O sonho molhado maoísta ou: a gravidez da Barbie*

* contém (muitos) spoilers

Quando era pequena, raramente tive Barbies: os preços da boneca, do carro e da casa da Barbie eram altos para um pai e uma mãe de classe média. Talvez por isso, habituei-me a não gostar tanto de bonecas, e quando elas me chegavam às mãos eram de outras marcas mais baratas, quase sempre um pouco estranhas, quase sempre com defeito de fabrico.

As minhas bonecas eram todas a Barbie Esquisita: mesmo as poucas da Mattel, andavam semi-nuas ou com roupas de outras que não lhes serviam, pintava-lhes a cara com maquilhagem que hoje só seria própria no Boom Festival, cortava-lhes o cabelo tão curto quanto possível e… obrigava-as a fazer muitas espargatas - era importante perceber quanto conseguiriam abrir as pernas.

No entanto, a minha Barbie favorita era - não a que a Mattel descontinuou - mas uma semelhante, provavelmente comprada num supermercado qualquer, pouco antes de o meu irmão nascer: ainda grávida, a minha mãe ofereceu-me uma boneca grávida também. Estranho, sim. Mas ainda mais fascinante do que uma Barbie perfeita, era para mim por descobrir o que se passava dentro dessa aparente perfeição, agora transmutada: poder destacar uma barriga de uma boneca para ver o que trazia lá dentro foi, sem dúvida, fundamental para perceber como chegaria o meu irmão a casa - “gosto de ser uma decoração útil”, diz a Barbie algures no filme de Greta Gerwig.

Depois de assistir ao filme no cinema, discutia com amigos ao jantar o que tínhamos retirado do filme.

Houve quem elogiasse a representatividade da Barbie negra, da Barbie transexual, da Barbie gorda. Houve quem exaltasse a importância de “pôr o homem no seu lugar” (citando frase algures ouvida), como se por se ver de repente numa realidade paralela em que é subrepresentado, os Kens fora do ecrã de súbito percebessem como deviam tratar as mulheres que os rodeiam, e quão frágeis são as linhas da agressão quotidiana do patriarcado.

Entretanto, enquanto a semana de inauguração do filme é a mais lucrativa de sempre na realização de uma mulher, o CEO da Mattel, Ynon Kreiz, terá recentemente dito numa entrevista: “A nossa ambição é criar franchises [foco no plural] de filmes.” - e a Mattel Films, a principal produtora (uma da muitas) do mesmo filme, já anunciou 14 filmes que se seguem (um deles sobre o Uno, o que é simultaneamente bizarro e curioso e outro, que será potencialmente Lena Dunham a realizar, sobre… as Polly Pockets!).

Numa altura em que se começam a considerar (mais) seriamente conceitos como o body-positive movement, a discussão de temas relativos à saúde mental e à forma como esta está relacionada com a rigidez de estereótipos sobre o corpo, a identidade e orientação sexual, ou mesmo com o poder económico das mulheres, imaginei que esta imensa campanha cosmética (pun intended) da Mattel pudesse advir do declínio das vendas da Barbie nos últimos tempos - e, logo na primeira pesquisa, surge um artigo da BBC de Julho deste ano: “Barbie: Toy maker Mattel looks to more movies as sales fall”. Questiono-me então se as mães deixarão de comprar Barbies para as suas crianças, apesar (ou precisamente por causa) do sucesso que este filme tem feito.

Tido por muitos como o grito feminista de que precisavam as meninas-hoje-adultas que sempre quiseram ter a veneração pelas suas Barbies finalmente justificada, usa-se a ideia de subversão do poder hegemónico como retrato perfeito daquilo que deve ser feito para acertar contas numa sociedade.

Ken olhava de longe a Barbie, apaixonado porém ressentido por não receber dela igual interesse, enquanto, todas as noites, ela fazia as suas “noites de meninas”, com maquilhagem e lutas de almofada. Mais tarde, depois de um passeio pelo mundo real e de perceber como pôr em prática o vantajoso patriarcado, ele grita, impondo a sua nova ordem: [Agora], “Todas as noites são noites de rapazes.”

Dado interessante: Marx acreditava que a luta de classes conduziria a processos políticos, que levariam a consequentes revoluções, necessárias para que o processo histórico avance e se desenvolva. Mais: a forma de produção anterior deveria desaparecer para ser substituída por outra.

Face à revolta dos Kens, as Barbies não vêm outra opção se não a de “acordar” politicamente as suas companheiras de classe, vítimas de uma lavagem cerebral súbita pelos machos dominantes - “Num minuto eu era a presidente, no outro estava a cortar um bife para o Ken.”, diz uma delas, acordando, de novo, para a sua realidade de prémio Nobel ou Presidente da República ou jornalista conceituada, voltando às fatiotas impecavelmente pontuadas com jóias que não podiam, claro, deixar de incluir safiras cor de rosa.

Enquanto exército renovado, a Barbie, desta vez acordada para a fragilidade da sua sociedade, apenas aparentemente sólida sob um véu de empatia e conjuntos de saia-casaco, decide então renovar o guarda roupa: qual Reforma Agrária maoísta, surgem as Barbies com um ar vagamente militarizado (e o Allan, mas ninguém fala dele porque é a figura mais interessante do filme), determinadas a recuperar os seus direitos. Envergam, sem excepção, impecáveis macacões cor-de-rosa que, estranhamente, ali existem em todos os tamanhos e para todas as bolsas.

Simultaneamente, vêem-me à cabeça flashbacks da série “O Sexo e a Cidade”, em que se pode ser feminista, sim, em que se pode falar abertamente sobre sexo e sobre dinheiro e sobre poder, sim, mas apenas gastando a quantia certa de dinheiro em sapatos e almoços em sítios tão chiques que têm um banquinho ao lado de cada cadeira, para que as senhoras possam pousar as respectivas malas que valem mais de 3 salários mínimos (cada uma). Algures num compêndio das mais famosas frases da série, podemos encontrar: “When I first moved to New York and I was totally broke, sometimes I bought Vogue instead of dinner. I found it fed me more.”

