A Psicopolítica segundo Byung-Chul Han - Nota de Leitura
/Em Psicopolítica. Neoliberalismo e novas técnicas de poder (Pschopolitik, 2014, tradução de Miguel Serras Pereira para a Relógio D’Água), Byung-Chul Han, pensador prolífico e bem-amado (europeu tardio, veio para a Alemanha depois de abandonar um curso superior relacionado com a metalurgia na Correia do Sul, de onde é originário), defende que a biopolítica, de Michel Foucault e Giorgio Agamben, se transformou em psicopolítica. Nesta nova forma de organização do poder, «O sujeito do rendimento, que se pretende livre, é na realidade um escravo. É um escravo absoluto, na medida em que sem qualquer senhor se explora a si próprio de forma voluntária. Não tem diante de si um senhor que o obrigue a trabalhar.» (p. 12) Além disso, a universalização do smartphone, alvo de uma profunda «devoção digital», universalizou o «exame e controle de si». Este livro prolonga Topologie der Gewalt, 2011, (Topologia da Violência, tradução de Miguel Serras Pereira para a Relógio D’Água), no qual observa que a violência deixou de ser exercida do exterior, passando a ser autoengendrada: ela «afasta-se cada vez mais da negatividade do outro ou do inimigo e incide cada vez mais sobre o próprio sujeito.» (p. 11) Passando de uma «deformação» da sociedade disciplinar para uma «depressão» da sociedade do rendimento. A pior das violências não é a da negatividade e do visível, mas a da positividade e do invisível, «exercida sem necessidade de inimigos nem dominação.» (idem, p. 10) Mas acrescenta também linhas de sentido a Was ist Macht? de 2005 (Sobre o Poder — não percebo porque alteraram tanto o título —, tradução Miguel Serras Pereira, Relógio D’Água, 2017), por vezes tanto que parecer ser outro Byung-Chul Han. Neste livro trata-se sobretudo, a partir de Michel Foucault, de criticar a ideia de que o «poder opera unicamente inibindo ou destruindo.» (p. 16) Pelo contrário, ele funciona como um catalisador que influencia ou acelera determinados processos, ele é produtivo. Claro que também há o poder destrutivo, o da opressão de um ditador, que retira liberdade ao sujeito. E talvez seja até maioritário. Mas, o que Han quis fazer neste livro foi realçar o poder como possibilidade de autoafirmação e a sensação de prazer e liberdade que daí emerge.
Regressando à Psicopolítica, não há qualquer tipo de revolução que a partir da incubadora marxista (refere-se sobretudo às ilusões de Antonio Negri com a sua «multidão cooperante») consiga estancar este novo modo de servidão, auto-servidão, auto-exploração. A «sociedade neoliberal do rendimento» abafou toda a resistência possível. Os mecanismos de contrapoder e de escrutínio são tão reduzidos que quase se resumem a um vago imperativo de transparência (criticado, contra a vox populi, pelo autor)[1] para denunciar escândalos políticos (atacam-se as pessoas mais do que as ideias).
Durante o século xx, o poder foi sobretudo disciplinar e dominado pela negatividade. Este poder, seguindo Foucault (Surveiller et punir, 1975; Histoire de la sexualité Vol. 1. La volonté de savoir, 1975; e, do mesmo ano, o curso no Collège de France, Il faut défendre la société), surgiu no século xvii e deixou de ser o poder de morte que detinham os soberanos, como se fossem Deus, sobre os súbditos: «Em vez de torturar o corpo, o poder disciplinar fixa-o a um sistema de normas.» (Psicopolítica, p. 29) É um poder normativo que atua sobre o corpo e a mente do sujeito da obediência e do dever. Mas esse poder, coagindo com alguma violência através de preceitos e proibições, foi substituído por um muito mais eficaz: amável, manipulador, afirmativo e sedutor. «Seduz em vez de proibir. Não enfrenta o sujeito, concede-lhe facilidades.» (idem, p. 24) «O neoliberalismo é o capitalismo do “Gosto”. Distingue-se substancialmente do capitalismo do século xx, que operava por meio de coações e de proibições disciplinares.» (idem, p. 25) E Foucault (morreu em 1984, com 57 anos), segundo Han, não efetuou a passagem, apesar dos vários indícios que se podiam ler na realidade social, da biopolítica (poder disciplinar sobre a vida) à psicopolítica. Tal teria acontecido, ainda segundo Han, se Foucault não tivesse morrido precocemente. Han não concede a mesma lucidez a Giorgio Agamben.
Se o capitalismo do século xx se preocupava, em primeiro lugar, com o biológico, o neoliberalismo atende à psique. Para o conseguir, «A psicopolítica neoliberal é uma política inteligente que procura agradar em vez de submeter.» (idem, p. 46) É por isso que se trabalha tanto o campo das emoções do «sujeito narcísico», a sociedade de consumo compra emoções e significações, muito mais o valor emotivo do que o de uso: «O capitalismo do consumo introduz emoções para estimular a compra e engendrar necessidades.» (idem, p. 55) Daí que, no mercado de trabalho, as competências emocionais quase tenham destronado as cognitivas. E tudo isto se joga ao nível pré-reflexivo, o que dificulta ainda mais a denúncia e a resistência. Tanto mais que o Big Data consegue, a partir das interações digitais, representar com extrema exatidão a «nossa pessoa, [a] nossa alma — uma representação talvez mais precisa ou completa do que a imagem que fazemos de nós próprios.» (idem, p. 71) Essa «lupa digital» favorece uma psicopolítica capaz de ler os nossos desejos mais profundos (talvez ininteligíveis para nós).
É preciso regressar a Topologia da Violência para sabermos o que a sociedade do rendimento, com os seus princípios de liberdade e desregulação, provocou na sociedade. Um campo patológico, vasto e profundo, governa uma grande parte dos indivíduos: na depressão vê-se o «fracasso de sujeito forçado à iniciativa perante o incontrolável» (p. 45); no burnout «é a relação tensa, de sobrecarga excessiva, de si mesmo consigo, que assume traços destrutivos.» (ibidem) Duas formas de autoagressão que não estavam inscritas na sociedade disciplinar. Para um dos seus principais teóricos, Karl Schmitt, a política vive da luta contra o inimigo, a possibilidade real da violência é a essência do político. Agora, o sujeito do rendimento, sem a negatividade do inimigo, vira-se para e contra si, «compete consigo mesmo e procura superar-se a si mesmo. Entra assim numa competição fatal consigo mesmo, num círculo infinito que, a certo momento, caba num colapso.» (idem, p. 62)
[1] Fundamentalmente porque, no fim de contas, pretende eliminar o estranho, forçando à conformidade.