Deslizar

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Jackson Pollock, Numer 16, 1950

Desde a origem, filo e ontogenética, lançamo-nos em busca de um princípio que guie a nossa existência. Os chamamentos dos princípios de fé, do sucesso ou do prazer, por exemplo, mostram isso. É evidente que não são exteriores às condições bio-sócio-axiológicas, a vida, a sociedade e os valores definem muitas das nossas escolhas. Se é verdade, seguindo Sartre, que não podemos deixar de escolher (escolhe-se, inclusive, o não-escolher), também é certo que não podemos escolher tudo o que nos apetece (um apetite já por si limitado, porque não é o de Deus). Por outro lado, dada a complexidade de existir, de ser-aí no meio do mundo, só um fanático puro conseguiria manter-se nos estritos, e estreitos, limites do princípio escolhido para guia. Ora, sabemos que há muitos fanáticos (sempre excessivos), que o fanatismo ajuda os simplórios a acreditarem que, ilusoriamente, são significantes, mas também sabemos que o fanático puro é um ideal; puro ou impuro, admirável ou repulsivo, consoante o ponto de vista.

Dentro dos princípios existenciais, um domina a existência humana há séculos, embora nunca a oposição tenha sido definitivamente eliminada (e tenha até levado a melhor em certas circunstâncias): é o princípio de enraizamento. Devemos enraizar-nos, na família como no emprego, na sociedade como na confraria dos amigos, nos amores como nos ódios, em nós próprios como nos outros significativos. Daí advém o desprestígio do sobrevoo, do “parecer uma libelinha”, da desconcentração, do superficial; e, inversamente, o prestígio do profundo, do sério, do concentrado, do ser.

Portanto, estar enraizado é estar consolidado, ter uma permanência, uma decência sedentária que nos torna, aos nossos e aos olhos dos outros, confiáveis. Um neo-identitarismo, politicamente bastante evidente, declinado nos mais variados nacionalismos e regionalismos, da esquerda à direita, evidencia esta antropologia do enraizamento (que num campo mítico vai de Ulisses a regressar a Ítaca até ao retorno a Casa dos nossos emigrantes). Mas ultimamente, ressoou cada vez mais claramente um eco que vem de longe e que, embora nas margens, pontuou uma parte da dissidência.

Vislumbra-se o aumento das formas de nomadismo, que numa linha de ação estão mais próximas de Henry David Thoreau e do seu Walden; or, Life in the Woods, desenhando guias para nos depositarmos numa natureza o menos domesticada possível; e, noutra linha, mais próxima do viandante nietzscheano, propõe-se um desenraizamento através de saltos firmes entre lugares que se amam, evitando qualquer tipo de alienação (em Nietzsche, Sils-Maria, nos Alpes, Nice, Turim e um pouco de Basel), onde não nos fixamos o tempo suficiente para ganhar raízes irredutíveis.

É por isso que talvez valha a pena experimentar o princípio do deslizamento contra o do enraizamento. Deslizar é imprimir movimento para não ser capturado, conservar a liberdade, ganhar perspetiva, trabalhar mais facilmente a auto-superação, uma boa deriva (sem a angústia do centro, do abandono). E é também uma forma de não macular o mundo, não o marcar a ferros, não o subjugar, mantendo-se uma vertigem horizontal, habitar mais o horizonte do que o íntimo. Quem desliza reduz o rasto ao mínimo (pense-se no deslizar na neve ou na água), ficar na superfície das coisas, respeitar a sua condição de existência. Sem que deslizar seja sinónimo de um qualquer superficialismo estéril, ficar na superfície deslizando é outra forma de reflexão e de intuição, permite uma compreensão e um comprometimento até mais esclarecedores e intensos do que o de ir às profundezas, onde se privilegiam estratos interiores subjetivos e solitários, em vez dos exteriores, muito mais conectados, integrados no mundo, no tempo e no espaço da história, reais e vivos.