Mas rapidamente o sonho molhado maoísta se esvanece nas mãos de um exército cor de rosa que cede ao compromisso de um encontro de necessidades, muito vincadamente binário, onde haverá sempre espaço para o rosa, mas também para o azul. E onde as personagens menos visíveis no mundo Barbie (a Barbie Grávida, a Barbie Esquisita (a mais humana, afinal de contas) e o Allan - que é “só o Allan”, como o mesmo se apresenta - continuam pouco visíveis, ainda que por um momento tenham sido úteis para alavancar este fugaz momento de revolução necessária.

A minha cabeça desce de novo à terra e ouço então o Daniel, talvez o Allan da minha infância, sujeito de cerca de 30 anos que, sob todos os aspectos, é o anti-Ken dos anti-Kens, que cresceu a brincar com dinossauros: “Não podes pôr representatividade numa caixa com um preço”, por mais emocionante que tenha sido o monólogo de Gloria (America Ferrara), a operária da Mattel que sonha com a revolução.

Ouço também a Gabriela, brasileira, negra, migrante em Portugal há precisamente seis anos e seis meses: “Esse filme é um lobo com pele de cordeiro”.

Ainda assim, firmo as palavras de Gloria: “É literalmente impossível ser uma mulher.” - sobretudo se a Barbie, no mundo real, acha possível ir bem disposta ao ginecologista.

Penso na minha Barbie Grávida, desmontável e barata, no marketing feminista-liberal e nas palavras de Paul Preciado: “Cavidade potencialmente gestacional, o útero não é um órgão privado, e sim um espaço biopolítico de excepção, ao qual não se aplicam as normas que regulam o resto das nossas cavidades anatómicas. Como espaço de excepção, o útero parece-se mais com um campo de refugiados ou uma prisão do que com o fígado ou o pulmão.” (in Um Apartamento em Urano).

Bebemos mais um copo e concordamos então que, em sítios com o dinheiro e os tentáculos de Hollywood, existe representatividade desde que financiada, quer isso signifique uma Barbie-Burnout, uma Barbie-Bissexual ou uma Barbie-Hitler.

Mas que, na vida real, o dinheiro não paga sapatos Manolo Blahnik ou conjuntos de saia-casaco Chanel, ou sequer a visibilidade dos invisíveis: esses continuam a gastar dois terços do salário na renda astronómica de um apartamento pequeno numa cidade gentrificada. E o que restar não poderá pagar uma Barbie da Mattel, com certeza.

Mas talvez compre um bilhete de cinema.

3 poemas de 'A importância do pequeno-almoço' de Francisca Camelo, com um texto de Gabriela Gomes

Francisca Camelo, A importância do pequeno-almoço, Fresca 2021

Francisca Camelo, A importância do pequeno-almoço, Fresca 2021

"pequeno almoço é também café da manhã"

antes de ler este texto saiba que pequeno-almoço em Portugal significa café da manhã.

a primeira vez que eu li “a importância do pequeno - almoço” ainda era verão. esticada no solinho enquanto matilda tirava alguma das sonecas do dia. um pdf pelo celular mesmo, fiquei tão feliz que a poeta queria a minha opinião. significava confiança. a segunda vez foi neste domingo, de uma vez só. estava sol, Matilda dormia novamente e a live da Maria Bethânia era a trilha sonora de fundo. uma constatação soprando no meu ouvido repetidamente: ler a Francisca Camelo é ter a certeza de que você está diante de um acontecimento. de uma poeta acontecendo no seu estado mais fértil. já no prefácio a autora marca o quão política é a sua poesia e os seus poemas prontos pra primeira refeição do dia. quem os cozinha? o pequeno-almoço nós sabemos: quase sempre uma mulher, e os poemas cozinhados por ela por muito tempo. não o cozer dos alimentos mas o cozer da escrita (se bem que no fim são quase o mesmo); o tempo de cozimento das experiências que vão se acumulando nos ombros femininos durante tantos anos. falando em alimento o livro é dividido em quatro capítulos: pão, café, fruta e leite. itens necessários em qualquer pequeno-almoço. Francisca está viva em tudo o que escreve, na poeta mulher do norte de pele pálida e sardas da terra que come à mesa pelo prazer da comunhão, mas come-te no chão pelo prazer de estar viva. na mulher que não tem nem tempo de chorar porque tempo é dinheiro dinheiro é saúde e nós sem dinheiro tempo ou saúde sorrimos. na forma como o coração arde, nas caminhadas por berlim acompanhada dela mesma as duas da madrugada, mesmo na tentativa de apagar uma vida ela está viva, chá de carqueja mata tudo. nos poemas sujos porque ela nunca conseguiu escrever nada que fosse limpo, nos acidentes, nos naufrágios (meu querido, há naufrágios que nos salvam) ela está ali, viva e gritando na sua voz em chamas cortando cirurgicamente os poemas para que doam no sítio certo. se um dia lhe disseram da dificuldade em amar uma poeta eu lhe digo, não a ti.


Gabriela Gomes


a importância do pequeno-almoço


If workers’ labor produces all the wealth in society, who then produces
the worker? Put another way: What kinds of processes enable the worker to
arrive at the doors of her place of work every day so that she can produce the
wealth of society? What role did breakfast play in her work-readiness?

