Cormac McCarthy, elogio fúnebre

Morreu Cormac McCarthy, os que lerem este texto sabem-no já quase de certeza, o autor de livros que redesenharam uma parcela importante da literatura americana e mundial, que temos a sorte de estar inteiramente traduzida em português continental por Paulo Faria.

A Enfermaria escolheu fazer o elogio fúnebre pedindo emprestada a palavra a Isabel Lucas, Paulo Faria, A.O. Scott (The New York Times) e Eduardo Lago (El Pais). Dos dois primeiros, resumimos muito o que publicaram há poucos dias no jornal Público (deixamos os links e esperamos que possam ler os artigos na íntegra, vale a pena); dos segundos, propomos uma tradução de Victor Gonçalves (também com o link para os originais).

Isabel Lucas diz que os livros de McCarthy contêm qualquer coisa de indomável, são um retrato do caos humano. «Obra fundamental para a literatura deste tempo.» Morreu, refere ainda, um escritor de outro tempo, pré-digital, enamorado pelos sentidos das coisas tangíveis. (Artigo aqui)

Paulo Faria, por sua vez, tradutor e discípulo, assegura que «uma imensa tristeza desce sobre nós.» Alarga também este desaparecimento a «um certo tempo, uma certa literatura». Uma literatura alimentada pelo mundo das coisas próximas, sem qualquer tipo de computação a mediar entre o fora (mundo físico) e o teclado da máquina de escrever. Ele que era um cientista amador, atento, pois, à vanguarda teórica. (Artigo aqui)

By A.O. Scott (The New York Times)

  • June 14, 2023 (aqui)

Uma página de Cormac McCarthy pode por vezes ser tomada como ou poesia ou como prosa: as frases curtas; a pontuação esparsa; a margem direita recortada. A dicção, especialmente nos livros que se seguiram a Blood Meridian [Meridiano de Sangue] (1985), é ao mesmo tempo austera e lírica, despida do ruído da vida moderna e sintonizada em frequências elementares e metafísicas. Mesmo na sua expressão idiomática mais precisa — gerúndios com g's soltos, «could of» por «could have», «it was» em vez de «there was» — a sua linguagem pode parecer intemporal:

«The boy stood up. He looked off up the meadow. There were two ravens sitting in a barren tree. They must have flown as they were riding up. Other than that there was nothing.
Where do you reckon the rest of the cattle have got to?
I dont know.
If they’s a dead cow in the pasture will the rest of the cattle stay there?»
McCarthy, como todos os escritores, pertenceu ao seu tempo, mesmo quando, talvez mais intensamente do que a maioria dos escritores, se esforçou por criar uma obra que lhe sobrevivesse. Numa crítica astuta e céptica de No Country for Old Men [Este País não é Para Velhos] (2005) no The New York Review of Books, Joyce Carol Oates observou que «tal como o seu quase exacto contemporâneo John Updike escreveu com uma ternura extática sobre o amor físico heterossexual, também McCarthy escreve sobre a violência física com uma atenção que não se encontra em nenhum outro escritor sério que eu conheça, excepto Sade».

A autora prossegue citando uma passagem memoravelmente sangrenta — «He lay half headless on the bed with his arms outflung, most of his right hand missing» — num livro notavelmente brutal, mas é a justaposição desses nomes improváveis que chama a atenção. Colocar McCarthy, o moralista taciturno da fronteira do Sudoeste, na companhia de Updike, o sensualista de língua prateada dos subúrbios americanos, pode parecer quase perverso, a não ser que se considere a quase coincidência dos seus aniversários como algo mais do que mera coincidência.

E devo dizer que o considero. A comparação casual de Oates contém uma verdadeira visão histórico-literária. Estes dois escritores fazem parte de um grupo geracional que reescreveu o genoma da prosa americana, alargando o seu leque temático e recalibrando, ao nível do estilo e da sintaxe, o que ela podia fazer. Hesito em afirmar que os ensaístas e escritores de ficção nascidos na primeira metade da década de 1930 constituem uma grande geração literária, mas consideremos esta meia dúzia de nomes, listados por ordem cronológica de nascimento: Toni Morrison (1931); Updike (1932); Susan Sontag, Philip Roth e McCarthy (todos em 1933); e Joan Didion (1934).

