ménades & bassárides

Pagas com duas moedas o teu almoço, massa e molho de tomate. Viajaste de eléctrico, caminhaste por ruas que se te ofereceram em nome, em mapa, e trazias na mala os livros que escolheste na biblioteca, um sobre Pound e outro com os contos de K. Mansfield que gostarias de copiar. Vestiste as calças de ganga de todos os dias, a blusa branca e o casaco de malha que herdaste de uma amiga, bebeste uma imperial, que custou o mesmo que o almoço, e regressaste a casa. Vives com os bolsos vazios e no entanto não te falta nada. A renda do quarto, pagas com a ajuda da tua mãe e de um filósofo suíço, teu benfeitor por interposta pessoa. À noite, quando há serviço, trabalhas num restaurante, serves às mesas em troca de uma refeição e do pagamento mísero que te permite comprar mais massa e mais molho de tomate. A água ferve. Preferias ficar em casa a escrever mas sabes que a escrita, mesmo que o não queiras, vai em tudo o que fazes. Na cozinha, encontras sempre formigas, estremeces. Ao longo do dia agarras no telefone, ponderas mensagens, voltas atrás. Não encontras propósito para a tua própria voz.
E no entanto, quem te livra de ti? Precisas de símbolos, de adornos. No eléctrico invejas os dedos das mulheres, pejados de anéis, as pulseiras de prata, as medalhinhas de ouro. Querias para ti um desses talismãs, ou a necessidade deles, que te é alheia. É isso que invejas, um desejo claro pelo precioso. Desejarias para ti umas perolazinhas nas orelhas que usasses sempre no Natal. E no entanto não são as pérolas que desejas mas apenas o gesto de as colocar, de as mostrar, de ser com elas vista. Poder dizer aos filhos: tenho estas pérolas desde que me casei, usei-as todos os anos nesta época. Poder dizer: os meus talismãs, encontrei-os na escrita.

para um estudo do silêncio acompanhado

Aprendi a não dizerfalta-me aprender a não pensar. Para deixar de pensar preciso de pensar tanto que não sobre nada, boicotar o esquema por dentro, infiltrando-me no pensamento, que hei-de armadilhar e fazer explodir. A seu tempo. Sabemos hoje, porque o lemos em livros, que faz parte do Caminho sairmos do Caminho.
Sabemos, porque falámos sobre isso vezes sem conta, que um erro deixa de ser erro se o soubermos viver. Desconfiamos que a deriva nem sequer existe desde que nos deixemos levar sabendo que voltaremos e que, se não voltarmos, não há problema. 
A minha aprendizagem é como aquele desenho no vidro embaciado de um carro: uma montanha de onde se cai sempre menos. Quando se volta atrás nunca se volta tão atrás. O silêncio também é uma vaidade. Um dia direi: começou por ser vaidade, o meu silêncio. Não percas a tua cidade estrangeira, é esse o meu conselho. Ninguém gosta de encarar a vida como se de uma Viagem se tratasse, porque é ridículo. Todo o misticismo deixa o homem desavisado de pé atrás. E, no entanto, nada faz mais sentido do que esta ideia de passeio, que por ora deve ser expressa com cuidados literais e traçados realistas, a fim de evitar a rejeição precoce. Não percas a tua cidade estrangeira.

A moral certa

Em 1951, numa publicação intitulada Comício, Teresa Quadros dispensava conselhos  «sobre como adaptar o perfume que usamos a diferentes ocasiões» ou «usar jóias com uma certa classe» ou ainda «para ajudar as mulheres a acalmarem-se». Mais de cinquenta anos depois, Gonçalo M. Tavares escreveu as Breves Notas Sobre o Medoum pequeno livro onde se inclui um texto chamado «A moral certa», que parece piscarolho a um certo Proust (citado em Príncipes Reais). A ideia: a de que nos juntaremos sempre a quem tenha o «mesmo grau de confusão». Se numa mão temos uma autora feminina (não confundir com feminista) entregue ao supostamente fútil, na outra temos um autor (não confundir com deus) entregue ao pensamento.
Não é, no entanto, de nenhum deles que vou falar – e o que quero dizer, hoje, é mais ou menos breve. Desconfiando desde há uns meses que toda a gente (toda, mesmo) é igual, descobri finalmente a importância do meio. Quero dizer: tenho um amigo que é um leitor ávido, um homem curioso, de boa memória, sempre com uma resposta tão inteligente quanto bem humorada na ponta da língua. Para além disto, tem bom ar e juventude que chegue para uma vida generosa. Quando nos sentamos para falar é evidente que a coisa vai demorar: se ele acabou com a namorada ou se eu tenho problemas no emprego, é certo que vamos gastar horas na centrifugação de tudo quanto pode ser pensado sobre um único tema. Se por acaso tivéssemos mais do que um problema num dado momento creio que seria preciso uma semana para que tudo ficasse dito. Se o tema for a namorada vamos falar de clássicos russos, de filósofos alemães, de poetas portugueses, de deusdo diabo. Quando o tema for o meu emprego falaremos das rabidantes caboverdianas, do sol na Índia, de contos zen, da imaginação que deverá sempre ser maior que o entendimento. No fim, animados mas sem ter dito tudo quanto poderia ter sido dito, teremos que continuar vivos – e sem soluções.
Simultaneamente, há um mundo paralelo onde as coisas acontecem, exactamente da mesma maneira, sem tanto uso de palavras. Um mundo onde as namoradas acabam com os namorados, onde os empregos são miseráveis, onde Kafka soa a marca de tabaco, onde na música o horizonte é a RFM, onde artes plásticas são «isso até eu podia fazer, fôda-se», onde as coisas se arrumam dizendo que ela é uma cabra, que uma andorinha não faz a primavera, que a vida continua, que vai ali uma gaja boa, que hás-de arranjar trabalho, e que fizestes [sic] o teu melhor, destes [sic!] tudo o que podias, e isto é tudo por causa da inveja que os outros têm de ti.
E aquilo que para mim se vai tornando evidente é que este exercício de pensar, se for separado da experiência de viver, é irmão gémeo do exercício de não pensar que, de resto, nem sequer existe – porque, quer queiramos quer não, toda a gente pensa.No mundinho superficial de Teresa Quadros podia não estar presente o génio de um M. Tavares mas dele nunca se ausentou o coração selvagem. O meio, que nos quer obrigar a ser mais espertos do que a vida, contornando-a pela via da tese, não nos faz ascender ao céu. 
Teresa, como toda a gente sabe, era pseudónimo de Clarice Lispector.