Vitimização, ressentimento e tradução

 

I

Nunca o Planeta foi tão humanamente ruidoso, porque somos imensos e porque não conseguimos ficar em silêncio a pensar e a imaginar antes de agir. Parece que o ser humano se compraz em gritar, não isto ou aquilo, mas contra quem quer que não partilhe a sua opinião. Na guerra que está em curso no Médio Oriente, claro, mas também nas eleições polacas, na invasão da Ucrânia pela Rússia, no choque entre os grandes blocos geopolíticos dos USA e da China, no sentimento anti-imigrantes europeu e no anti-europeu africano, a norte como a sul do deserto do Sáara, nas igrejas políticas dos extremos, esquerda e direita... Vivemos num paroxismo de ódio e raiva, numa vertigem de vingança. Chegamos, como Nietzsche temia, a num niilismo que se alimenta de dois sentimentos (mistura de instinto e de socialização): ressentimento e vitimização. Daí que a fúria, directa ou vicariante, se tenha sobreposto à razão (a parte boa da razão apolínea). Daí que os argumentos sejam escrutinados pela bitola da superioridade moral mais do que pela da coerência interna ou consistência pragmática.

Parece-me, pois, que devemos de traduzir de outra forma os nossos desejos e emoções, traduzir também as nossas palavras interiores, as que se seguem imediatamente aos impulsos mais básicos e que tantas vezes nos empurram para a crueldade, para uma falha grosseira de empatia ou uma empatia selectiva. Trata-se de nos interpretarmos para preservarmos a nossa humanidade e a humanidade do outro (essencial para a nossa).  Mais do que gritar convicções, devemos de traduzi-las, interpretá-las e compreendê-las, talvez para as anular, antes de as lançar ao vento, que tantas vezes as vira contra nós. E àqueles que julgam que os problemas da injustiça se resolvem através da crueldade, é preciso dizer-lhes que nenhuma liberdade ou emancipação se ganhou alguma vez através da ignomínia. Que devemos sempre conduzir-nos como guardiões da humanidade, de uma humanidade partilhada.

Reativemos, pois, o bom ceticismo, sem cair na indiferença. Sejamos capazes, por exemplo, de condenar energicamente os assassinatos perpetrados pelo Hamas (contra israelitas e palestinianos divergentes da sua causa), mas questionar também o contexto geopolítico que não permite uma paz estável entre israelitas e palestinianos (parto do princípio de que o Médio Oriente está cevado por um mal que é banal, seguindo a interpretação de Hannah Arendt). Uma crítica equidistante à procura de uma paz perpétua.

Que tem isto que ver com o mundo da tradução? Senão tudo, pelo menos muita coisa. Se entendermos a tradução como está postulada em Depois de Babel de George Steiner: «a tradução está, formal e pragmaticamente, implícita em todo o acto de comunicação, na emissão e na recepção de todos os modos de sentido, tanto no sentido semiótico mais amplo como nas trocas mais especificamente verbais. Compreender é decifrar. Entender uma significação é traduzir.»[1] Resta, pois, perceber como entende Steiner a tradução, concordar ou não com ele é outra questão. Será essa a finalidade das próximas duas páginas, apresentando desde já uma constatação: não há traduções literais, nem de obras nem de impulsos ou instintos, só através de várias e irredutíveis circunvoluções chegamos a produzir um sentido de chegada que nunca é idêntico ao sentido de partida, seja o pré-reflexivo dos instintos seja o da obra original.

II

Regressei, por caminhos que se me impuseram mais do que escolhi, a Antígonas de George Steiner.[2] Costumo deixar um rasto no que leio, sobretudo quando são ensaios, porque receio perder as marcas de inteligência, interessa-me menos compor uma erudição, útil ou fútil. Foi, por isso, fácil encontrar o que julgava procurar (a leitura de Steiner sobre teoria da tragédia do jovem Friedrich Nietzsche) e surpreendente descobrir apontamentos sobre o problema da tradução que, entretanto, tinha esquecido (até porque a principal obra de Steiner acerca deste tema é Depois de Babel).

Há uns meses, em conversa com Marcos Foz, na livraria Snob, disse, acerca de uma tradução em concreto, que o tradutor quisera evidenciar uma mestria exagerada, que dessa forma já não sabia se leria o autor ou o tradutor, que preferia as traduções nas quais quase não se notava a presença do tradutor.

Na me recordo se Marcos Foz anuiu, creio que o enunciado não diluía a minha responsabilidade nem procurava argumentos que confirmassem ou infirmassem aquilo que dissera. Talvez por ter sido mais uma intuição do que uma reflexão. Uma daquelas boas fulgurações em que emerge, e nos submerge, um sentido que não esperávamos, verdade relâmpago.

