Quatro poemas de Jorge Miranda

 

BILDUNGSROMAN 

Deste vocabulário-órfão
se escreveu o mundo: 
ser educado tirar boas notas
fazer poemas encomiásticos
aos parentes e às visitas
depois
ascender ao sótão
e continuar a mobiliar
o silêncio decorá-lo
com cortinas bonitas
por na entrada um
carpete onde se possa ler
seja bem-vindo.

 

MERITOCRACIA

Ser educado com o mundo
me rendeu muitos triunfos: 
ser chamado de viado bixa
gay boiola vinte-e-quatro
afetado quadrado homem- 
do-século-dezenove livro- 
de-literatura-com-português- 
arcaico
foram alguns deles. 

Minha bisavó teria orgulho
do antimonumento que ela ergueu: 
a cordialidade e o fracasso
em pessoa.

 

O ENTERRO

Enterrar um piano é muito mais fácil na primavera
quando os cachorros estão em silêncio
quando as paredes estão limpas
e os cadeados estão abertos.

O difícil
o realmente difícil
não é ter um piano
ou cavar um buraco de dimensões tão
violentamente consideráveis nas quais se torne
não só plausível mas possível enterrar um piano
ou ter forças suficientes para, após ter retirado
tanta terra, ainda estar disposto a cumprir
a responsabilidade recíproca de lançar novamente
tanta terra retirada de volta ao lugar onde
por numerosos dias ali permaneceu disfarçadamente
intacta e que, até então, era chamado de chão
ao invés de ser chamado de buraco e, agora,
ser chamado de cova.

O difícil
o realmente difícil
é perceber em que momento do mosaico do mundo
está a primavera
e se nela ainda reside a licença necessária
a desfaçatez conveniente a polidez exigida
frente ao luto e à melancolia dispensados
a um piano que acaba de ser enterrado.

 

A PIADA

Aquele que melhor riu de si
nem sequer deve ter entendido
a piada. Só de ter desci- 
do a essa condição do vivido, 
a esse plano pré-concebido
de etcéteras – vulgo existência – 
supôs como prêmio recebido
um prévio atestado de falência
múltipla de todos os sentidos. 
Pois é: tal piada é antessala
de outros tantos indeferidos
ais. Melhor cavar a própria vala.