Oráculo 0

Uma flor selvagem
ou uma subtilíssima rosa de terror a enlaçar-nos o tornozelo
como uma estrela felina
um cordão de sangue subitamente desatado
a empurrar-nos gota a gota contra o verso transbordante
a afiar-nos as navalhas
a compelir-nos docilmente sobre o esforço de cair

Ou o nome,
apenas o nome original
o nome incendiário por entre as vozes ascendentes das mulheres
esquerdinas
e os plátanos dos palácios incendiados
e leopardos que brilhavam ao redor da madrugada

Onde começa a estrela, eu começo a lembrar-te por dentro dos pesadelos

Onde começa a estrela, eu começo a lembrar-te por dentro dos pesadelos
eu começo a lembrar-te onde as orquídeas sangram
eu começo a recordar-te onde os cavalos adormecem com as patas magoadas
enlameadas de pavor
e começo a recordar-te onde este outubro sempre estala
(como um ruído de roseiras a arranhar o coração)

Ouve,
eu sei que outubro chegará celeremente pelo quebrar das violadas fechaduras
com suas chuvas de rosas frias e letárgicas
com suas árvores de argila menstruada
e os seus espelhos baços enevoados de sintomas
e sei que os peixes flutuarão pelos jardins
que as ervas crescerão nas línguas tépidas das pedras
e que os gatos ensolarados de vertigens assoprarão poemas frios no desalento
das clareiras
outubro com as laranjas orvalhadas
com o teu rosto de água límpida obliquamente a contorcer-se
com os teus pés de sangue e seiva entre as navalhas da manhã
com o brilho de fotosféricas papoilas entre a poalha dos cabelos enlaçados
outubro com os mortos ao redor dos tornozelos
os mortos presos pelos dedos felinamente catalépticos
os mortos generosos: apertando para sempre o nosso hibisco arterial
e os teus olhos que sorriem entre a lonjura e a vigília
e a subtilíssima linguagem das trepadeiras delicadas. 

Irmão, 
eu posso ouvir-te sob esta chuva de ossos plúmbeos
que estilhaça as violetas da nossa límpida alegria e dilacera o riso claro
da nossa infância flutuante
eu posso clamar-te até ao topo das circulares catedrais
e escutar-te com os tímpanos de tantas flores suturadas

Que asas perpassaram os alicerces?

Irmão,
brilha uma rosa tumular
e os campos que humildemente percorremos estendem olhos de leopardos
insurretos
e há horas em que esqueço o soçobrar da nossa morte
em que vislumbro a sombra trémula do teu rosto a incendiar-se
com o sopro de uma força ressuscitada
irmão, onde começa a estrela inteira?  
outubro arde lentamente com os seus astros de carvão
e nós permanecemos entre os espelhos inaudíveis e o sangue de vegetações
crepusculares
leves, como crianças desamparadas