o “canto um” de “L'été langue morte” de Bernard Nöel

tradução a partir de L’été langue morte (1982), presente no volume La chute des temps, Bernard Nöel, Éditions Gallimard (1993)

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o mundo não acabou
e quando o vento se levanta
o nosso rosto é diferente
o amor desfaz o amor
para se tornar mais do que ele mesmo
quem vai morrer
sabe que a beleza é inexorável
eu observo o teu sopro
tu evaporas-te
o obscuro do tempo é uma unha
atrás do olho
seria preciso segurar a língua
até ao começo do mundo
a luz é terrífica
o mar não cessa
tu procuras um ponto por entre o dia
o presente é sem objectivo
sem contorno
e o cume das pedras
não conhece a sua sombra
aquilo que me pára
sou só eu
a minha cabeça demasiado numerosa
um sentido
uma dúvida
não basta ver
o olhar fez cair de mim
todo o visível
a língua lança em vão uma ponte
para reparar
cada sílaba é o eco
travesti de um adeus
pétala de ar
quem és tu
tu faltas-me no teu nome
ah tornar-se o antigo de si mesmo
é falar
o sopro faz no espaço
menos que um reflexo sobre a água
esta noite
a música é uma ilha sobre a ilha
e a sua margem
um anel de olhos
pousado
todo o centro é vazio
mas o nada onde se apagam os passos
come o nosso chumbo
o osso areja
e eis o Outro
o delegado do desejo
quem dança
o seu passo escreve sem traço
um instante
uma medida
onde o perdido carrega o que vem
o tempo deita-se sob o tempo
de repente
o vazio do anel
torna-se o vazio do aberto
o O
de um grito que nos atira
pelo ar
a arte
não é eficaz
o desejo também não
deixemos a eficácia para a roda
e digam-me onde é o seu começo
os caminhos não fazem sinal
eles são caminhos
simplesmente
a língua desaparece sob as pedras
estar aqui é suficiente
no entanto
quem conhece o instante
nós fugimos ao pensamento no pensamento
lembras-te
ele era esse monte de cabelos
sem boca
apenas a tua sombra o cobria
não há sujeito
não há profundidade
apenas o esquecimento
onde vamos para pecar
e por vezes é tão bonito
aqui e ali brincam juntos
o céu esconde a mesma coisa
que o mar
toda a forma diz NÃO ao vazio
mas
o intervalo fazes tu
eh que posso eu
se o azul não é tão belo sobre os teus lábios
como ao longe
nós procuramos por todo o lado o em lugar nenhum
de uma outra terra
o perecível
está nos nossos olhos
a luz verte-se para fora
é o suor das coisas
escuta
eu não tenho nada sobre a língua
mas digo
estar aqui é muito
e pela primeira vez
ouvimos o ar amarrotado
sob a asa do pássaro
uma andorinha
o único é sem limite
eu não arrumo na minha cabeça
o uma vez
esta vez perde-se no ter sido
e uma vez resta uma vez
como o vento sobre a mão
escuta
ninguém imagina ser
senão nós
e isso faz de nós a besta
de um labirinto de ar
onde cada um só se vigia a si mesmo
entre o dito que morre e o não dito
que vai morrer
a boca é o remetente
do exprimível
a morte
perde o fôlego
e a vida
dança
alto
depois nada
vírgula sexual
palavras em demasia
acreditámos no poder da palavra
e a terra ferveu
onde está a nossa casa
se a minha língua apaga todas as portas
as palavras imitam um segredo
que sacodem
eu escrevo por amor dos olhos
que são o meu conteúdo
rosto rosto
não há candeeiros suficientes
e livros demais
mas o mar está aqui
imóvel
e nessa imobilidade
a linguagem reconhece a sua promessa
olha
a imobilidade chama o vento
o estado de angústia está ligado
à gota em movimento
assim vai a palavra
na ilusão que se desfaz
nada será seguro
a própria ideia abisma-se
na ideia
que história
entre ti e o mundo
que palavra-a-palavra
contra natura
os olhos da minha amiga estão na terra
aquela que me dizia Canta
agora
escrevo
cada linha come
o que a terra já comeu
miséria
miséria
eis que vem a mentira
a quem se dirigir
a quê                                   
uma noite
nós fomos
eu sobre ti
e a chuva sobre o telhado
sim
ninguém fala com ninguém
mas as nossas línguas por vezes
são as de duas bestas
que brincam e se entendem     
sim
o que é que é possível
o desejo
a usura do desejo pelo desejo
e no entanto
tu fazes parte de mim
como o sopro faz parte
da boca que abandona
eu queria
como viver
eu queria
eu queria examinar em mim
aquilo que precisa de querer
e aí os meus lábios procurariam
a fenda
e tu dirias
mostra-me o rosto
e haveria
aqui mesmo
o face a face
de mim e do meu esquecimento
mas quê
o que é que está em jogo
escrever
pousar aqui
uma palavra-buraco
pousar a minha boca
e que este O
seja o aberto
de uma bela loucura
agora 
agora
agora