Neste meu retorno (será eterno?) a Steiner, encontrei aquela mesma verdade envolta em argumentos (sempre mais sintéticos do que analíticos, neste pensador). E senti uma alegre-tristeza ao ver que não estava só (como o génio ou como o louco, talvez o génio-louco).[3] Será um pouco isto, creio, que se sentirá no mundo das ideias (não o de Platão, mas o imanente no qual vivem, com todos os esplendores e melancolias que se possam imaginar, os amigos dos conceitos e das metáforas). Plagiar involuntariamente dá-nos a medida da nossa comensurabilidade colectiva, de uma filogénese das ideias, dos limites, afinal estreitos, da genialidade. Genialidade que o romantismo oitocentista, obcecado pelo intempestivo e pelo sublime, compreendeu, talvez sem se aperceber da contradição, como dever de emancipação, fatalidade e liberdade (naquela época, os génios inventavam mundos investidos de um poder sobre-humano que verdadeiramente não lhes pertencia, emancipavam os homens impelidos por forças que se tinham apoderado deles. Faziam, assim, demasiadas rasantes à vertigem da loucura e não tinham coração para viver muitos anos, mas sabiam pairar sobre os abismos).

Hoje, não há génios, porque ninguém acredita neles (esquecemos a teologia das alturas rochosas), as nossas aventuras são modestas (porque indigentes, escrevemos manifestos sem dentes), apesar da bazófia do marketing. Um racionalismo plano, redondo e as vagas sucessivas do capitalismo (ui, afinal também sou anticapitalista) afogaram todas as possibilidades de grandeza (que seria sempre a de um semi-Ícaro, ou melhor, a de crentes em semi-Ícaros).

Fazemos, pois, pequenas coisas e vivemos muitos anos. Muitos anos com poucas ideias e seguros de vida caros. É talvez por isso que escolhemos um eterno retorno que rebaixa (em Nietzsche eleva, mesmo que abra as portas das trevas, não fica é a meio caminho, no banal e irrelevante confortáveis), não avançamos, preferimos os resíduos do passado que já conhecemos. Somos a civilização da ruminação. Queremos futuro, não o nego, mas já não aguentamos os abismos que vêm com ele. Desejamos amanhãs previsíveis, quando eles faltam regressamos ao passado (embora viciados numa ideia ingénua de progresso).

Mas voltar a Steiner não é bem a mesma coisa do que retornar ao conhecido. Com ele, no mínimo, ganhamos balanço para entrarmos com mais força e mais temeridade no desconhecido. Sem muito controlo mas com grande júbilo. E no máximo descobrimos que, afinal, não o tínhamos lido bem, regressamos a ele para descobrir o novo. Até porque, como é tantas vezes evidente, «A leitura nunca é estática. O sentido é sempre móvel.» (Steiner: Antigonas, 245)

Antes de citar a ideia que plagiei involuntariamente, há mais duas notas sobre a arte de levar de um lado para outro o pensamento e a sensibilidade, uma arte (uso o termo «arte» para realçar que não há um método exemplar para o processo de tradução) fundamental para o espírito: «Sem a tradução, as nossas iniciativas de espírito e forma rapidamente se perderiam num regresso à inércia.» (Idem, 246) Primeira nota, «nenhuma tradução é inteiramente comensurável com o original, uma vez que mesmo na mais perfeita tradução há sempre essas linhas quebradiças que afectam o contacto entre a instância da origem e a da receção.» (Idem, 247) Segunda nota, as traduções são «produtos de uma densa herança histórica. Chegam muito depois. Estejam ou não explicitamente conscientes do facto, a acumulação das edições, exegeses, encenações e leituras críticas anteriores age[m] sobre a maneira que é a da sua compreensão.» (Idem, 250-51)

Agora, a ideia plagiada. Steiner começa por dizer que «A grande maioria das traduções são más. São imprecisas, frouxas, redundantes, estilística e conceptualmente deficientes, e complacentes com o erro.» (Idem, 247) Mas o pior está nas traduções maiores, nas palavras de Steiner: «Mais falsa é a tradução “grande” ou “de nível superior” que interpõe a sua fulguração obscura e o seu virtuosismo entre nós próprios e o original.» (Idem, 248) No segundo prefácio a Depois de Babel (1992) inserirá isto no campo mais vasto da «transfiguração», uma «questão moral» decisiva: «em que o peso e a irradiação intrínsecas da tradução eclipsam os da origem». (p. 20)

Assim, o tradutor — de si, do mundo e de livros — trai e recria. A linguagem traduz sempre imperfeitamente, mas é desta imperfeição, e só dela, que emerge o humano.

[1] Depois de Babel. Aspectos da Linguagem e Tradução, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa; Relógio D’Água, 2002 [1975, 1992, 1998], p. 16.
[2] Antígonas. A persistência da lenda de Antígona na literatura, arte e pensamento ocidentais, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Relógio D’Água 1995 [1984].
[3] Acabo de surpreender, no The Guardian, Killian Fox a dizer «I hate Reading books where you find your own opinion confirmed.» A propósito, imagine-se, de um Antigone’s Parallax, livro da filósofa eslovena Alenka Zuancic.