyk
Tenta louvar o mundo mutilado.
Recorda os longos dias de Junho
e os morangos silvestres, as gotas de vinho rosé.
As urtigas que cobrem metodicamente
as herdades abandonadas dos exilados.
Tens de louvar o mundo mutilado.
Observaste os iates elegantes e os navios;
um tinha uma longa viagem pela frente,
ao outro esperava-o apenas o nada salgado.
Viste os refugiados que caminhavam para lugar nenhum,
ouviste os carrascos que cantavam com alegria.
Deves louvar o mundo mutilado.
Recorda os momentos em que estiveram juntos
no quarto branco, as cortinas movendo-se.
Volta em pensamento ao concerto, quando a música eclodiu.
No Outono colheste bolotas no parque
e as folhas rodopiavam sobre as cicatrizes da terra.
Louva o mundo mutilado
e a pena cinzenta, perdida pelo tordo,
e a luz delicada, que erra e desaparece
regressa.
Sobre o autor
Adam Zagajewski (1945) é um poeta, ensaísta e tradutor polaco. Nasceu em Lviv, actual Ucrânia, tendo mais tarde estudado em Gliwice e Cracóvia. Viveu em França e foi professor nos EUA e na Polónia, trabalhando actualmente na Universidade de Chicago, onde lecciona um curso sobre Czesław Miłosz. A sua poesia, marcada por imagens límpidas e um tom discursivo e íntimo, partilha de muitas das obsessões da restante literatura polaca moderna (o holocausto, uma relação peculiar com o Cristianismo, a cultura europeia), mas também tópicos pessoais (a relação com os pais, a memória, a música). Está traduzido em várias línguas e venceu, entre outros prémios, o Neustadt em 2004 e o Princesa das Asturias em 2017.