visões da serra

1

ela vai sempre adiante
abre o caminho a passo de desejo
e curiosidade         a cada volta
o mesmo é novo porque há
a miríade do outro

como se eu fôra cego
abriu-me os olhos ao rato
esquivo que joga às escondidas
a toupeira cega pequena Dédalo
cujas patas são mãos e dá
vontade de cumprimentar num aperto
afável         o esquilo onda de fogo
vermelho que abrasa a vista
o coelho medroso célere fodilhão
produtor de chocapic natural que aprecia
o veado de nádegas brancas em saltos elásticos
como molas de carne e pelugem à procura de deus
o javali que lhe enche o coração
e os sonhos de uma caça infinita

se a soltasse          por instantes
                    desta corda que a mim a ela me prende
vê-la-ia de arpão em baleeiro batel
e para rimar chamar-me-ia Ismael

2

quando me encontrava
na funda cova de mim
escavaste um túnel
desde um buraco onde te estendias

à noite          a princípio          só
uma pata e uma mão
palma com palma se tocavam
para          palmo a palmo
        me ensinares a trepar para fora
                                                           de um pensamento

a ti         cadela        meu sol negro
minha sombra canina
      devo mais que um poema

3

a minha cultura não te arrebatou
por completo         o teu traço
abre ainda o olho à presa
e tomas-me na tua matilha
como eu a ti na minha morada

distraído não vi o ataque
fechei os olhos quando dei conta
da vida na tua mandíbula

como a um cego o quebrar dos ossos
narraram-me a tua violenta dança

agora calma caminhavas a meu lado
olhando por vezes para mim
com o esquilo pendendo da tua boca
um olhar que hoje traduzo e dizia

vi como esse súcubo te deixava
sentado com as suas melancólicas
mãos sobre os teus ombros
e na janela jazia o teu olhar de afogado
sabia o que tinha de fazer
convido-te
o jantar é por minha conta

4

que importância tem         redobra o olhar
é uma cadela num mundo-
cão

com menos de um ano mal conhecendo
o cheiro que exalava forçou-a
a natureza à ferocidade de uma matilha

os homens que anteriormente de si cuidavam
não se dignaram a procurá-la
de qualquer modo já o interesse da novidade
se tinha retirado dos olhos das crianças

quando nos vimos         a alta noite        só pele
e osso e medo da pedrada
ou pontapé-de-sai-daqui
vi a rainha de pêlo de ébano que és
esse porte que portas em minha companhia
perna cruzada a observar o animal que escreve
o quarto poema das visões que lhe dás

5

és um pedaço de carvão que respira
nessa cama algodoada         uma lasca
de grafite a cortar os campos
sempre verdes das terras alemãs
a sombra de uma sombra ou uma alma
a suspirar quando te sentas
ao meu colo pedindo atenção e com prazer
concedo as mãos no teu dorso
pelo queixo massajando
os teus triângulos de veludo que cobrem
o vasto mundo de barulhos sons e gentis
ares alheios ao meu sentido e
a tua barriga tracejada a branco
onde o bisturi te raspou a nada
o que ao futuro darias

dormes numa espiral de número d'ouro
numa perfeita paz que me desperta a inveja e
a curiosidade         quem te faz
ganir e uivar e ladrar e correr
no vazio        quem te habita
o sonho        será o meu         o de olho
a olho e entendimento estendido
por cima da areia de diferenças
a imergir no mar da tranquilidade
em que tu e eu nos sabemos iguais
                                        ou o da rainha da floresta teutónica
protegendo as suas crias da tua manha

se lesses este poema saberias que te respeito
te levo ao peito e memorizo o teu corpo
e movimentos e apenas procuro livrar-me
desta doença da interpretação humana
demasiado humana impedindo-te de seres
um simples animal intocado e colonizando-
te com a minha linguagem quando sou eu
quem é surdo cego e analfabeto
ao que dizes com a tua vida vivida a meu lado