Tithi Bhattacharya, Introduction: Mapping Social Reproduction Theory



qualquer mulher sabe que
é preciso manter as tropas:
passar a ferro as fardas parir herdeiros esfregar o chão / de joelhos o sarro sai melhor
quem mais poderá explicar às crianças a ausência
do soldado do empregado fabril do político fervoroso que põe o pão na mesa [1]
se o sexo é político, imagina as lides da casa
lavar à mão as manchas de vinho / sémen / sangue
fazer a cama quando vazia
reunir no prato os nutrientes necessários
para a capitalização do pai adúltero

depois de fazer o pequeno-almoço
as mulheres-âncora atracadas à enseada
assistem em silêncio à partida das armadas de dom joão, o primeiro / o anterior / o pai deste
para que agora - isto não é novo -
pelo menos quinze mil machos sigam audazes.
a ideia é a de sempre:
queimar florestas / rapinar minas / estuprar indígenas / baptizar terras que já tinham nome
reproduzir hospícios e quartos forrados a papel de parede amarelo
enterrar a semente bem funda no colo do útero

e aos poucos gerar novos e delicados manequins de mãos calejadas
deixar que a geração anterior ensine a seguinte a fazer o café
(atenção. não se faz café de qualquer maneira, é preciso formar uma pirâmide de pó, não deixar que a
água toque no funil, não ligar de imediato na temperatura máxima, dar-lhe o tempo certo de ebulição, mas continuando,)
vertê-lo quente na chávena de manhã
sementar esse pão vaporoso na mesa milagrosamente limpa
colher fruta fresca valorizar a louça lavada
não regressar nunca
à sodoma abandonada
porque nessa
o café já esfriou

quem faz o pequeno-almoço
sabe de tudo isto
retorna a casa só e as mãos
sempre invisíveis
costuram dores como contas de rosário
nos dentes e figos abertos no lugar dos lábios

só quem come o pequeno-almoço
tem a boca demasiado cheia
para perceber o fundamental:

é que sem elas
o mundo não chegaria sequer
ao meio dia.

1 (“pôr o pão na mesa” é: a) produzi-lo de raiz, a partir da massa mãe (a massa mãe leva entre 5 a 7 dias a desenvolver-se com água engarrafada a 27-28 graus e outros ingredientes que encontram no google); b) poder comprá-lo e depositá-lo num cesto em cima da mesa; c) uma frase utilizada para iniciar a sondagem que descobrirá finalmente “quantos pequenos-almoços preparou o teu pai enquanto crescias?”)

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diário

1.

perguntei-lhe
se me queria beijar
beijos pequenos
pelo meu corpo inteiro
povoar a minha pele de amor
ele respondeu
quero rebentar-te toda

2.

antes de ingerir
a primeira dose de atmosfera
devíamos ler a bula
sobre os efeitos secundários
mais frequentes:
10 em 10 utilizadores
sofrerão de náuseas
fraqueza e indigestão
um ou dois tipos de abuso
(por vezes simultaneamente)
normalmente segue-se a falta de libido
e alguma solidão asfixiante
(consulte o seu médico
se esta se prolongar
após a morte)
1 em cada 1000 utilizadores
poderá eventualmente
vir a ser feliz
mas não foi ainda possível
comprovar esses efeitos.

3.

ela disse que como voluntária
ensinava as crianças a nadar
eu pensei para mim
que não existe tal coisa
e que na melhor das hipóteses
só aprendemos a afogar-nos
mais devagar

dei-lhe os parabéns
pelo gesto de generosidade
ela explicou que na verdade
odeia fazê-lo
justificou-se com o ruído infernal
que ecoa na piscina:
most of the times
i just tell them

to shut the fuck up.

4.

nada nisso me pareceu estranho
lembrei-me só que a diferença
entre os demónios a gritar
na minha cabeça
e a piscina pública
em hora de ponta
é que na vida
não nos obrigam a andar de touca
em contrapartida
é mais difícil nadar
fora de água

5.

ele sonhou que um amante antigo
o salvava debaixo de água
(sendo mais precisa,
salvavam-se mutuamente)
mas nunca chegavam a vir à tona

enquanto me descrevia
o tom premonitório deste sonho
eu pensava nos versos
escritos no dia anterior
as piscinas e crianças o eco sísifo

estamos todos ligados
pela arquitectura sinuosa
dos líquidos,
pela engenharia estrutural
dos amores

(meu querido,
há naufrágios que nos salvam).


6.

de manhã chorei de raiva
ao sair de casa vi um cartaz:
“oficina para preencher espaços vazios”
não quis acreditar
(o meu inconsciente
passeava na rua)
mas segui decidida
em direcção ao mcdonald’s
ao jantar fiz um bolo
vegan e sem lactose
mas com muitas velas
pus muitas velas nesse bolo
de alguma maneira não conseguia
parar de acrescentar fogo
como se fosse necessário que
alguma coisa ardesse
de repente
tinha-me tornado mestra
em como preencher espaços vazios

mentira
continuo a aprender.

______________

scenes from a long lost may


we live in a perpetually burning building, and what we must save from it, all the time, is love.

Tennessee Williams


ainda tirei uma ou duas selfies
à procura de mim
por tempo demais perguntei-me
onde está a minha libido
para onde foram os meus orgasmos

não tinhas o direito

e aquela casa-miniatura
que não me deixaste trazer:
eu queria a casa dentro da casa
tu querias a casa fora da casa
vai sujar, disseste
e percebi naquele momento
que as nossas moradas
não coincidiam

recortes
a boca de um homem
aos urros
aos gritos aos murros
a boca aberta
de um homem sempre
fechado
(quem te ensinou
a gritar tão bem?)

a gata nos teus braços
provavelmente o meu presépio favorito
será dela que sentirás mais saudades
porque os animais
são inocentes mas eu não

e depois teve o limão
que no dia seguinte
estava podre
assim de repente

achei bonito
fotografei-o
uma espécie de nan goldin
fruta ferida
(não esquecer a papaia
o figo a maçã)

e depois faz todo o sentido,
não é:
a última foto do álbum
tem um rapaz muito magro acabado de acordar
de alguma forma surpreso por existir
por algum motivo cuidadoso com o que poderá dizer agora

veste uma t-shirt amarela com o imperativo:

“dê sangue”.

