Neutral Milk Hotel, "Two headed boy"

original.jpg

[Durante a última semana tenha andado a ouvir obsessivamente o álbum In the Aeroplane Over the Sea dos Neutral Milk Hotel (1998). Direi apenas que é um dos álbuns mais belos e comoventes que alguma vez ouvi e recomendo a todos que o oiçam. Em baixo fica o vídeo da minha música preferida e uma tentativa de tradução da letra.]


Rapaz de duas cabeças

[letra de  Jeff Mangum]

rapaz de duas cabeças
todo a flutuar em vidro
o sol ele passou
agora está mais escuro que breu
consigo ouvir-te a bater ao de leve no teu jarro
estou à escuta para ouvir onde estás
estou à escuta para ouvir onde estás

rapaz de duas cabeças
põe sapatos de domingo
e dança à volta do quarto ao som das teclas de acordeão
com a agulha que canta no teu coração
apanhando sinais que tocam no escuro
apanhando sinais que tocam no escuro
nós despiremos as nossas roupas
e elas estarão a colocar dedos através dos entalhes na tua espinha
e quando tudo se quebra
tudo o que conseguias manter dentro
agora os teus olhos não se movem
agora permanecem apenas na sua subida

rapaz de duas cabeças
com roldanas e pesos
a criar um rádio tocado apenas para dois
no salão com a lua sobre a cara dela
e ao som da música ele docemente revela
altifalantes de prata que cintilam todo o dia
feitos para a sua amante que flutua e sufoca com as mãos sobre a cara
e no escuro despiremos as nossas roupas
e elas estarão a colocar dedos através dos entalhes na tua espinha

rapaz de duas cabeças
não há motivo para aflição
o mundo de que precisas está embrulhado em mangas de ouro e prata
deixadas debaixo das árvores de natal na neve
e eu vou levar-te e deixar-te só
a ver espirais de branco a flutuar levemente
sobre as tuas pálpebras e tudo o que fizeste
esperará até ao ponto em que deixares ir


Two headed boy

Two headed boy
All floating in glass
The sun it has passed
Now it's blacker than black
I can hear as you tap on your jar
I am listening to hear where you are
I am listening to hear where you are

Two headed boy
Put on sunday shoes
And dance round the room to accordion keys
With the needle that sings in your heart
Catching signals that sound in the dark
Catching signals that sound in the dark
We will take off our clothes
And they'll be placing fingers through the notches in your spine
And when all is breaking
Everything that you could keep inside
Now your eyes ain't moving
Now they just lay there in their climb

Two headed boy
With pulleys and weights
Creating a radio played just for two
In the parlor with a moon across her face
And through the music he sweetly displays
Silver speakers that sparkle all day
Made for his lover who's floating and choking with her hands across her face
And in the dark we will take off our clothes
And they'll be placing fingers through the notches in your spine

Two headed boy
There is no reason to grieve
The world that you need is wrapped in gold silver sleeves
Left beneath christmas trees in the snow
And I will take you and leave you alone
Watching spirals of white softly flow
Over your eyelids and all you did
Will wait until the point when you let go

Imagens Roubadas: playlist

O título do livro, Imagens roubadas, vem de uma canção de Charles Trenet, "Que reste-t-il de nos amours?", de que um dos versos deu nome a um filme de François Truffaut, Baisers volés.

Como play list , banda sonora desta sessão de leitura-cinema pode-se ouvir, segundo uma ordem mais ou menos aleatória, os seguintes temas: 1) The Kinks, "Celluloid Heroes", 2) Elvis Prestley, "King Creole", 3) David Bowie, "I can't read" (com os Tin Machine), 4) Lou Reed , "The Heroine" (de "The Blue Mask") , 5) Eddy Mitchell, "La fille du Motel", 6)Scott Walker, "Farmer in the City" (de "Tilt"), 7) Marquis de Sade, "Conrad Veidt", 8) Bauhaus, "Bela Lugosi is dead", 9) The Clash, "The Right Profile", 10) Sonic Youth, "Tunic (Song for Karen)", 11) Madness, "Michael Caine",  11) "Science Fiction/ Double Feature" (The Rocky Horror Show), 12) The Go-Betweens, "Lee Remick", 13) The Kinks, "Oklahoma USA".

Quando se fecham as luzes e o filme arde na bobine, podemos então sair com "La Dernière Séance" de  Eddy Mitchell.


