Epístolas de Horácio - Cassandra Jordão Entrevista Pedro Braga Falcão

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Depois de um longo hiato, Cassandra Jordão volta à carga com uma entrevista a Pedro Braga Falcão, a propósito da sua tradução das Epístolas do poeta latino Horácio.

Ficámos de nos encontrar com o doutor (xôtor) Pedro Braga Falcão na livraria Flâneur no Porto. O tradutor de Horácio atrasou-se meia hora e compareceu no seu melhor fato de treino (ainda sem acertar com o detalhe da peúga por cima da calça, contudo). A livraria encontrava-se fechada e, como é costume nestes encontros entre literatos, dirigimo-nos para o café mais literário, mais boémio e mais próximo que nos foi possível encontrar. Ou assim garantimos ao poeta: as mesas eram de fórmica cinzenta com umas toalhinhas de papel por cima, havia uns croissants solitários e tristonhos (talvez de há dois dias, talvez um pouco mais) no expositor do balcão, e quando pedimos dois copos de vinho rosé não havia. Na verdade, nenhuma variedade de vinho estava disponível. Tivemos de nos contentar com café. Para nossa surpresa apareceu acompanhado do seu filho de cinco anos, que falava claramente demasiado e queria muito os croissants de dois dias. O tradutor não nos dispensou toda atenção que merecíamos por causa do pirralho, o que nunca fica bem num erudito.

Pedro Braga Falcão é doutorado em estudos clássicos com uma tese sobre a música da poesia de Horácio e há ainda uma licenciatura em música, como instrumentista de viola de arco (embora PBF não negue o seu interesse pela trompa). É professor na Universidade Católica Portuguesa, gosta de etimologias (Palavras que falam por nós, Clube do Autor), é autor de um livro de poemas (Do Princípio, também pela Cotovia) e há outro livro de poemas a sair em breve pela Enfermaria 6. Nenhum destes méritos iguala a audácia e a autoridade da sua opção por um venerável bigode (se é que podemos chamar bigode a um conjunto esparso de pêlos sobre o nariz). Juntámo-nos numa tarde de Outono, quase inverno, para falar da nova tradução das Epístolas de Horácio.

Como surgiu a ideia de traduzir as Epístolas de Horácio e porquê esta obra em particular? Foi por gostar de ler correspondência alheia?

Se tentar ler as epístolas de Horácio como correspondência alheia, vai ficar bastante desiludida (risos). Suponho que a única coisa que ficará a saber é que Horácio se tratava de um comilão baixinho, grisalho e corpulento, e que tinha um grupo grande de amigos de quem não sabemos praticamente nada. Bem, a Cassandra na sua qualidade de profetisa poderá saber mais qualquer coisa (risos afectados e estupidamente pedantes). Porque decidi traduzir as Epístolas? Na verdade, era a consequência lógica de traduzir as Odes; cronologicamente, era o que fazia mais sentido: as Epístolas foram publicadas a seguir aos primeiros três livros de odes... Mas a minha intenção é mesmo traduzir toda a obra de Horácio (só faltam os Epodos, as Sátiras e a Arte Poética).

O Pedro já havia traduzido as Odes de Horácio (também na Livros Cotovia, em 2008) e, antes disso, o Carmen Saeculare tinha sido objecto da sua tese de mestrado. Não há mesmo mais nenhum autor clássico que lhe interesse?

Claro que há. Aprecio muito Herberto Helder e António Ramos Rosa. Infelizmente ainda não se encontraram os manuscritos originais das suas obras, que toda a gente sabe que estão em latim.

Podia falar-nos um pouco de como começou a sua obsessão com Horácio e de porque é que continua a insistir nela?

Tudo começou quando a minha mãe me ensinou a ser poeta. Passados vinte anos encontrei Horácio. É claro que por vezes ele me aborrece bastante. Mas ensinou-me toda a imperfeição de um verso demasiado bem composto... nunca mais me esqueci de procurar nos versos essa vertigem de compositor de palavras, em tudo o que escrevo. Gostava de dizer que era uma obsessão essa busca, mas receio que ainda não estou nesse estado; ainda deixo alguns versos em paz.

Horácio tem influência sobre a sua criatividade enquanto poeta ou nem por isso?

Nem por isso. A minha criatividade vem da minha infância e das minhas longas brincadeiras no meu pinhal, a sós com o meu mundo de criança. Horácio é apenas um autor de vários que me ensinaram a estar na poesia. Bach, Beethoven, Tchaikovsky, Tom Jobim, Janis Joplin, Chico Buarque, Leonard Cohen, Jacques Brell, Gabriel Garcia Marquez, José Saramago, entre vários, foram outros poetas a fazê-lo. Sou um privilegiado por ter nascido quando toda essa gente já tinha andado por cá.

Que outro autor da antiguidade gostaria de traduzir?

Vergílio, claro. Outro poeta até à medula. Quando acabar de traduzir tudo de Horácio, talvez venha a traduzir tudo de Vergílio. Quem sabe. 

De todas as traduções de autores clássicos publicadas em Portugal na última década, qual a que mais o influenciou e porquê?

