Se tens noite

Se tens noite   confunde-a com o teu rosto

e deixa que o sereno retire das entranhas

da terra um pequeno ruído   uma haste

em que se erga um pequeno vulcão definitivo

um testamento ao fim dos dias   se tens noite

guarda-a devagar na minha garganta

suspira-a como se o transtorno que te causa

a unidade das coisas não te afectasse

como se fosses indiferente à pressa do consolo

ao amparo dos tristes   à comunhão dos séculos

se tens noite   meu amor   meu acalanto

se tens noite   não a deixes de cuspir

como quem naufraga   como quem espera o caos

que sempre se forma em quem sente as coisas

e se deixa seduzir e se deixa levar até entender

como somos areia repetida na mesma engrenagem

que espera a revolução dos outros para dormir

uma nobre sesta à eternidade dos Titãs

e se tens noite   meu bem   não te esqueças

de a atirar à roda   e à pólvora   e a todos

os rudimentos que fizeram de nós tribos sem tribo

planetas sem aves   estertores sem ruído

se tens noite   põe-na devagar na minha mão

que seja a primeira a dizer que a teve

como quem segurou um livro   se tens noite

se tens noite   que digo eu   estou farto

estou condicionado ao mesmo arbusto

às mesmas pinhas que tinham pequenas

reentrâncias de onde saíam sementes que nunca

eram pinhões   lembras-te?   como as púnhamos

na boca e tinham asas e nada daquilo

era o que nos prometeram   e quando era noite

aprendíamos a distinguir pinheiro bravo

de pinheiro manso   e claro   como podia eu

criança como tu   saber que os pinheiros lutavam

e que uns herdariam o reino dos céus enquanto

aqueles que habitavam a minha infância

deixavam-se sobreviver como agulhas   agora sei

e tu   se tens noite   diz-me se não é verdade

que não há mata mais erguida mais alcandorada

do que aquela em que o arvoredo nos retém

como um ponto de onde nunca se regressa.