Granfondo: Não é fado normal

Vinha no balanço por intervalo e quando a canção começa a crescer então alguns de nós batem palmas, outros procuram o rosto de um amigo não muito longe, queremos perceber o chegar da música e como bate e como começa a ficar a música em cada um de nós, por isso mexemos e olhamos depressa, temos aquela sensação do amigo que passa perto e não acaba de chegar, mas vai chegando, e depois tudo se começa a baralhar e confunde, começam essas terras a mostrar onde a gente não está e onde se calhar nem sequer quer estar, lugares ao fim e ao cabo bonitos, ou lugares de que a gente pode gostar, lugares fora de lugares, lugares bons, e a intuição mete-se gorda connosco e começamos a dizer ou a pensar que aquilo não é normal, ou primeiro pensamos muito fundo cada um de nós e depois dizemos como segredo, muito baixinho, nos pés da fala ou da falinha como aquele amigo disse, que isto não é normal, que não devia ser assim, que a guitarra vai por um sítio maluco, que faz até um estremecimento no corpo tipo navio, como se a gente andasse embarcada mas só de noite, nas horas do dormir e do esquecer, ainda que às vezes só desejemos dormir tão depressa quanto possível, por gumes uma viagem, e voltar a um dia parecido no dia seguinte, com coisas próximas e vizinhas, a música às vezes também faz isso mas por mais tempo, durando-nos muito mais tempo, ao ponto de acreditarmos ser possível retomar o passado todo ele num achado momentâneo de entusiasmos, quando crescem em nós emoções até então de pedra e compreendemos que algo em nós tinha começado a mudar, mas quando?, quando começou isto a ser diferente?, e depois sossegamos e voltamos a pôr as coisas nos sítios e revemos as coisas assim paradas, notamos certo cansaço e sentamos ao lado das coisas, e então aqueles traços rijos do passado voltam a desaparecer, quase sempre de forma violenta e imperceptível, e ainda corremos para os alcançar, fechamos os olhos ou erguemos o rosto e por momentos julgamos poder recolher uma ou outra imagem, mas não, acabamos por esmorecer e alguma coisa nos distrai e queremos sair à rua ou apreciar uma comida abundante, passar um disco que há muito não escutamos ou fazer as tarefas lá de casa, e tudo isto porque a música fez um gesto diferente ou nós ouvimos diferente, como nunca, como jamais nos fora possível, até porque esta é sempre a primeira e única e irreparável vez de todas coisas, e a música chega de um lugar sem nome mas à espera de nome, e a música fica, a música vai ficando em todas as casas e todas as músicas, e batemos palmas, poucas, só para começar, queremos ouvir por dentro do som e tocar onde só a cor nos permite por momentos poucos momentos morar, subir um bocado da montanha e montar ali a casa, a casa que é para sempre, a casa que vamos fazendo um pouco por todo o lado, e morar ali em silêncio, ficar sempre no silêncio dessa música tão estranha que não se cala nunca, a música também é uma casa, pensamos, portuguesa poesia, o teu corpo também é casa, e quando juntamos mãos e braços também estamos a crescer casas, e gostamos de pensar nisto, acreditamos, já podemos sorrir uns com os outros, tocar ombros, avançar por onde queríamos ir e que depois estragou caminho, fazer força para que a malta esteja bem, querer envelhecer perto e cada vez mais perto mas não ficarmos só nós, certo calor de sermos nós a passar uns pelos outros, dizer aquelas coisas que temos guardadas para dizer, falar forte, falar da gente, e chega o momento em que já lá estamos, temos coisas à volta, ou não temos nada mas estamos, e começamos a ligar um pouco menos à música, já andamos um pouco mais dentro da música, perguntamos, reconhecemos, pedimos perdão, temos tudo pela frente, olhamos aquele sítio de longe e só então percebemos que é um fado normal. 

O descontrolo da recepção

O magazine de artes ípsilon, suplemento do jornal Público de 10/10/2014, traz uma belíssima reportagem/entrevista de João Bonifácio a Daniel Victor Snaith, ou melhor, o músico de electrónica Caribou. O motivo está no novo álbum, Our Love, de alguém que põe multidões dionisíacas em instâncias de férias ou festivais de massas a delirar em modo bacante.

Confesso que não tinha nenhuma das suas músicas na minha playlist mais pessoal, e só peguei no artigo por causa do Bonifácio e do título: “Agora sou azeiteiro” (deslumbrante). Parece que Caribou, doutorado em matemática, começou a usar “todos os truques da electrónica dançável”, mas mesmo assim continua, diz Bonifácio, a ser bom e mais “esperto do que ele queria”.

Fazendo do título uma jangada, naveguei no fluxo do texto com um olho nas margens, pronto a saltar umas páginas, mal me sentisse enfadado, até um campo mais adequado à minha zona de conforto intelectual. E lá fui indo, do espanto do músico matemático em ver-se venerado nas bebedeiras colectivas dos adolescentes de Ibiza, degradado por um “hedonismo total e desbragado”, até algumas dicas sobre como fazer uma batida que arrebate jovens cheios de acne.

Mas a meio do cruzeiro uma iluminação diferente fez emergir algo que me interessa muito, formando uma espécie de praia privada: Caribou, um arquitecto musical obcecado por novas sonoridades, fugindo da banalidade como alguém asséptico da porcaria, desolado pela recepção esfusiante do turismo de bebedeira sul-de-espanha às suas composições híper-racionais, acaba dizendo que não tem qualquer controlo sobre quem ouve a sua música, “Tenho de deixar ir e aceitar”. A antiga tentativa de supervisão passava por pensar muito a composição, fugir ao óbvio, ao esperado, desconstruir os clichés da música electrónica de massas; conduzindo o público a contorcionismos pré-programados.

Este fracasso da ditadura estética libertou novas forças criativas, não já pretensiosamente inovadoras, sempre a resvalar para a terrível necessidade de afirmação artística do artista (própria aos neófitos do mundo da arte), mas assentes na superação do complexo de ego (será que plagio alguém?). Agora deixa que pulsões menos conscientes decidam o fio condutor das obras, no seu último disco há, diz, menos filtros ou truques para moldar o que sai naturalmente.

Não sei se, como escreve Bonifácio, Caribou descobriu o super-ego (estou tentado a ver nesta ideia um lapso científico), mas a evidência de que nunca se controla o resultado do que produzimos, que a música, livros, ou outras obras de arte, depois de lançadas no campo dos receptores ganham uma autonomia que desarma qualquer autor, conduziu-o a outro patamar de criatividade, liberto da angústia em definir modos de recepção; sobretudo pelo medo de ser visto, ouvido, como um compositor fácil, previsível. Caribou despeja agora com outra fluidez as músicas nos corpos cheios de psicotrópicos das rave party, deixando que façam delas o que bem entenderem. Assim, também ele recompõe melhor as constelações de oitavas que com certeza sobre-povoam o seu cérebro musical.