Tradução literal
/Terminei há pouco a tradução de O Nascimento da Tragédia de Friedrich Nietzsche, um livro que coloca imensos problemas de tradução, porque é de Nietzsche, porque é em alemão (uma língua e uma cultura mais afastada da nossa do que, por exemplo, a francesa, inglesa ou espanhola) e porque é de 1872. Por isso, faz sentido pensar com vocês sobre se é possível, e desejável, desenvolver uma metodologia que tornasse as traduções menos dependentes do talento e das convicções individuais do tradutor. Algo, aliás, que talvez esteja contido na sugestão, que se tornou quase lei, de traduzir literalmente. Por outro lado, nalguns aspectos, parece que desaprendi uma certa arte de traduzir que tinha como designo pessoal quando escrevi em 2014 um texto para a Enfermaria 6 sobre o traduttore traditore.
Neste mini-ensaio, em parte presente na nova tradução de O Nascimento da Tragédia, direi por que razão julgo que as traduções não podem ser literais. Sendo, pois, sempre mais o resultado de um gesto artístico do que metodológico.
Guio-me metodologicamente pelo princípio, um pouco a contrapelo de uma nova escolástica, de que se a preocupação com a literalidade do que traduzimos está no início da nossa ação, ela não estará, contudo, no fim. Isto é, devemos pretender fazer uma tradução literal, sabendo, porém, que é impossível levá-la a cabo. Fundamental e incontornavelmente porque passamos significados e sentidos de uma língua e, igualmente importante, de uma cultura para outra. Podemos aplicar à tradução aquilo que Pierre Hadot diz do filosofar: «filosofamos sempre no interior de um jogo de linguagem, ou seja, para retomar a expressão de Wittgenstein, no seio de uma atitude e de uma forma de vida que doam sentido ao nosso discurso».[1] Por isso, como referem Ludwig Wittgenstein (1889-1951) e John Austin (1911-60), com terminologias diferentes, o significado é dado pelo uso. Sabemos, assim, o quão difícil é traduzir, e nunca literalmente, palavras (e muito mais do que isso, algumas são autênticas visões do mundo) como «Dasein», «garde-fou», «underdog, ou sencillo (bem sei, «simples», mas…).
Não nos esqueçamos que o termo latino translatio tinha originalmente o significado de «transporte», ou de «transferência de dinheiro entre bancos», mas também de «enxerto botânico», ou «desenvolvimento de um campo metafórico». Será isto que leva Umberto Eco (1932-2016), em Dire quasi la stessa cosa. Esperienze di traduzione[2] (Dizer Quase a Mesma Coisa) à ideia de negociação, como se faz no uso quotidiano da língua.
Desde modo, talvez George Steiner (1929-2020) não tenha razão ao defender, em After Babel (Depois de Babel), que a boa tradução escreve na língua de chegada aquilo que o autor teria dito se a falasse.[3] Prefiro, sem minar a inteligibilidade, levar o leitor ao texto original, como defendia Schleiermacher,[4] em vez de o autor à cultura e à língua de chegada, Por outro lado, recupero de Jean-Paul Sartre, mitigando um pouco a posição de Schleiermacher, a ideia de que as línguas não são códigos abstratos, elas devem ser subjetivadas: «[S]aber falar uma língua não é ter um conhecimento abstrato e puro da língua, tal como a definem os dicionários e as gramáticas académicas: é fazê-la nossa através das deformações e seleção regionais, profissionais e familiares.»[5]
Talvez por isso, Jacques Derrida, em O Monolinguismo do Outro, diga que «Nada é intraduzível num sentido, mas num outro sentido tudo é intraduzível, a tradução é um outro nome do impossível.»[6] Fernanda Bernardo, a nossa principal tradutora de Derrida, sintetiza o problema da tradução como um desafio permanente, «um compromisso possível, mas também sempre irremediavelmente imperfeito entre dois idiomas […] partidários que somos de traduções fidelíssimas na sua inevitável infidelidade».[7] Permito-me subscrever aquilo que diz esta filósofa.
[1] Exercices spirituels et philosophie antique. (Paris: Albin Michel, 2002), 368.
[2] Milão: Bompiani, 2003.
[3] Cf. Depois de Babel. Aspectos da Linguagem e Tradução. Trad. Miguel Serras Pereira (Lisboa: Relógio D’Água, 2002), 376–77.
[4] Cf. Sobre os Diferentes Métodos de Traduzir. Trad. notas e apresentação de José Miranda Justo (Porto: Elementos do Sudoeste, 2003).
[5] O Ser e o Nada. Trad., prefácio e notas de Victor Gonçalves (Lisboa: Edições 70 1022 [1943]), p. 614.
[6] Citado por Fernanda Bernardo, «Nota sobre a Edição e Tradução Portuguesa», in Jacques Derrida, Vadios (Coimbra: Palimage, 2009), p. 13.
[7] Idem, pp. 13‑14, 17.