"Uma estrutura sólida", Maggie Smith

Tradução: Francisca Camelo

A vida é curta, ainda que esconda isso dos meus filhos.
A vida é curta, e eu encurtei a minha
de mil maneiras deliciosamente desaconselháveis,
mil maneiras deliciosamente desaconselháveis
que esconderei aos meus filhos. O mundo é pelo menos
cinquenta por cento terrível e esta é uma estimativa
conservadora, ainda que esconda isto dos meus filhos.
Por cada ave há uma pedra arremessada a uma ave.
Por cada criança amada, uma criança desfeita, dentro de um saco,
imersa num lago. A vida é curta e pelo menos 
uma metade do mundo é terrível e por cada estranho 
gentil há um que te vai desfazer,
embora eu guarde isto dos meus filhos. Estou a tentar
vender-lhes o mundo. Qualquer agente imobiliário,
enquanto te mostra uma verdadeira espelunca, tagarela 
sobre a sua estrutura sólida: este sítio podia ser lindo, 
certo? Podias fazer disto um sítio lindo.


(in Waxwing, Issue 10, Junho 2016)

—————

“Good Bones”, Maggie Smith

Life is short, though I keep this from my children.
Life is short, and I’ve shortened mine
in a thousand delicious, ill-advised ways,
a thousand deliciously ill-advised ways
I’ll keep from my children. The world is at least
fifty percent terrible, and that’s a conservative
estimate, though I keep this from my children.
For every bird there is a stone thrown at a bird.
For every loved child, a child broken, bagged,
sunk in a lake. Life is short and the world
is at least half terrible, and for every kind
stranger, there is one who would break you,
though I keep this from my children. I am trying
to sell them the world. Any decent realtor,
walking you through a real shithole, chirps on
about good bones: This place could be beautiful,
right? You could make this place beautiful.

(in Waxwing, Issue 10, in June 2016)



ecce homo

há um homem
que atravessa a rua
para comprar pão
que se preocupa com as contas
a pagar no final do mês
há um homem a quem darei lugar
na fila do supermercado
por só trazer com ele
frango grelhado
e um pacote de batatas fritas
talvez lhe dê indicações na rua
quando estiver perdido
para um encontro
ou o avise da mochila aberta
numa manhã no metro
em hora de ponta
quem sabe salvo-lhe um filho
se ele não reparar
que a criança
se aproximava demasiado da estrada

há um homem
com quem me cruzarei
a cidade é pequena
e isso é tão certo
não lhe vou saber a idade
ou como queria ele envelhecer
ou se imaginava algum dia
a que velocidade
faria voar um corpo

não lhe conheço a cara
o nome, preferi também não saber
há um homem que respira
que verá o céu limpo que hoje se pôs
fará as suas plantas crescer
se não se esquecer de as regar
e pouco a pouco
ficará mais perto do chão

sabemos pouco:
há um homem
ele respira
esse homem vivo
que matou alguém que amamos

é este o homem
que fez de nós
árvores perenes da cor da ira,
venham todas as estações
dilúvios bíblicos anos férteis
passem gerações de filhos
casas demolidas antigamente habitadas
esqueçam-se detalhes
de velhas histórias de amor
morram animais dóceis
por mais amados
depois de décadas silenciosos
num recanto doméstico

enquanto um de nós for vivo
seremos sempre estilhaços
de um aperto agudo:
a perpétua busca de alguém
que sem saber
nunca voltaria a casa.

Entrevista a José Pedro Moreira

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Obrigado, José, por teres aceitado este desafio. Em vez de me armar em jornalista cultural, vou, antes, optar por uma coisa menos formal, uma espécie de conversa num café. E, claro, fica já toda a gente a saber que esta entrevista é para pagar o café e a nata que o José teve a simpatia de me pagar da última vez que cá esteve, no Porto. (Isto é tudo uma cambada de promiscuidade! dirá alguém que não sabe se sou gordo ou se sou magro). Como é normal, nestas coisas, “entrevistas literárias”, vamos começar com algo muito profundo: o início. Aquela célebre pergunta: “Quando é que começou a escrever poesia?”, quase tão célebre, ou mais célebre, como aquela “Para que serve a poesia?”. Mas antes de chegar aí (vou rebobinar a cassete) pagaste-me um café com nata ou foi só um café? Duas coisas dão 30 perguntas, uma dá 15.

 Eu é que te agradeço, Vítor.

 Sinceramente não me recordo se foi um café com nata. O que só testemunha em teu favor: apesar da minha avareza, a conversa foi tão interessante que me esqueci de anotar o dano que causaste às minhas finanças.

 Quando comecei a escrever poesia? Não é uma pergunta fácil. Desde a adolescência que escrevo caderninhos que misturam versos, notas diarísticas, observações… Mas sempre foram coisas para consumo próprio e a poesia pressupõe a partilha. Há coisa de dez anos escrevi um livro, que depois decidi não publicar. E a vontade de escrever um livro de poesia só regressou em 2017, quando comecei a trabalhar no Gatos no Quintal. Mas pelo meio fui traduzindo alguma poesia, colaborando com outros na edição de poesia, e escrevendo os meus caderninhos.

 Brincadeira à parte, falemos da tua infância. Pelo que transparece em Gatos no Quintal, publicado pela Enfermaria 6, pareces ter tido uma infância muito feliz. Tendo tu a mesma idade que eu, foi engraçado encontrar no teu livro referências e situações que coincidem com a minha infância. Podes falar um pouco dela?

Foi uma infância normal. Cresci no Feijó, na Margem Sul, próximo de Almada. Vivia numa vivenda azul: os meus avós maternos ocupavam o apartamento do andar de cima, e eu vivia com os meus pais no apartamento do rés-do-chão. Havia um pequeno quintal nas traseiras, onde a minha avó plantava couves e criava galinhas. Era um miúdo tímido e introvertido. Gostava de brincar e jogar à bola com os outros miúdos da rua, jogar computador, ler banda desenhada, desenhar. Como filho único passava bastante tempo sozinho, mas cedo aprendi a ocupar as horas de solidão.

