Fulgurações - Descolonizar

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Há poucos dias aspergiu-se, ou pichou-se, uma estátua de Padre António Vieira em Lisboa, escrevendo-se também, na sua base, “descoloniza”. Esta ação (“vandalismo”, chamaram-lhe) segue a atual lógica mundial de se reinterpretar o valor intrínseco de personagens que num dado momento mereceram o reconhecimento público na forma de estátuas ou pinturas (regressará, porventura, a censura livresca mais sistemática). Os gregos preferiam usar deuses como modelos, a Idade Moderna começou a ariscar os humanos, e, claro, surgiu a controvérsia. Tanto mais que o tempo longo das estátuas ou pinturas se confronta, desamparado, às sucessivas mudanças de visões: morais, políticas e, entre outras, estéticas. Elas são escrutinadas à frente, cronologicamente, do seu tempo, com mais exigência ou mais tolerância, mas quase sempre de forma diferente.

No caso de Padre António Vieira, é sabido que o envolve uma ambiguidade indecidível, levando à adoração ou à repulsão (também há, decerto, indiferença). Se por um lado, como muito bem refere O Tempo e seus Hemisférios, defendia a  não escravização dos índios e melhores condições de vida para os escravos negros, dizendo que “cada um tem a cor do seu coração” e que todos são iguais aos olhos de Deus; por outro, nunca defendeu a libertação dos escravos africanos, advogando até a sua vinda para tornar o Brasil mais produtivo e, com isso, proteger o império pós Restauração. É sabido também que foi um Jesuíta evangelizador, com o que há sempre nisto de imposição e de subtração cultural, de negação das origens para a almejada conversão espiritual.

Mas foi ainda, com Luís de Camões, o afinador de uma língua que demorava a elevar-se acima dos acasos da crioulização do latim. A língua portuguesa é em parte o resultado do seu trabalho inicial. Daí a justa importância que tem nas atuais aprendizagens escolares (temo pela sua manutenção).

Esta complexidade, ainda por cima vivida num tempo com uma escala de valores bastante diferente da nossa, foi reduzida pelos pichadores ao plano único do colonialismo. Muniram-se de latas de spray e de uma listinha de valores morais, que julgam ser políticos, parece-me, e borrifaram a estátua, sentindo-se, tudo leva a crer, os justiceiros da noite, capazes de revolucionar a nossa visão do passado. Neste sentido, também eles são evangelizadores, mas com um discurso tão empobrecido que só posso considerá-los fanáticos.

Além disso, atacar o património público, quando é reconhecido e honrado por uma larga maioria da população (como penso que é o caso de Padre António Vieira em Portugal), é atacar essa mesma população, a visão do mundo das pessoas que a constituem. Assim, desta vez muita gente foi borrifada com spray vermelho, muita gente foi acusada de tolerar o colonialismo.

O que se pretendeu, consciente ou inconscientemente (inclino-me para a primeira opção), foi, em modo revolucionário, redesenhar o mundo a partir de um ponto zero: o purismo moral do Novo Homem (o santo moderno feito à base de “anti”). O que se conseguiu foi, além da satisfação narcísica dos pichadores e de uma possível estratégia política de confrontação e sectarização, um coro de protestos e, aqui está realmente o perigo, a libertação das forças nacionalistas e autoritárias. Às vezes penso que os extremismos querem que o seu opositor ganhe relevância para melhor justificarem o seu próprio radicalismo, outras vezes creio que são apenas gestos erráticos que alimentam outros gestos erráticos.

Como tantas vezes na história, primeiro salta-se, depois vê-se onde se vai cair.