Poder-se-ia continuar a avançar pela década, acrescentando à lista (para começar) Don DeLillo (1936), Thomas Pynchon (1937) e a própria Oates (1938). Mas aqueles seis constituem um cânone formidável por si só. Não que se assemelhem remotamente uns aos outros: cada um representa uma sensibilidade singular e uma voz original, uma personalidade própria que é inconfundível e inimitável.

O que partilharam foi a capacidade de sintetizar influências heterogéneas — os grandes romancistas europeus do século XIX, as vanguardas transnacionais do século XX, Moby-Dick e Henry James, Hemingway, Faulkner e Huckleberry Finn — com uma confiança que pode parecer, no nosso ansioso momento actual, quase uma arrogância. Divergindo dos cânones do realismo americano e dos dogmas do modernismo internacional, embora incorporando aspectos de ambas as tradições, não se filiaram a nenhuma escola ou movimento. Sem coordenação, e com uma idiossincrasia tenaz, redesenharam as fronteiras do mainstream literário.

Em comparação com os outros, McCarthy foi um pouco tardio — o último de entre eles a alcançar o reconhecimento da crítica, a celebridade (que desdenhava) e o estatuto de grande escritor. A sua ascensão coincidiu com uma mudança na sua escrita em termos de região, género, forma e precursor essencial. Passou do Sul para o Oeste, do gótico fronteiriço para o épico fronteiriço, do lúgubre para o oracular, de Faulkner para Hemingway.

A Trilogia da Fronteira — All the Pretty Horses [Belos Cavalos], The Crossing [A Travessia], e  Cities of the Plain [Cidades da Planície] — alargou o seu número de leitores, em parte porque, sem piscar o olho ou ser paternalista, explorou uma estirpe potente e mítica da cultura popular. São romances de cowboys, cheios de estoicismo viril, violência implacável e evocações elegíacas e quase sentimentais da natureza, da geografia e da história dos índios:

«In the evening he saddled his horse and rode out west from the house. The wind was much abated and it was very cold and the sun sat blood red and elliptic under the reefs of bloodred cloud before him. He rode where he would always choose to ride, out where the western fork of the old Comanche road coming down out of the Kiowa country to the north passed through the westernmost section of the ranch and you could see the faint trace of it bending south over the low prairie that lay between the north and middle forks of the Concho River.»

Ao ler estas frases de All the Pretty Horses, pode ver o filme a desenrolar-se na sua cabeça. A versão para o ecrã de 2000 — dirigida por Billy Bob Thornton e protagonizada por Matt Damon e Penelope Cruz —- não é excelente, mas McCarthy tem sido mais bem servido por Hollywood do que a maioria dos seus contemporâneos. Morrison pode ser o único laureado com o Prémio Nobel do grupo, mas até agora McCarthy é o único cuja obra deu origem a um vencedor do Óscar de melhor filme. Os irmãos Coen, que adaptaram No Country for Old Men, descreveram o processo de escrita como «Joel segura o livro aberto pela lombada» enquanto Ethan o reescreve, e parece haver uma afinidade natural entre o trabalho posterior de McCarthy e as inclinações do cinema contemporâneo.

No Country, The Road e The Counselor [O Conselheiro] — um conto pós-apocalíptico encabeçado por duas histórias de crime hard-boiled (a última escrita directamente para o ecrã) — constituem uma segunda trilogia, preocupada com a persistência do mal e o colapso da ordem moral. Esta é definida, de forma bastante explícita, como uma crise do patriarcado, uma erosão da autoridade dos pais e dos seus homólogos, uma perda da possibilidade de heroísmo.

O conservadorismo desta visão é evidente e sugere outra ligação geracional, entre McCarthy e Clint Eastwood, que nasceu em 1930 e cuja mistura de pessimismo metafísico, humor duro e estilo despojado faz com que alguns dos seus últimos filmes pareçam mesmo McCarthyescos. Ambos podem parecer — e têm-se apresentado como — os últimos de uma raça. Mas cada um deles inventou algo novo. Eastwood deu nova vida a formas cansadas. McCarthy escreveu livros que pareciam ter existido sempre.