 Em tempos, numa entrevista, creio que deste ano, um poeta “consagrado” dizia que as novas gerações de poetas não têm humor e que aos 20 anos já são todos muito sérios. Não deixou de ter alguma razão, mas quando li a entrevista, constatei de imediato que o poeta “consagrado” não tinha lido o teu primeiro livro: Gatos no Quintal (2018). Não se pode conhecer tudo, sobretudo uns tipos novos que escrevem coisas”, isso toda a gente já sabe. E começo por aqui para te dizer que tu és o poeta, da minha geração, com mais sentido de humor, um humor muito bem feito, inteligente, um sarcasmo refinado. Sei que é difícil explicar isso, mas de onde vem esse teu humor? Sabes explicar? Será que grande parte do teu humor vem diretamente de Catulo, que traduziste com André Simões para a Cotovia?

 Muito obrigado pelo elogio. Os leitores gostam sempre de quando o entrevistado e o entrevistador começam a dar palmadinhas nas costas um do outro. Por outro lado, na Enfermaria não corremos o risco de sermos importunados por leitores. E é normal ser-se mais sisudo aos vinte anos. Queremos muito ser levados a sério. Depois, com alguma sorte, isso passa.

 Como sabes, sou um tipo introvertido, sinto-me sempre desconfortável em ocasiões sociais, ou quando tenho de interagir com grupos de mais de uma pessoa. Acho que o humor começou como um mecanismo de defesa, uma maneira de disfarçar a timidez enquanto mantenho uma distância segura. À medida que envelheço e vou ficando menos idiota tento que seja algo mais generoso, uma estratégia para coabitar no mundo: é mais fácil criar laços com outros quando não temos de disfarçar as nossas limitações e somos capazes de nos rirmos de nós próprios. E uma gargalhada é também uma forma de partilha ou até de generosidade – por exemplo, quando alguém se ri de uma piada nossa para nos deixar mais confortáveis, ainda que não tenha piada nenhuma. Mas desconfio que estou a divagar um pouco.

 O humor na poesia portuguesa recente não é uma coisa só minha. De repente vem-me à cabeça os livros do Miguel Manso e da Golgona Anghel.

 A tradução de Catulo começou como um escape. Eu tinha passado os dois anos anteriores a estudar e traduzir tragédia grega e estava a trabalhar num projecto que não me trazia grande alegria, e o André [Simões] estava a meio de um doutoramento penoso. Sentíamos ambos a necessidade de fazer algo diferente, e há anos que falávamos de traduzir Catulo. Divertimo-nos bastante a fazê-lo. A Tatiana tirou-nos uma fotografia num dos bares da Faculdade de Letras em que estamos ambos com um ar muito sério a olhar para o meu computador. Tínhamos estado a debater a correcta tradução de mentula. “Piça, pila?” “Não”, diz o André, “é mais obsceno do que isso.” “Caralho, então.” “Sim, caralho é a solução filologicamente mais correcta.” O que terão pensado as pessoas à nossa volta? E nos poemas finais do livro, Catulo ataca um apoiante de César, Mamurra, trocando-lhe o nome para Mentula (não é o trocadilho mais feliz ou subtil). Mas Caralho como nome próprio já não tem tanta piada. Sob a influência do Sr. Cogito de Zbigniew Herbert (um poeta que venero), lembrei-me: “E se ficasse o Sr. Caralho?” “Ah, isso é mais engraçado!”

 O primeiro poema que ouvi (pois que o leste na Flâneur) de Gatos no Quintal foi o “Depois de Kaprow”, e, se não me falha a memória, foi o riso total na sala. É, para mim, a par de “Aquiles e a Tartaruga” e “Aula de Filosofia”, o poema mais forte do livro. Nele falas de coisas muito sérias, do happening do Kaprow, de Damien Hirst, da Oresteia, do Rambo, e, no entanto, com um humor muito bem feito, e o mais engraçado, no fim o poema torna-se auto-irónico: “isto é poesia?”. Podes falar um pouco desse teu poema? És um apreciador de selfie stick?

 Alguns dos meus poemas agregam matéria diversa que anda solta na minha cabeça – ideias, frases, factos – em torno de um núcleo. Foi isso que aconteceu com o “Depois de Kaprow”. Ideias sobre definição de arte, limites éticos da arte, paródia a uma conversa entre amigos sobre uma viagem à Grécia, noções sobre como nos relacionamos com a arte, e como a invasão dos social media na nossa intimidade condiciona a relação com a arte, foram encontrado o seu lugar em torno de um núcleo central: a narrativa de uma reacção estética de um amigo a uma instalação. Posso contar a história aqui: em 2010, creio, fui a Madrid com a Tatiana e dois amigos e passámos quatro ou cinco dias a ver museus. No Museu Reina Sofía, a necessitar de descanso do peso de grande arte, decidimos fazer uma pausa para fumar. Descemos até ao pátio central de onde um dos meus amigos (o Manel), olhando para o interior, viu uma pilha de pneus no chão, e comentou “é uma vergonha um museu destes ter as arrecadações à mostra”. “Não me parece que sejam as arrecadações, Manel”, respondeu o André (o meu outro amigo), “eu acho que é uma instalação”. E assim era, o que deixou o Manel mais exaltado do que o que qualquer um de nós ousara esperar. Com o ímpeto desesperado de um homem que acaba de sofrer um desgosto amoroso, o Manel, normalmente uma figura serena, começa a interpelar quem caminhava ali ao pé, apontando para a instalação e perguntando “Está en crer que esto es arte? Neumáticos! Son neumáticos!”, a tal ponto exaltado em que uma segurança se aproxima, pedindo-lhe que se acalmasse. Até que olhou para nós, com lágrimas na cara de tanto rir, e também a senhora se começou a rir.

 Eu não tenho nada contra selfie sticks. A não ser achar que quem fosse apanhado com um devia levar com uma multa pesada, depois de ser espancado com ele. A cultura da selfie faz com que deixemos de estar disponíveis para a arte, nós, a nossa gloriosa vidinha, passa a estar no centro de tudo. E lá estamos nós: a nossa cara sorridente a comer um croquete, nós a beijarmos a mulher amada enquanto olhamos para a câmara, nós ao lado da Mona Lisa com um sorriso aparvalhado. A arte passa a ser um adereço sem outro valor que não aquele que empresta à nossa historiazinha, mesquinha e enfadonha, que insistimos em contar. E o mundo fica mais pobre e a nossa existência perde significado. (Sinto-me a envelhecer enquanto escrevo estas linhas.)

