Pós-verdade e redes sociais

A Morte de Sócrates de Jacques-Louis David, 1787

A Morte de Sócrates de Jacques-Louis David, 1787

Agora que o mundo parece inflamar-se sem remédio, depois de décadas a acumular material incandescente (avaria do elevador social, degradação ambiental irreversível, migrações massivas, pirâmide demográfica invertida, fragmentação cultural, desconsideração pelos factos...), é fundamental retomarmos, filosoficamente e politicamente, a questão da verdade. Seguirei de perto as reflexões de Myriam Revault d’Allones, filósofa francesa, e do seu último livro La Faiblesse du vrai. Ce que la post-vérité fait à notre monde commun (Seuil, Outubro 2018).

O dicionário de Oxford define a pós-verdade como a desvalorização dos factos, menos importantes do que a sua apreensão subjectiva. É isto que permite aos discursos políticos modelar a opinião pública, apelando às emoções muito mais do que à realidade dos factos. O que importa é o impacto. A era da pós-verdade é também a do pós-factual. Não se acomode, porém, esta nova ordem epistemológica na fórmula nietzschiana de que “não há factos, apenas interpretações” (nota de 1886-87); tal postulado não elimina ou dissolve a verdade, denuncia somente que os factos brutos, ou puros, não significam nada. Para fazerem sentido têm de ser ordenados e contextualizados, decifrados e interpretados. Assim, foi ainda em nome da verdade que Nietzsche defendeu o exercício de desconfiança. Inserindo-se no que se chamou “filosofias da suspeita”, Marx, Nietzsche e Freud, contestação da omnipotência do sujeito ou da ilusão de uma consciência inteiramente transparente. O que se propôs foi uma arte da interpretação que permitisse uma aproximação mais efectiva à verdade, nada que tenha que ver com fórmulas do tipo “a cada um a sua verdade” ou “é a minha verdade”.

A pós-verdade remonta à emergência de um modelo político assente na opinião e decisão do grande número, isto é, à emergência da democracia. O processo de condenação à morte de Sócrates (no relato platónico, sobretudo do Fédon), filósofo, é importante dizê-lo, devotado incondicionalmente à descoberta da verdade, decretado pela cidade democrática de Atenas. O que fica desse texto, que representaria uma parte importante do senso comum dos cidadãos atenienses, é que o sacrifício da verdade é o corolário de uma sociedade democrática governada por um povo irresponsável e iludido, instalando-se para a posteridade uma suspeita alargada sobre a prática política. Muitos séculos depois, 1984 de George Orwell reaviva essa preocupação, mostrando o resultado de uma sociedade onde toda a referência à verdade tivesse desaparecido. Uma sociedade totalmente negacionista (onde fosse lícito e habitual enunciar opiniões que neguassem a realidade) impediria ao mesmo tempo a organização de um pensamento sobre o real e a troca fértil de opiniões e experiências sensíveis. Uma subjectivação e manipulação generalizadas anularia a possibilidade de se desenvolver uma sociedade livre, fraterna e feliz.

Hoje, vive-se a ressaca, em vez do desenvolvimento, da modernidade que a partir do século XVI, e sobretudo do movimento Iluminista mais tardio, instaurou o primado do pensamento crítico sobre o dogmatismo das religiões da revelação. A compreensão humana passou a ser guiada por leis racionais e a verdade, relacionada com os factos da realidade, um desígnio que se vai cumprindo à medida que o processo de esclarecimento, “iluminação”, faz emergir da obscuridade a verdade dos factos. A ressaca (esse mal-estar que aparece depois do frenesim) deve-se em grande medida à modernidade não ter cumprido a promessa (mais imaginada do que enunciada) de se atingir uma verdade total, ou quase total, e da aquisição do saber ser difícil e demorada, acrescentando-se que em muitos casos há um elitização dessa responsabilidade, justamente devido à complexidade de parcelas significativas da realidade, o que obriga à profissionalização do conhecimento.

A esta ressaca acrescenta-se o poder das redes sociais em irradiar informações não confirmadas, ou verificadas, contraditórias, infundadas e mesmo declaradamente mentirosas, as fake news (os franceses também usam o termo “infotox”). Ora, é nas redes sociais que muita gente se informa (a maioria nos menos de 30 anos), onde a falta de verificação (uma democratização informativa pífia) e o poder de qualquer notícia com impacto emotivo para se viralizar são o modo de operar dessas plataformas. Segundo Myriam Revault d’Allones, as “redes sócio-numéricas fazem circular incessantemente pseudo-factos, respondendo antes de mais ao ponto de vista de alguém que pensa e, sobretudo, deseja que sejam verdadeiros”. Estes factos reforçam crenças já existentes, podendo falar-se, para esta autora, em “bolhas cognitivas”, já que os algoritmos que selecionam as informações que consultamos propõem uma visão do mundo conforme às nossas expectativas. O actual “mercado cognitivo”, ao reforçar acriticamente as crenças dos utilizadores, facilita o ensimesmamento cognitivo e emotivo. Dificultando o pensamento racional e factual, centro nevrálgico das sociedades democráticas tal como tem vindo a ser imaginadas e desejadas. Algo que poderá estar a mudar, preferindo-se agora em muitos sítios, e muitas mentes, regimes políticos mais simples, autoritários e comunitaristas.