Dobrada fria, um poema de Gastão Cruz

In Memoriam (1941-2022)

Num restaurante fora do espaço e do
tempo
onde a um poeta, irreal também, serviram

dobrada fria ficaremos até
a nossa imagem do mundo se turvar
aí petrificada

estará
a substância do tempo a que daremos
o nome de passado

porém não há passado
fora do tempo só existe a vida
uma luz imortal que o tempo mata

De Existência, Assírio & Alvim, Lisboa, 2017

Lançamento de São Luís dos Portugueses em Chamas e Outros Textos

Gastão Cruz e Tatiana Faia

Gastão Cruz e Tatiana Faia

Ontem, 27 de Maio, no Bar Irreal, ao Poço dos Negros, Lisboa, a Enfermaria 6 lançou mais um livro (já lá vão 7, mais 3 cadernos). Desta feita, o trabalho de escrita da Tatiana Faia que temos vindo a anunciar aqui: São Luís dos Portugueses em Chamas e Outros Textos.

Lança-se um livro como se lança o martelo? Nietzsche diria que sim, ambos são armas que amassam os velhos edifícios enferrujados para que a sucata dê lugar a organismos vitais imbricados com o espírito do tempo (o velhíssimo Zeitgeist sempre actual).

Lança-se um livro como se lança o dardo? Longe, tanto que a autora nem vê onde ele aterra e se alguém o apanha e atira para outro continente.

Lança-se um livro como se lança uma seta? Perigosa e vibrante, nunca em linha recta, que assim viaja-se menos.

Talvez uma mistura dos três, e mais outros tantos modos, ninguém sabe realmente como se lança um livro, mal se liberta das mãos da autora e lançadores dá-se à sua maneira aos leitores, e estes, por sua vez, apanham-no e chegam a virá-lo do avesso, quando não lhes acontece isso a eles.

O que disse eu, trivial mestre de cerimónias: “li este livro admirável mais do que uma vez e com finalidades hermenêuticas diferentes, nunca me deixou triste e amplificou sempre a minha visão do mundo. Por outro lado, evita a simplicidade de orbitar à volta de uma espécie de pan-ansiedade que hoje tornou metade da população frenética e cumpridora, enquanto a outra metade é empurrada ou se empurra a si mesma para um pessimismo indolente. O São Luís... contém uma extraordinária galeria de personagens, o que lhe permite testar um alargadíssimo campo de vida, dissecando amostras significativas e pondo a funcionar novos dispositivos, orgânicos e inorgânicos. Tatiana é uma demiurga e comentadora da vida, mas dispõe-se também a um descentramento que privilegia o exterior, deixando-o muitas vezes tomar conta da narrativa, introduzindo deslizamentos, abanões e suplementos vitais. É por tudo isto que se deve cumprir o talento de Tatiana Faia. Finalmente, referi que o seu mundo da escrita se inspira e trabalha na Grécia Antiga, ao mesmo tempo que ama criticamente a actualidade e o nosso autocontentamento racional; a vertiginosa variação do tom, dos temas e do estilo permite a Tatiana Faia produzir uma espécie de mitologia vazia, onde clichés presunçosos e infrutíferos, ou desenhos clássicos, se transformam em nada.”

Gastão Cruz, magnífico poeta e crítico rigoroso, partilhou connosco a sua leitura de São Luís..., falou do sentimento de exílio, ele também esteve em Inglaterra, como leitor de português no King’s College, das referências cinematográficas e literárias, do jogo narrativo que Tatiana produz a partir de uma inscrição comprometida com a realidade. Mas deixou sobretudo duas pistas de leitura: uma é a incomunicabilidade, as personagens de São Luís... não conseguem tecer sentidos comuns, há uma barreira que impede fusões compreensivas entre o eu e o outro, entre o isto e o aquilo, o aqui e o além. As distâncias tornam-se, as palavras são minhas, incomensuráveis. Mesmo assim, com a ajuda da autora, soubemos que tudo é preferível à solidão, que “mais vale mal acompanhado do que só”. Gastão Cruz pôs a segunda pista de leitura nas relações, múltiplas relações que constantemente se tecem, nem sempre para o melhor, entre a narradora e as suas personagens e outras coisas e animais (escafandros ou gatos, por exemplo), e no interior dos textos, com a autonomia que a escrita foi ganhando (a própria Tatiana revelou esta condição do seu trabalho, os planos prévios são rudimentares sem determinações). Pode parecer contraditório justapor incomunicabilidade e relacionismo (permitam-me o neologismo, foneticamente bizarro, eu sei), mas trata-se de uma aposta, misturando a esperança pessoal e a literária, as várias Tatianas que acreditam em formas de redenção ligadas ao cuidado e a estima pela alteridade.

Gastão Cruz disse ao jornal Público, 5/4/2015, que: “Já me sinto um sobrevivente. Tive a sorte de ter amigos que admirava – e que continuo a admirar – e que pude acompanhar e ler à medida que iam fazendo as suas obras, algumas delas fundamentais na história da poesia portuguesa. E depois fui vendo esses amigos desaparecerem.” A esta delicada oração fúnebre juntou-se ontem, no entanto, a crença em que Tatiana Faia faz parte de um movimento de renovação da literatura portuguesa (cito de cor). E assim se cumpre outro desígnio (estas são ilações totalmente minhas) o de abrirmos as portas a uma nova escrita, menos sujeita a histórias encantadas, cheias de mistérios e truques estilísticos, mais inclinada para desafiar o estatuto e o lugar de autores e leitores, de críticos e editores, porque é uma escrita, como disse Gastão Cruz, quase impossível de catalogar.