 Ainda sobre “Gatos de Quintal”, surpreendeu-me a tua “Aula de Filosofia”. Para mim, que nasci nos anos 80, ler aquilo foi não só divertido, como me relembrou de uma realidade de que já me tinha esquecido: a tortura que foi, para mim e para os meus colegas, as primeiras leituras de Kant; ouvir a palavra “imperativo” vezes e vezes seguidas atormenta qualquer miúdo. Esse poema lembrou-me um poema muito bonito de João Miguel Fernandes Jorge – “Durante um exercício de filosofia”, mas o teu, ao contrário de João Miguel, dá a versão do aluno numa aula de filosofia nos anos 90. E falo disso porque sinto que recuperas memórias que são de muitos de nós, e reatualizas as pequenas histórias de um mundo sem a parafernália tecnológica em que estamos enfiados. Ao dizer isso, pareço que estou a falar de nostalgia de um tempo que não existe, em parte sim, mas isso não se encontra nos teus poemas, porque neles há sempre um humor, mas não deixa de ser um humor agridoce. Faz sentido o que estou a dizer?

 Sim, acho que sim. Eu prefiro não condicionar a leitura do poema. Mas posso partilhar o substracto autobiográfico que o informa: tive a sorte de ter uma excelente professora de Filosofia no 12º ano, a Fernanda Melo, de quem hoje ainda sou amigo. No primeiro trimestre lemos o Górgias de Platão, no segundo a Fundamentação da Metafísica de Costumes, de Kant, e no terceiro O Nascimento da Tragédia, de Nietzsche. Tudo grandes livros, que influenciaram a minha decisão de estudar Clássicas. Mas quando somos adolescentes, temos outras preocupações que imperativos categóricos e preposições analíticas. Foi bastante difícil de entrar em Kant, mas quando consegui furar através do estilo professoral e enfadonho, descobri um mundo conceptual idealista de uma beleza tão frágil que me comoveu. Há nesse poema também algumas referências a uma peça de Thomas Bernhard, Kant, em que o filósofo faz um cruzeiro até Nova Iorque na companhia da mulher para tratar das cataratas. E tem um papagaio de estimação que papagueia Imperativo! Imperativo!. Assisti a uma representação da peça há uns anos, durante o Festival de Teatro de Almada. Creio que na companhia da Fernanda.

 Isso está a ficar sério demais! Quando bebemos “uma cerveja na Grécia” (Gatos no Quintal, (2018))? Há uma perversão ou atualização da “temporada” do Rimbaud? Ou não andavas a pensar nisso? Nessa secção do livro falas de uma Grécia contemporânea lançada um pouco ao deus-dará e ao inferno. Sei que já foste algumas vezes à Grécia; o que mais gostas na Grécia? Não tens um chá para me recomendar em vez de uma cerveja? Eu sempre detestei cerveja. O que me recomendas?

 Sim, a “cerveja” é uma referência à versão de Cesariny de Rimbaud, um livro muito importante para mim, quando comecei a descobrir a poesia. Sempre me irritou a imagem romântica de uma Grécia do espírito, idealizada, a-histórica, depurada de tensões e violência, onde os próprios actos de violência são domesticados enquanto abstracções. Uma espécie de resort cultural onde se vai a banhos para relaxar o espírito das atribulações da vida contemporânea. Neste não-lugar a bebida por excelência é o vinho (misturado). Mandar vir uma cerveja e acender um cigarro na zona de não fumadores (há uma alusão a tabaco na epígrafe, tirada do meu livro introdutório preferido à cultura grega antiga, de HDF Kitto) deste resort do espírito funcionam como uma declaração de intenções.

 Eu não sou muito de chás. Nem de cerveja, para ser sincero. Prefiro vinho ou cidra.

 Do que mais gosto na Grécia? Gosto do sol, gosto do mar, gosto da história, gosto da comida, gosto das pessoas. É tudo isso e algo mais. Não consigo explicar porque me sinto tão bem naquele país. Da primeira vez que fui, apanhei o ferry em Atenas para Paros. E não te consigo descrever o que senti quando o barco passou o cabo Súnio, ou quando mais tarde, vimos Serifo à nossa esquerda enquanto o sol se punha. Foi a mesma plenitude que senti quando subimos a encosta que leva às ruínas do templo de Apolo em Naxos, e olhei para trás e vi o porto e a linha da costa, ou quando descemos o monte Cinto em Delos. Desculpa, sei o quão irritante são estas exaltações. Daqui a pouco estou a mostrar álbuns de fotografias.

 A Barbara Stronger (1983-2019), antes de se suicidar, gostava muito da primeira parte de Gatos no Quintal, mas ficou sempre sem saber onde ficava aquele “Rua da igreja”. Onde fica essa rua? E que é feito dessas personagens todas: o Benjamim, a Maria, o João, o Filipe, o Ricardo, o Francisco… Esses nomes parecem ser toda uma geração enganada, não? O que mais gosto é do Francisco, aquilo sou eu e minha mãe; mas também te vislumbro naquela pele. Por falar em gatos, o meu Kafka está mais gordo e pergunta por aquilo que já ia perguntar: para quando uma reedição de Gatos no Quintal?

 Os meus pêsames. Nunca cheguei a conhecer a Barbara, mas sei que vocês eram próximos. E agrada-me saber que ela gostava da “Rua da igreja”. A resposta correcta à tua pergunta é que a “Rua da igreja” não existe, existe apenas no espaço poético, seja lá o que isso for. A resposta verdadeira é que fica no Feijó. A igreja entretanto foi destruída, e outra construída no seu lugar. Algumas das pessoas morreram, outras vão indo – o Ricardo casou-se este ano, o Sr. João M. está velhote mas lá anda –, outras sou eu. O teu Kafka é um belo gato, bem como a Ariel. Manda-lhes um abraço meu. Apesar do interesse dele, não me parece que seja partilhado por gente suficiente que justifique uma reedição do livro.

