TRÊS POEMAS FALAM e outros Sonambulismos

“Invisível, a vocação da brisa é suscitar um

desespero tão leve”

- Maria Velho da Costa (1938-2020)


TRÊS POEMAS FALAM


POEMA A


Eu sou puro como um verdadeiro dia de

Primavera. Só admito mãos de pobres que

sabem bem lavar as mãos. Não admito que

as misturas entre castas sejam recorrentes.

A palavra deve em mim aparecer lapidada

como um diamante um que possa refletir

o meu perfil reto sobre a velha coluna

Grega. Todo o bom menino é bem-vindo

o de boas famílias o que pactua com as

lides da velha casa o que tenha os filtros

aqueles que permitam em várias ocasiões

ter a dignidade e sangue frio para nunca

perderem a compostura. Um produto lá

está dos velhos cordeiros do Olimpo. Nunca

compreendi o pequeno ou bruto palavrão.

Esses imbecis que usam palavras inglórias

dentro daquilo que me nomeiam deviam

ter por castigo a decapitação na guilhotina.

Tudo deve ser lentamente dito com a pura

calma sem o recurso à violência e à revolta.

Só assim estarei completo seguro na velha

caixa do velho e antigo poema de amor.


POEMA B


Quero o deboche quero a língua mais

crua na ferida do corpo que sangra.

Quero a denuncia quero a faca que

friamente corta o fio contínuo da injustiça.

Quero o punho que grita quero a fala

que diz aquilo que a máquina amordaça.

Quero a seta quero o chicote que bate

sobre as peles dos “delicados seres” que na

sua cegueira não veem a dor dos outros.

Quero tudo aquilo que me negaram

o Corpo por inteiro: Pés Pernas Cona

Cu Mamas Pescoço Braços Cabeça.

Quero tudo aquilo que me negaram

a Alma por inteira: Delicadeza Doçura

Raiva Partilha Medo Sonho Cólera.


POEMA C


Eu habito o vão o espaço de passagem

e por isso estou habituado a não ter

olhos sobre mim. Na transparência

habito a linha que avança_________

para além do que devia___________

___________________Espaço repito

de passagem mas por vezes sou a ponte

entre a língua que se cala e a boca que

mata. E as Moscas ZZZZZZ indiferentes

passam ZZZZZZZZ para ao meu ouvido

anunciarem as intrigas das más línguas.

Dizem elas que o meu corpo de mistura

não vai além de um corpo de intervalo

pouco digno de nota na grande e esbelta

página. Aquilo definido por literatura.


O CRÍTICO NÃO TEM CU

 

 Bolinhos de peixe ao Curry e gengibre

sem glúten Chips de batata doce Olive

Frite Suflê de queijo Roquefort Mateus

Rosé Rolinhos Sushmaki de queijo e

fiambre Champagne Bollinger Focaccia

com alecrim Rolo de Carne com ovo

Cabeça de Touro Massada de carne

Com chouriço Paella de frango Papa

Figos Paella de frango e marisco Pato

com laranja Frango com natas no forno

Trinca Bolotas  Salmão ao molho de

maracujá Gão Vasco Medalhões de

pescada à Gomes de Sá Creme de

cenoura Pavê de amendoim com doce

de leite cremoso Pudim de caramelo

tarte de Maça Champanhe Krug tarte

de maça Tiramisu Gelado de amora.

 

                ROLHA

 

VELATURA

Os velhos, destinados às novas sepulturas do velho jardim, descem ao nível da relva mais vil. Esperam ser lavados, perfumados, idolatrados. Contudo, são palha a ser empilhada sobre outra já morta palha. Altas cabanas de Madeira. Mas os outros, os lúcidos velhos, passam impávidos por cima da areia, puros e leves, e suavemente passam sobre a areia do seu fechado tempo. Trazem, esses, sobre os músculos caídos a criança que foram e são delas as vozes que chamam outras vozes. Juntas, a criança que eles foram e as crianças que eles souberam chamar, depositam flores sobre a nova campa. E o vento, unindo-se ao tempo, vai retirando lentamente as palavras de bronze sobre a lápide escura. E os anos passam-se. E são elas que reescrevem a campa.

                CUBISMOS

                            a)

A Diva de Cabelo Ruivo obra pornográfica
transformou-se com os anos em símbolo
de liberdade e criatividade literária. Por
todos foi desprezada repudiada queimada
até ser lida por António de Aguiar Mello.
Hoje é a mais admirada de todas as obras
do Sonambulismo Português. O melhor
exemplar de resistência à automatização
do corpo enquanto película e écran.

                            b)

Feia. Grotesca. Impura. As Mamas
de Dona Olga e os seus quinhentos
pentelhos
tornou-se na obra de
leitura obrigatória no segundo ano
de Licenciatura de Línguas Modernas
na Universidade de Letras do Porto.
É de longe a mais divertida obra de

ficção e é a mais relida. Tornou-se

no verdadeiro símbolo de denuncia.

É a paródia mais bem feito daquilo

que se pensou ser Literatura e Poesia

no começo deste século que termina.


                                d)

O Minete de Ouro mantêm-se indecifrável.
Esta obra angular do Movimento Zombie é a
obra predileta dos Académicos Portugueses.
Dizem as más línguas que quem a lê fica cego
por vinte e cinco anos. Dr. Dolores Duras que
estuda a obra há dois anos veio publicamente
desmentir esse boato: Não creio que isso seja
possível embora tenha recentemente tido a
necessidade de mudar as lentes dos meus
                         velhos óculos
.

LIBERTO


                           “ Finaly”
                                - Lana del Rey      


a Tatiana Faia e a João Bosco da Silva

(Club Lana del Rey)

     

E quando todos fecharam-me

a porta

E quando todos viraram-me

a cara

E quando todos negaram-me

conhecer-me

Eu era a pedra

no fosso primeira.


De mãos vazias

tinha finalmente

o tempo nu revestindo-me

a crosta de rugas 

e enrolando-se a espiral de trigo

sobre a memória do meu corpo

a porta tranquilamente fechei

para o voo sobre a minha e

a nossa

sombra.


Amanhã alguém recolherá estes

papéis inúteis para com eles acender

a última fogueira de S. João (como são belas à beira-mar!)

Serão tudo aquilo que sempre fui

aos olhos de todos

uma impertinente poeira sob a pestana

uma movediça irritação à lei.


Rotimi Fani-Kayode - Untitled, 1985.jpg

Rotimi Fani-Kayode - Untitled, 1985