isto e aquilo

não me contentaria com uma morte discreta
dizia-me depois de acabarmos de ouvir
um álbum dos The Smiths e
admirando o vazio questionamos
a nossa existência com mais tédio que êxtase
talvez a vida seja afinal um sonho perverso isto
até a fome se instalar e então o mistério
da descoberta da linguagem outra vez:
o prato vegetariano Esse Sim
Posso pagar com uma nota de dez?

 

*

olha: mãos inexperientes
isto é o mais próximo que estive da indigência
o rio corre esta tarde e a menina da televisão
anunciou
     a) chuva ligeira sem sombra de ironia
     b)  quebra do verso já não é
motivo para ter medo.

 

*
delicadeza como se delicadeza
fosse uma palavra comum
que rola do bolso das calças
o seu nome e ao que vem?
um longo ano em perspectiva
com fortes probabilidades
de amor e burguesia

 

*
encolhido debaixo da mesa
sabes o que vem a seguir
foste feito para o evitar
mas não o conseguirás
as palavras deles não deitam som
eu não não – M – quase feliz
as patinhas a proteger a cara
e as costas contra a parede
daqui não saio

nada disso
essa trampa que lês nos livros não serve para nada
isso são só histórias inventadas com que enches a cabeça
a realidade é bem diferente

demasiado jovem para sofrer

o espectador diletante diria
como um animal acossado

            nada disso
já está na idade           ou
andei contigo às costas muitos anos ou
já é tempo de começares a contribuir

Caderno 1

Bruno Alves 
Carlos Alberto Machado
Catarina Barros
Catarina Costa
Fernando Guerreiro
Helena Bento
Hugo Milhanas Machado
Luís Ene
Margarida Vale de Gato
Maria Sousa
Paulo Kellerman
Paulo Rodrigues Ferreira
Pedro Bernardo Costa
Ricardo Domeneck
Samuel Filipe
Tatiana Faia
Samuel Beckett traduzido por Hugo Pinto Santos
Victor Gonçalves

Capa 
João Alves Ferreira

Enfermaria 6, Lisboa, março de 2014, 68 pp.
5€

Para comprar
Na Fyodor Books
Ou envie-nos a sua encomenda para:
enfermariaseis@gmail.com

Alexandre

Alexandre era ainda mais gordo do que Filipe.  Gabava-se: Lá nos acampamentos é uma diferente todas as noites. O seu uniforme de escuteiro e as queixas, quando jogavam à bola, de que tinha o rabinho assado haviam-lhe granjeado fama de larilas. Só se for uma pila, mariconço. E os rapazes riam. Alexandre ria também. Era um tipo alegre. Acompanhava a mãe à missa, acompanhava a mãe às compras. Um bom menino. Quando tirava más notas – e não o podiam acusar de falta de afinco – era sempre a mesma ladainha: se o teu pai fosse vivo isto não acontecia.

Filipe

Apesar de serem incontáveis os seus feitos e repetidas vezes ter dado provas de valentia – expedições aos quintais da vizinhança premiadas com o saque de muita fruta, a morte de pelo menos dois cães à pedrada, ter sido o primeiro a apalpar as mamas à Marisa, apenas para mencionar as mais gloriosas – era por vezes lamentado entre nós por levar nas trombas do pai. O cabrão do velho desta vez arreou-me bem, mas esta merda não vai ser sempre assim. Quem ri por último ri melhorE mostrava com orgulho as marcas da penitência. Suando de boas intenções o patriarca acendia mais um cigarro para acompanhar a cerveja. Sr. João Marques, eu já tentei de tudo, não há maneira de meter o puto na linha.

dava de comer aos gatos no quintal às escondidas da minha mãe
 e eles vinham o pior era quando
 
as gatas escolhiam o quintal para dar à luz
 
e a minha mãe matava os pequeninos
 
a minha mãe enchia a banheira de água
 
e metia lá os pequeninos até eles deixarem
 
de miar eles já não miavam e depois
 
atirava-os para o caixote do lixo como se fossem lixo
 
e já nem eu podia dizer que eles eram outra coisa
 
e ela chamava-me não
 
dês de comer à merda dos gatos
 
já estou farta de te dizer para
 
não dares de comer à merda dos gatos
 
e a gata miava à volta do limoeiro
 
miava debaixo do tanque e eu chorava
 
a gata miava até a minha mãe a enxotar
 
a gata fugia da minha mãe a minha
 
mãe com a vassoura não voltes
 
gata de merda nunca mais te quero aqui ver
 
e a gata fugia mas voltava mais tarde
 
e eu dava-lhe de comer e quando
 
a minha mãe me apanhava batia-me
 
dizia estou farta de te dizer
 
para não dares de comer à merda dos gatos