 Falemos agora da tua última “cassete” – Porque canta um pequeno coração. Nessa cassete, o extra final é o coroar do livro, a cereja em cima do bolo. Há nele um lado teatral, retirado (quase) das comédias romanas (sobretudo romanas, não sei porque penso nisso). Mas antes dele queria que falasses um pouco sobre aquele que é o mais belo poema do livro, a meu ver (claro) – O santuário de Atena Kokkinê em Delos”, se for possível. Aquele “pequeno ouriço-cacheiro” fez-me pensar em Derrida e na própria natureza da poesia, de que ela deve ser um ouriço; mas o que mais fiquei curioso foi em ver aquela fotografia. Tens de partilhar a foto.

 Desculpa, este é um poema demasiado pessoal, preferia não falar sobre ele. 

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 Além desses dois poemas já referidos, tens em “Porque canta um pequeno coração” dois extraordinários poemas: “Notas sobre o Prosciutto di Parma” e “Toda a verdade!!!”. Sobre uma aparente facilidade, brincadeira, falas de assuntos muito sérios, coisas que a um leitor desatento passam despercebidas. Não quero que expliques os poemas, mas o que te levou a escrevê-los? No primeiro, muito sinteticamente, temos um poema que fala sobre a arte de escrever poesia e no outro sobre a linha tênue entre verdade e mentira, e também sobre o alto risco de manipulação das massas. Digo isso para constatar que, por detrás do teu humor, há questões sociais muito atuais, falam de mentira, de anestesia, de sofrimento… Que podes dizer sobre isso?

 Muito obrigado pelas tuas palavras, Vítor (mais palmadinhas nas costas). Ambos os poemas são exemplos desta minha maneira de criar, por meio de associações e aglomeração de elementos diversos.

 “Notas sobre o Prosciutto di Parma” começou quando li um artigo no The Guardian sobre como carnes processadas causam cancro.[1] Há ampla ciência que o comprova, sabemos as causas, sabemos como as evitar, mas nada se faz por pressão dos grandes interesses económicos. É um risco que os mais abastados não correm: podem comprar presuntos produzidos segundo métodos artesanais, como o cobiçado prosciutto di Parma, que não usam nitratos nem nitritos durante o processo de cura. Isto fez-me pensar em desigualdade social, em como os governos nos falham, em questões de bem-estar animal, e vegetarianismo, e também em Horácio, na sua Ars Poetica[2], em como os enchidos poéticos são produzidos.

 Quando acabei o Gatos no Quintal pensava em escrever uma plaquete, com uns dez poemas, sobre coisas de arte popular de que gosto: filmes, novelas gráficas, videojogos, etc. A meio apercebi-me de que os poemas eram parte de algo mais vasto e incorporei-os no Porque canta... Um desses poemas que tencionava escrever era sobre Preacher, uma das minhas novelas gráficas preferidas, escrita por Garth Ennis e desenhada por Steve Dillon. Tinha algumas ideias:   seria uma longa roadtrip pelos Estados Unidos, haveria um encontro com deus, seria uma sátira política. Mas nunca conseguia apanhar o ângulo certo, e os pormenores permaneciam vagos, até ler um artigo na The New Yorker sobre terraplanistas,[3] gente que acredita piamente que a terra é plana e que há uma vasta conspiração para nos manter nas trevas da ignorância. Mas é claro que eles vêem o engano e sabem a verdade.

 Sendo tu um leitor de banda desenhada (eu tentei, José, mas não consegui!) e consumidor de cultura pop, como todos nós, que autores de banda desenhada leste, lês? E já agora, que séries televisivas andas a ver, para recomendar ao Daniel. Eu sei, eu sei… pouco tem a ver com o teu livro – “Porque canta um pequeno coração” –, é tudo para fugir ao meu papel de jornalista cultural. Sabes, sempre quis ser jornalista, jornalista e crítico num jornal conceituado, uma espécie de influencer (pago a peso de ouro) da poesia. Sabes, eu até calculo matematicamente quantos gosto coloco na página x e y, não vá pôr um gosto num poeta maldito e ver, assim, o púlpito da crítica fechar-se à minha poesia, e depois onde apareço? Ai, são preocupações dessas que me tiram o sono! Uma coisa mais importante, que agora me lembrei, gostas mais de salgados ou de fritos?

 Claro que gostas de banda desenhada, Vítor, tu é que ainda não sabes. É uma arte visual, algo a que és sensível, que exige ao escritor uma enorme economia verbal, como a poesia. Alguns dos meus autores preferidos e os livros deles de que mais gosto: Alan Moore (que ocupa o centro do cânone de banda desenhada; Watchmen, From Hell), Garth Ennis (Preacher, The Boys, Punisher MAX), Frank Miller (Sin City, Batman: The Dark Knight Returns, Batman: Year One), Art Spiegelman (Maus), Mike Mignola (Hellboy), Neil Gaiman (The Sandman), Jeff Lemire (Essex County, Sweet Tooth), Ed Brubacker (Criminal, Gotham Central, Kill or be Killed), Brian Michael Bendis (Ultimate Spider-Man, Alias: aka Jessica Jones), Warren Ellis (Transmetropolitan), Jonathan Hickman (East of West), Robert Kirkman (The Walking Dead), … Mas o acumular de nomes é contraprodutivo. A pergunta que me deverias ter feito era Que livros me recomendas para começar a ler banda desenhada? E eu responderia: experimenta Maus (Art Spiegelman), o primeiro volume de The Sandman (Neil Gaiman), e Watchmen (Alan Moore). E depois diz-me se gostas de banda desenhada ou não.

 séries que vi recentemente e que recomendo: Succession, BoJack Horseman, W1A (ok, já tem um par de anos mas é das comédias mais engraçadas que vi).

 Fritos ou salgados? Fritos e salgados! (Primeiro frito, depois salgado.)

