Caderno 1

Bruno Alves 
Carlos Alberto Machado
Catarina Barros
Catarina Costa
Fernando Guerreiro
Helena Bento
Hugo Milhanas Machado
Luís Ene
Margarida Vale de Gato
Maria Sousa
Paulo Kellerman
Paulo Rodrigues Ferreira
Pedro Bernardo Costa
Ricardo Domeneck
Samuel Filipe
Tatiana Faia
Samuel Beckett traduzido por Hugo Pinto Santos
Victor Gonçalves

Capa 
João Alves Ferreira

Enfermaria 6, Lisboa, março de 2014, 68 pp.
5€

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ménades & bassárides

Pagas com duas moedas o teu almoço, massa e molho de tomate. Viajaste de eléctrico, caminhaste por ruas que se te ofereceram em nome, em mapa, e trazias na mala os livros que escolheste na biblioteca, um sobre Pound e outro com os contos de K. Mansfield que gostarias de copiar. Vestiste as calças de ganga de todos os dias, a blusa branca e o casaco de malha que herdaste de uma amiga, bebeste uma imperial, que custou o mesmo que o almoço, e regressaste a casa. Vives com os bolsos vazios e no entanto não te falta nada. A renda do quarto, pagas com a ajuda da tua mãe e de um filósofo suíço, teu benfeitor por interposta pessoa. À noite, quando há serviço, trabalhas num restaurante, serves às mesas em troca de uma refeição e do pagamento mísero que te permite comprar mais massa e mais molho de tomate. A água ferve. Preferias ficar em casa a escrever mas sabes que a escrita, mesmo que o não queiras, vai em tudo o que fazes. Na cozinha, encontras sempre formigas, estremeces. Ao longo do dia agarras no telefone, ponderas mensagens, voltas atrás. Não encontras propósito para a tua própria voz.
E no entanto, quem te livra de ti? Precisas de símbolos, de adornos. No eléctrico invejas os dedos das mulheres, pejados de anéis, as pulseiras de prata, as medalhinhas de ouro. Querias para ti um desses talismãs, ou a necessidade deles, que te é alheia. É isso que invejas, um desejo claro pelo precioso. Desejarias para ti umas perolazinhas nas orelhas que usasses sempre no Natal. E no entanto não são as pérolas que desejas mas apenas o gesto de as colocar, de as mostrar, de ser com elas vista. Poder dizer aos filhos: tenho estas pérolas desde que me casei, usei-as todos os anos nesta época. Poder dizer: os meus talismãs, encontrei-os na escrita.

para um estudo do silêncio acompanhado

Aprendi a não dizerfalta-me aprender a não pensar. Para deixar de pensar preciso de pensar tanto que não sobre nada, boicotar o esquema por dentro, infiltrando-me no pensamento, que hei-de armadilhar e fazer explodir. A seu tempo. Sabemos hoje, porque o lemos em livros, que faz parte do Caminho sairmos do Caminho.
Sabemos, porque falámos sobre isso vezes sem conta, que um erro deixa de ser erro se o soubermos viver. Desconfiamos que a deriva nem sequer existe desde que nos deixemos levar sabendo que voltaremos e que, se não voltarmos, não há problema. 
A minha aprendizagem é como aquele desenho no vidro embaciado de um carro: uma montanha de onde se cai sempre menos. Quando se volta atrás nunca se volta tão atrás. O silêncio também é uma vaidade. Um dia direi: começou por ser vaidade, o meu silêncio. Não percas a tua cidade estrangeira, é esse o meu conselho. Ninguém gosta de encarar a vida como se de uma Viagem se tratasse, porque é ridículo. Todo o misticismo deixa o homem desavisado de pé atrás. E, no entanto, nada faz mais sentido do que esta ideia de passeio, que por ora deve ser expressa com cuidados literais e traçados realistas, a fim de evitar a rejeição precoce. Não percas a tua cidade estrangeira.

«ben zakhai»

teatrocapa.jpg

de Teatro de Rua, Tatiana Faia, do lado esquerdo, Coimbra, 2013.

três da manhã em budapeste
no piso subterrâneo de um hotel
um homem e uma mulher
deixam-se ir ficando para a privacidade
suburbana de um parque de estacionamento 

dentro do carro conversam
como quem joga xadrez
sacrificando peça após peça
com uma atenção metódica
indício talvez de um punhado
de critérios mais sábios 

eles lembram-te de outra história de rabis
ben zakhai negociou habilmente sobre jerusalém
preparou em desespero o render da cidade
ele e o imperador tinham conversas de planos
entretiveram com tacto grave
discussões de sucessivas estratégias 

mas por enigmas desencontrados
cada um deles reclamava ainda outra coisa 
quetudo a perder mais vale
querer cada vez mais, imagina que 

ben zakhai talvez tenha dito a vespasiano
uma destruição esconde sempre
outra destruição e a destruição seguinte outra
até não sobrar nenhuma casa
tu daqui vais para roma e eu sabe deus 

e não há-de haver já nada
dentro de nenhuma das casas nesta cidade
contidas como soldados demasiado jovens
escondendo-se ao perceber o primeiro dever do medo,
o de se enterrarem no refúgio circular das muralhas 

nada das coisas que compõem uma cidade
o nosso comércio o discreto barulho
das nossas mulheres no seu ir e vir
coisa calada de com os filhos pelas mãos 

as intactas paredes das nossas casas
o recolhimento sossegado pela tarde
da sombra dos nossos pátios mais interiores
o sussurrar na fala grave de homens
entretidos em conversas de negócios
nada, não há aqui metáfora nenhuma 

começando por uma coisa qualquer
é possível
se assim quiseres
continuar a partir tudo indefinidamente
tudo pode ser minuciosamente destruído 

contra esta mais espessa noite
a ideia de um nó tão fundo que só isso explique
uma cidade inteira calcinada
para que a mesma cidade possa recomeçar

*

O livro será apresentado no próximo sábado, dia 30, pelas 18:00, na  Fyodor Books. Apresentação da exclusiva responsabilidade do duo Barros/Faia.