Obras mais influentes de Cormac McCarthy

Blood Meridian [Meridiano de Sangue] (1985). Baseado vagamente em eventos históricos, o romance acompanha um jovem fictício de 14 anos, referido apenas como «o garoto», enquanto ele percorre o sudoeste americano. «Blood Meridian deixa claro que o Sr. McCarthy sempre nos pediu para testemunhar o mal, não para o compreender, mas para afirmar a sua realidade inexplicável», escreveu Caryn James na sua crítica para o The Times.
All the Pretty Horses [Belos Cavalos] (1992). Este best-seller é uma história de aventuras sobre um rapaz texano que parte com o seu amigo para o México. «A atracção magnética da ficção do Sr. McCarthy vem em primeiro lugar da extraordinária qualidade da sua prosa», escreveu Madison Smartt Bell na sua recensão.
The Crossing [A Travessia] (1994). O romance começa numa pequena fazenda de gado no Novo México, nos últimos anos da Depressão, e segue Billy Parham, um vaqueiro adolescente que atravessa repetidamente a fronteira com o México. «The Crossing é um milagre em prosa, um original americano» [an American original], escreveu Robert Hass na sua recensão.
No Country for Old Men [Este País não é Para Velhos] (2005). Esta história rápida e violenta centra-se num assassino frio como gelo, num xerife de uma pequena cidade e num cidadão comum que tropeça numa mala de couro com mais de 2 milhões de dólares. "No Country for Old Men é uma variação tão estimulante destas ortodoxias [de roman] noir como qualquer fã do género poderia esperar», escreveu Walter Kirn na sua recensão.
The Road [A Estrada] (2006). O livro é um relato desesperado de um rapaz e do seu pai que atravessam a paisagem fria, miserável, cheia de cadáveres e cinzenta de um mundo pós-apocalíptico. «O Sr. McCarthy convocou as suas visões mais ferozes para evocar a devastação. Dá voz ao indizível num conto de advertência conciso que é demasiado potente para ser entorpecente», escreveu Janet Maslin na sua recesão.
A.O. Scott é crítico geral da Book Review. Entrou para o The Times em 2000 e foi crítico de cinema até ao início de 2023. É também o autor de Better Living Through Criticism.

EDUARDO LAGO (El Pais)
Nova Iorque - 13 JUN 2023 - 21:52 CEST (aqui)

Cormac McCarthy morreu ontem na sua casa em Santa Fé, Novo México, aos 89 anos. A morte foi anunciada por um comunicado da sua editora, a Penguin Random House, que não indicou uma causa específica. O lugar de McCarthy na literatura do seu país é irrepetível. Um dos rasgos que definem a sua obra narrativa é a sua capacidade para explorar em profundidade o lado negro da natureza humana. Fê-lo numa dúzia de romances espantosos, tão poéticos e pungentes como brutais, tornando a leitura das suas obras uma experiência estética tão poderosa como angustiante, mas, em última análise, redentora, por aquilo que era, no fundo, uma fé profunda nos valores do humanismo e na capacidade da arte para os reafirmar.

Podem distinguir-se várias fases na sua carreira. A primeira, a mais enigmática e sombria, inclui romances como o semi-autobiográfico Suttree, integrado nos bosques do Tennessee e no cenário urbano de Knoxville. Esta fase da carreira de McCarthy termina com uma obra-prima absoluta, Blood Meridian. De leitura hipnótica, mas capaz de afastar muitos pela desolação selvagem das imagens, este romance dá-nos a medida do seu talento. Para Harold Bloom, foi um dos maiores romances americanos de todos os tempos, um herdeiro directo do que Melville alcançou nas suas próprias investigações sobre a natureza do mal. O protagonista, o juiz Holden, é a reencarnação de Ahab, o centro de gravidade de Moby Dick. Esta não é uma literatura para pusilâmines. A certa altura, as hostes sanguinárias que desfilam nas suas páginas deparam-se com uma árvore de cujos ramos pendem os corpos espetados de vários bebés.

Nascido em Providence, Rhode Island, em 1933, foi um dos quatro grandes nomes que definiram o rumo da literatura americana do nosso tempo, juntamente com Don DeLillo, Thomas Pynchon e Philip Roth. O quarteto, validado por figuras como Harold Bloom e David Foster Wallace, é problemático, pois ancora o código estético exclusivamente em figuras masculinas, brancas e heterossexuais. Isto deve ser interpretado como um sinal de carácter apocalíptico, o mesmo que preside à sua obra.