 Outro dia vi que eras best-seller de poesia, como te sentes? Passaste de “menino censurado” (temos isso em comum) para um êxito estrondoso na Não Edições? Já pediste aumento? Sei, isso da poesia não dá dinheiro, nunca deu, ainda bem, por um lado. Outro dia lembrei-me de um poema do Jorge de Sena, diz algo como, a ideia é esta: os poetas andam a lamber a chagas uns dos outros. O que não deixa de ter piada. O que achas dessas comadres sempre às turras e piadas umas com as outras? Sempre a acharem-se melhores que os outros e sempre a descobrirem a pólvora (aquela que já foi descoberta há séculos). Mais vale ir jogar Playstation, ao Pro Evolution Soccer! Algum comentário mais?

 Nunca me senti censurado. E chamar a um livro de poesia best-seller é meio caminho andado para o matar. Mas fico contente que o livro tenha justificado uma segunda edição. Sei o trabalho que o João Concha, o editor, investiu nele, e estou-lhe imensamente grato.

Isso dos poetas andarem sempre às turras não é mais topos do que outra coisa? Não é essa a minha experiência. Dada a natureza não lucrativa da poesia em Portugal, a publicação de livros de poesia depende de laços de solidariedade e voluntarismo. Pequenos grupos, que investem tempo e algum dinheiro para que livros de poesia possam acontecer. Tome-se o exemplo do Porque canta um pequeno coração: o manuscrito beneficiou da leitura atenta de poetas amigos que admiro (a Tatiana, o Sebastião Belford Cerqueira, o João Bosco da Silva, tu, o Luís Amorim de Sousa), beneficiou do trabalho de edição do João Concha, dos desenhos do André Ruivo. Convidei a Elisabete Marques, outra poeta que admiro (ide comprar o Animais de sangue frio se ainda não o fizeram, boa gente!) para apresentar o livro e sei que é um pedido cruel, porque preparar uma apresentação leva tempo e a Elisabete é uma pessoa bastante ocupada, no entanto, trinta minutos depois de enviar o convite tinha uma resposta da Elisabete a dizer que claro que apresentava o livro. E fizemos uma leitura juntos no Porto, eu, tu, a Francisca Camelo, e a Mafalda Sofia Gomes, e estavam lá outros poetas amigos (desta vez o Pedro Braga Falcão não contou anedotas em Latim). E se o livro vendeu alguns exemplares foi porque vários amigos o ajudaram a promover, alguns deles poetas. Tu próprio tiveste uma trabalheira a preparar esta entrevista. Tudo isto para dizer que o que eu vejo é uma enorme generosidade e solidariedade das pessoas envolvidas na poesia. Se alguns desses grupos são por vezes mais territoriais, ou se as pessoas se desentendem de vez em quando, pois, isso acontece, mas parece-me algo marginal.

 Voltando ao teu último poema do livro – “Filémon e Báucis (a partir de Ovídio)” –, não só reescreves o mito como reforças aquilo que muita gente esquece, às vezes também eu, de que para amar uma pessoa basta muito pouco. É, a par do poema dedicado à Tatiana, o poema de amor mais bonito que li este ano. Agora, quando quiser reescrever aquele mito, vou ter sempre o teu a ecoar na minha cabeça. E digo isso porque vejo na tua poesia temas, preocupações que se aproximam das minhas. Podes falar da escrita deste teu poema?

 Bem, esse poema também é dedicado à Tatiana. Este é um dos meus mitos preferidos d’As Metamorfoses, e há anos que penso em escrever este poema, mas nunca saiu. Quando estava a organizar os poemas, percebi que o livro precisava desta coda, e que eu devia deixar de ser preguiçoso e escrevê-lo. A ideia inicial era fazer uma tradução livre mais próxima do texto de Ovídio, mas foi evoluindo para algo diferente. A referência principal foi Tales from Ovid, de Ted Hughes, claro.

 Quais os autores, poetas e outros, que leste e que achas que, de algum modo, te influenciou naquilo fazes? E quais são as tuas grandes referencias poéticas, aqueles nomes que nunca te cansas de reler?

 Há uma série de autores que venero e releio: Dostoievski, Thomas Bernhard, Beckett, Orwell, Tchékhov, Ésquilo, Tony Judt. Entre os poetas Zbigniew Herbert, António Franco Alexandre, Anne Carson, Celan, Bukowski... É difícil fixar uma lista.

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 Não te vou perguntar mais sobre poesia. Quem ainda não leu o livro que o leia, eu, Vítor, recomendo. Estás já algum tempo fora de Portugal. Há quantos anos? De que mais tens saudades, além da Alzira e do Augusto?

 Vivo em Inglaterra há... vai fazer oito anos em Março. Essa é uma pergunta fácil, do que mais tenho saudades é da minha família e dos meus amigos.

  Bom, tendo em conta qua mal cheguei às 15 perguntas, pagaste-me apenas um café. Eu sei, estavas a pensar na minha linha, és um bom amigo. Quando voltares pago-te uma cerveja e … eu fico-me pelo chá. Vemo-nos em breve. Um Abraço.

 Prova ao menos uma mince pie. É a melhor coisa de se viver no Reino Unido.

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Vítor Teves e José Pedro Moreira. Foto: Tatiana Faia, Outubro de 2019.

 

Ps- Esta entrevista foi realizada por escrito e enviada por e-mail. Não teve o patrocínio da Bertrand, da Fnac, da SPA, do BES, da CGD, da FCT, da Fundação Calouste Gulbenkian (já Luiz Pacheco, Mário Cesariny e António José Forte se queixavam), GALP, CTT e nem da Nestlé.

 

 








[1] Cf. https://www.theguardian.com/news/2018/mar/01/bacon-cancer-processed-meats-nitrates-nitrites-sausages

[2] É lamentável que a Ars Poetica, não tenha sido incluída na mais recente tradução das Epístolas de Horácio, que, de resto, é excelente. Tunga, Pedro!

[3] Cf. https://www.newyorker.com/science/elements/looking-for-life-on-a-flat-earth