uma lição de utilidade // um passo em sua direção

frank o'hara se você estiver certo
eu não posso carregar o coração
no meu bolso porque teria
de carregar seus collected poems
e não posso carregar
seus collected poems
com aquela anotável introdução
do amigo ashbery
não porque não quero
ou porque me sentiria estranho
(como alguém poderia
se sentir estranho
carregando você 
é o que me pergunto na madrugada fria) 
nem porque seria o alvo predileto
dos ladrões nas ruas
(que mundinho perfeito hein
esse nosso) eu não posso
carregar seus collected poems
por uma razão muito simples
não há bolso que caiba
essa bíblia toda rabiscada
vamos fazer um acordo
eu levo seus versos numa parte
bem guardada da minha perturbada cabeça
e sempre que for necessário
vou recitar dizendo
ouve essa do meu amigo frank
bom pra mim bom pra você 
frank o'hara eu tenho certeza
que você ama the wire como eu
vê se aparece em casa um dia desses
vamos tomar um porre quem sabe
você não imita o omar
indeed 

“a melodia do olho”

nicholas ray fazendo a barba com barbeador elétrico
na cama com a bunda de fora
na limousine vestido de paletó e gravata
nicholas ray tossindo no silêncio da noite
nicholas ray calado no cinema durante dez anos
nicholas ray morrendo de câncer
e fumando diante das câmeras
nicholas ray o sujeito que escreveu
experimentar a morte sem morrer
me parecia um objetivo natural

nicholas ray cujas imagens
da errância revelam por um instante
à razão de 24 fotogramas por segundo
quantos passos em chamas uma existência
caminha ao longo de uma vida
nicholas ray fazendo da ordem
"go ahead, cut"
suas últimas palavras
o gesto poético derradeiro
de quem sempre doou ao mundo
a melodia incerta e certeira
de seu único olho nicholas ray
um homem que sempre filmou
à altura da vida
e que se deixou filmar
à altura da morte