Com ele desaparece outro dos pilares de uma forma de entender a literatura que é hoje insustentável. Apesar de tudo, McCarthy continua a ser leitura obrigatória, pela grandeza da sua escrita e pela honestidade da sua indagação radical acerca da natureza humana. A sua morte deixa um vazio profundo. Reservado, recluso, ciumento da sua privacidade até ao paroxismo, Cormac McCarthy fazia parte do círculo de lendários reclusos literários a quem, por tanto o desdenharem, a grande maioria dos seus colegas escritores cobiça tudo: o dinheiro, a fama, a atenção, a veneração do público e dos media. Tal como J. D. Salinger ou Thomas Pynchon, Cormac McCarthy escreveu de costas para os seus leitores, ignorando as modas e as exigências comerciais, fiel exclusivamente a si próprio e às exigências da sua vocação artística. É a coragem de tal postura que deve ser apreciada.

Até pouco antes do seu 60º aniversário, era um pobretão. Viajava numa carrinha a cair aos bocados, escrevia em quartos de motel e até cortava o seu próprio cabelo quando era preciso. Os seus livros vendiam entre 2.000 e 3.000 exemplares, na melhor das hipóteses, apesar da imensa estatura literária de todos eles, incluindo várias obras-primas. Os críticos sérios viram desde o início que McCarthy estava ao nível do melhor que a literatura americana tinha produzido.

A segunda fase da sua obra começou com uma mudança significativa. Com a publicação de Belos Cavalos (1992), o primeiro volume da sua Trilogia da Fronteira, a vida do romancista sofreu uma viragem inesperada. Os prémios começaram a chegar. Os seus livros chegaram a vender-se aos milhões. Hollywood começou a cortejá-lo. Por instigação do seu agente, deu a primeira entrevista da sua vida. Incomodados com a sua celebridade, muitos dos seus fãs sentiram-se traídos, e é verdade que, embora o mérito literário da Trilogia seja inegável, ao entrar numa zona mais luminosa, o trabalho de McCarthy perdeu algum do seu vigor. Cidades da Planície, o último volume da Trilogia, foi publicado em 1988.

Futuro pós-apocalíptico

No século XXI, McCarthy publicou Este País não é Para Velhos (2005) e A Estrada (2006). Com A Estrada, uma narrativa sobre um futuro pós-apocalíptico em que os Estados Unidos surgem como um país habitado por sobreviventes envolvidos em práticas funestas como o canibalismo, Cormac McCarthy ganhou o Prémio Pulitzer e foi convidado para o programa de televisão de Oprah Winfrey. McCarthy aceitou de bom grado o convite. Algo parecia ter mudado no escritor anteriormente esquivo. Na noite da gala dos Óscares, onde triunfou o filme Este País não é Para Velhos, em que Javier Bardem desempenha um papel inesquecível que lhe valeu o Óscar de Melhor Actor Secundário, estava acompanhado pelo seu filho de oito anos. A Estrada foi transformada num filme realizado por John Hillcoat e protagonizado por Viggo Mortensen, Charlize Theron e Robert Duvall.

Seguiram-se 16 anos durante os quais McCarthy não publicou nada, embora durante todo esse tempo escrevesse incessantemente. Todos os dias ia para o Instituto de Santa Fé, onde era o único escritor num mundo ocupado exclusivamente por cientistas. Foi a sua aproximação à ciência que definiu uma estranha mudança de personalidade. Nessa altura, Cormac McCarthy já não era dono de si. Tinha entrado na lenda.

A publicação simultânea de O Passageiro e Stella Maris foi um novo tipo de desafio. Como disse Czeslaw Milosz quando falou do «segundo espaço», McCarthy já tinha passado para o outro lado da vida e estava a escrever a partir daí. Nem todos foram capazes de o seguir, embora houvesse entre os seus leitores alguns tão apaixonados como sempre. São, no fundo, dois grandes livros, apesar das suas irregularidades.

Com McCarthy, não desaparece apenas um grande narrador, mas também uma forma de enfrentar a obscuridade com as armas mais difíceis de sustentar, as que são empunhadas em nome de um ideal alheio às leis que regem o mundo.