As Odes de Horácio da Cotovia (risos algo boçais). Foi uma influência decisiva para esta minha última tradução (continuam os risos idiotas e algo pedantes)... Bom, para dizer a verdade sou mais influenciado pelo trabalho da academia inglesia... Nisbet, West, Rudd... Enfim, tenho uma dívida de gratidão para com o trabalho de gente como esta, e tento sempre ser tão sério e honesto como estes foram na sua actividade intelectual e académica.

Pode elaborar um pouco – para os nossos leitores – sobre porque devemos ler as cartas de Horácio hoje (além do motivo óbvio de se ficar com a impressão de que estamos a ler o heterónimo com menos talento de Ricardo Reis)?

Em geral nunca elaboro antes do meio-dia, pode cair-me mal (não me parece que esteja a brincar, este tipo é um pouco afectado). Ricardo Reis nunca escreveu cartas em verso, o que me leva a considerar que talvez o seu horacianismo deixe um bocado a desejar (risos parvos). Bom, essa pergunta que faz é difícil de responder. Cada leitor terá a sua motivação para ler. A primeira razão é clássica: um texto que sobreviveu a dois mil anos de história num estado impecável de conservação (como poucos!) diz muito da sua qualidade.  Depois, o facto de ter sido o inaugurador de um género (cartas em verso), que conheceu grande fortuna no Ocidente, até ter caído aparentemente no oblívio...

Mesmo em Portugal?... (fui como que forçada a fazer esta pergunta, embora no fundo não me interessasse muito a resposta)

Sim, mesmo em Portugal, grandes nomes da nossa literatura, particularmente renascentista, como Sá de Miranda, Pêro de Andrade de Caminha, António Ferreira, Diogo Bernardes, cultivaram o género... Mas essa não é a única razão. A principal é o texto em si, e as tensões que ainda hoje encerram. A tensão entre agradar aos poderosos e liberdade artística. A tensão entre a boémia e o regramento. Mas também a truculência com que ataca os vícios da sociedade, e como expõe cruelmente toda a fragilidade da natureza humana. E todos aqueles conselhos que poderiam facilmente tornar-se mantras na nossa vida, nil admirari, “nada admires”, sapere aude, “ousa saber, ousa ser sábio”, ou frases lapidares como “mudam de céu, não de alma, aqueles que correm os mares”…

Na sua opinião, há algum autor clássico que ainda não tenha sido traduzido para português que nos faça uma falta enorme? 

Parece-me que toda a historiografia clássica está lamentavelmente por traduzir. Tito Lívio, Tácito, Políbio, no contexto romano; são autores que nos relevam o mundo apaixonante da história de Roma e quase não têm tradução em português. Lamentável.

Se Horácio escrevesse a letra de uma canção punk como seria?

Uma canção que nunca seria editada. É demasiado erudito para o punk. Mas seria muito bom vê-lo tentar. É claro que o facto de nem sabermos onde estão os seus ossos deverá dificultar muito a tarefa.

André Jorge (1945-2016)

Factos da vida de André Jorge: editor da Livros Cotovia, amante de livros e de gatos. Um breve editorial em jeito de obrigada. 

Factos da vida de André Jorge: editor da Livros Cotovia, amante de livros e de gatos. Um breve editorial em jeito de obrigada. 

Se fôssemos muito optimistas, talvez pudéssemos dizer que uma casa editorial podia dar em espelho perfeito da vida cultural de um país. Os livros presentes nesse catálogo surgiriam então não apenas como uma resposta às procuras vorazes impostas pelo percurso intelectual de cada um, mas também como gestos de perfeita adequação às necessidades culturais de um país inteiro. Na versão mais pessimista – Portugal, país ignorante que não quer saber de livros para nada –, não teríamos outra hipótese que não classificar uma tentativa que encaixasse nesta descrição como ocorrendo no campo da pura megalomania. Mas é verdade que a existência de determinado livro, o facto de ele poder ser avistado, talvez numa livraria para os lados da Rua Nova da Trindade, habitada por uma gata preta, pode ser suficiente para criar num leitor a necessidade dele, mesmo quando se está no princípio e não se sabe nada de livros. Às vezes a vida de uma pessoa confunde-se com os seus projectos. Editor de Homero, Pavese, Ovídio, Milton, Walser, Horácio, Catulo, Ibsen, Brecht, Christa Wolf, Virginia Woolf, Rohmer, e de uma efémera revista. Talvez seja esse o melhor epitáfio. As dívidas que os vivos reconhecem ter para com os mortos, mesmo aqueles com quem nunca se cruzaram, são também uma maneira de celebrar a vida destes. Certas escadas não têm mesmo degraus. André Jorge (1945-2016). 


Sublinhados noutros lugares:

Obituário, Facebook, Livros Cotovia.
Ricardo Domeneck, "Morreu o editor português André Jorge, amigo de poetas", DW
Joana Amaral Cardoso e Inês Nadas, Morreu André Jorge, o editor que era a Cotovia
Entrevista de Alexandra Lucas Coelho, "Sou feito do avesso", 2008, Público:

Quem gostava de editar?
Alguém que certamente não me queria como editor, o Lobo Antunes. Gosto bastante.
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