O descontrolo da recepção

O magazine de artes ípsilon, suplemento do jornal Público de 10/10/2014, traz uma belíssima reportagem/entrevista de João Bonifácio a Daniel Victor Snaith, ou melhor, o músico de electrónica Caribou. O motivo está no novo álbum, Our Love, de alguém que põe multidões dionisíacas em instâncias de férias ou festivais de massas a delirar em modo bacante.

Confesso que não tinha nenhuma das suas músicas na minha playlist mais pessoal, e só peguei no artigo por causa do Bonifácio e do título: “Agora sou azeiteiro” (deslumbrante). Parece que Caribou, doutorado em matemática, começou a usar “todos os truques da electrónica dançável”, mas mesmo assim continua, diz Bonifácio, a ser bom e mais “esperto do que ele queria”.

Fazendo do título uma jangada, naveguei no fluxo do texto com um olho nas margens, pronto a saltar umas páginas, mal me sentisse enfadado, até um campo mais adequado à minha zona de conforto intelectual. E lá fui indo, do espanto do músico matemático em ver-se venerado nas bebedeiras colectivas dos adolescentes de Ibiza, degradado por um “hedonismo total e desbragado”, até algumas dicas sobre como fazer uma batida que arrebate jovens cheios de acne.

Mas a meio do cruzeiro uma iluminação diferente fez emergir algo que me interessa muito, formando uma espécie de praia privada: Caribou, um arquitecto musical obcecado por novas sonoridades, fugindo da banalidade como alguém asséptico da porcaria, desolado pela recepção esfusiante do turismo de bebedeira sul-de-espanha às suas composições híper-racionais, acaba dizendo que não tem qualquer controlo sobre quem ouve a sua música, “Tenho de deixar ir e aceitar”. A antiga tentativa de supervisão passava por pensar muito a composição, fugir ao óbvio, ao esperado, desconstruir os clichés da música electrónica de massas; conduzindo o público a contorcionismos pré-programados.

Este fracasso da ditadura estética libertou novas forças criativas, não já pretensiosamente inovadoras, sempre a resvalar para a terrível necessidade de afirmação artística do artista (própria aos neófitos do mundo da arte), mas assentes na superação do complexo de ego (será que plagio alguém?). Agora deixa que pulsões menos conscientes decidam o fio condutor das obras, no seu último disco há, diz, menos filtros ou truques para moldar o que sai naturalmente.

Não sei se, como escreve Bonifácio, Caribou descobriu o super-ego (estou tentado a ver nesta ideia um lapso científico), mas a evidência de que nunca se controla o resultado do que produzimos, que a música, livros, ou outras obras de arte, depois de lançadas no campo dos receptores ganham uma autonomia que desarma qualquer autor, conduziu-o a outro patamar de criatividade, liberto da angústia em definir modos de recepção; sobretudo pelo medo de ser visto, ouvido, como um compositor fácil, previsível. Caribou despeja agora com outra fluidez as músicas nos corpos cheios de psicotrópicos das rave party, deixando que façam delas o que bem entenderem. Assim, também ele recompõe melhor as constelações de oitavas que com certeza sobre-povoam o seu cérebro musical.