Valor

Considero valor cada forma de vida, a neve, o morango, a mosca.
Considero valor o reino mineral, a assembleia das estrelas.
Considero valor o vinho enquanto dura a refeição, um sorriso involuntário, o cansaço
de quem não se poupou, dois velhos que se amam.
Considero valor aquilo que amanhã já não valerá nada e já hoje vale pouco.
Considero valor todas as feridas.
Considero valor poupar água, reparar um par de sapatos, calar a tempo, acudir a um grito, pedir permissão antes de sentar, experimentar gratidão sem recordar de quê.
Considero valor saber num quarto onde é o norte, qual é o nome do vento que está a secar a roupa.
Considero valor a viagem do vagabundo, a clausura da freira, a paciência do condenado, não importa qual a culpa.
Considero valor o uso do verbo amar e a hipótese de que exista um criador.
Muitos destes valores não os tenho conhecido.

 

Erri de Luca, Opera sull’ acqua e altre poesia, Einaudi, 2002.
Tradução de Tatiana Faia

Memória

Poema de Natalia Ginzburg
(Originalmente publicado em Dezembro de 1944 na revista Mercurio)
Tradução de Hugo Miguel Santos

Os homens vão e vêm pelas ruas da cidade.
Compram comida, jornais, dirigem-se às mais diversas empresas.
Têm rosados os rostos, os lábios cheios e vívidos.
Levantaste o lençol para ver o seu rosto,
baixaste-te para beijá-lo, num gesto corriqueiro.
Mas era a última vez. Era o mesmo rosto de sempre,
mas um pouco mais cansado. Era o mesmo vestido de sempre.
E os mesmos sapatos. E as mãos eram as mesmas mãos
que partiam o pão e serviam o vinho.
Hoje à medida que o tempo passa ainda levantas
o lençol para ver o seu rosto uma última vez.
Quando caminhas pela rua, ninguém te acompanha,
e quando tens medo, ninguém te dá a mão.
E não é a tua rua, nem é a tua cidade.
Não é tua a cidade iluminada: a cidade iluminada é dos outros,
dos homens que vão e vêm comprando comida e jornais.
Podes aproximar-te devagar da janela quieta,
observar em silêncio o jardim na escuridão.
Dantes quando choravas havia a sua voz serena;
e quando te rias lá estava o seu delicado riso. 
Mas esse portão que se abria à noite está fechado para sempre;
e deserta ficará a tua juventude, o fogo apagado, a casa vazia.


Memoria

Gli uomini vanno e vengono per le strade della città.
Comprano cibo e giornali, muovono a imprese diverse.
Hanno roseo il viso, le labbra vivide e piene.
Sollevasti il lenzuolo per guardare il suo viso,
ti chinasti a baciarlo con un gesto consueto.
Ma era l’ultima volta. Era il viso consueto,
solo un poco più stanco. E il vestito era quello di sempre.
E le scarpe eran quelle di sempre. E le mani erano quelle
che spezzavano il pane e versavano il vino.
Oggi ancora nel tempo che passa sollevi il lenzuolo
a guardare il suo viso per l’ultima volta.
Se cammini per strada, nessuno ti è accanto,
se hai paura, nessuno ti prende la mano.
E non è tua la strada, non è tua la città.
Non è tua la città illuminata: la città illuminata è degli altri,
degli uomini che vanno e vengono comprando cibi e giornali.
Puoi affacciarti un poco alla quieta finestra,
e guardare in silenzio il giardino nel buio.
Allora quando piangevi c’era la sua voce serena;
e allora quando ridevi c’era il suo riso sommesso.
Ma il cancello che a sera s’apriva resterà chiuso per sempre;
e deserta è la tua giovinezza, spento il fuoco, vuota la casa.

"Cientificamente me pergunto", de Patrizia Cavalli


Todi, 17 de Abril de 1947 ~~ Patrizia Cavalli ~~ Roma, 21 de Junho de 2022



Tradução de João Coles



Cientificamente me pergunto
como foi criado o meu cérebro,
que faço eu com este engano.
Finjo ter alma e pensamentos
para melhor circular entre os outros,
por vezes parece-me mesmo amar
rostos e palavras de pessoas, raras;
sendo tocada gostaria de poder tocar,
mas descubro sempre que todas as minhas emoções
dependem de um temporal que se avizinha.


Io scientificamente mi domando
come è stato creato il mio cervello,
cosa ci faccio io con questo sbaglio.
Fingo di avere anima e pensieri
per circolare melgio in mezzo agli altri,
qualche volta mi sembra anche di amare
facce e parole di persone, rare;
esser toccata vorrei poter toccare,
ma scopro sempre che ogni mia emozione
dipende da un vicino temporale.

3 poemas de Lalla Romano

 
 
 

Tradução: João Coles

No sangue reside um som profundo

Assim soube quando as tuas mãos

tocaram as minhas pela primeira vez

Desde esse dia ouvimos

como que um vento levantando-se

com o mugido de um órgão

até que por fim domados

nos vergou, como maduras espigas, aquele vento



Eu estou em ti

como o amado cheiro do corpo

como o humor do olho

e a doce saliva

Eu estou dentro de ti

da misteriosa maneira

que a vida está dissolvida no sangue

e misturada na respiração




Ninguém pode derrubar-nos da alegria

a nossa alegria subterrânea

como água branda

como veio de rocha