Imagens Roubadas: playlist

O título do livro, Imagens roubadas, vem de uma canção de Charles Trenet, "Que reste-t-il de nos amours?", de que um dos versos deu nome a um filme de François Truffaut, Baisers volés.

Como play list , banda sonora desta sessão de leitura-cinema pode-se ouvir, segundo uma ordem mais ou menos aleatória, os seguintes temas: 1) The Kinks, "Celluloid Heroes", 2) Elvis Prestley, "King Creole", 3) David Bowie, "I can't read" (com os Tin Machine), 4) Lou Reed , "The Heroine" (de "The Blue Mask") , 5) Eddy Mitchell, "La fille du Motel", 6)Scott Walker, "Farmer in the City" (de "Tilt"), 7) Marquis de Sade, "Conrad Veidt", 8) Bauhaus, "Bela Lugosi is dead", 9) The Clash, "The Right Profile", 10) Sonic Youth, "Tunic (Song for Karen)", 11) Madness, "Michael Caine",  11) "Science Fiction/ Double Feature" (The Rocky Horror Show), 12) The Go-Betweens, "Lee Remick", 13) The Kinks, "Oklahoma USA".

Quando se fecham as luzes e o filme arde na bobine, podemos então sair com "La Dernière Séance" de  Eddy Mitchell.


SKIN DEEP

    Só por cansaço ou embutimento dos sentidos tomamos por “natural” o nosso lugar  no mundo ou inserção no relevo da paisagem. Basta uma brisa de vento agitar a vida própria dos átomos e dos seus micro-organismos, todo o invisível material que está lá, no espaço, para termos a percepção de como as coisas giram sobre si mesmas, englobando-nos, sem contemplações, no seu devir eufórico-trágico indiferente e, podemo-lo dizer, imundo.

    Assim, a estrada obcessiva, iluminada pelos faróis de Karma Police , o parque de caravanas, isolado, de Street Spirit (clips de Glazer para os Radiohead), ou, aqui, o lugar ermo da costa da Escócia onde alguém, um checo, diz encontrar-se porque procura um lugar “fora de tudo (“nowhere”), constituem não-lugares  da mesma ordem, e com as mesmas propriedades (anónimas e anómalas), daqueles que percorre aleatoriamente o personagem-alien  de Under the Skin (um ser sem nome ou determinação sexual), ele próprio “formação”= “figura” do “lugar-nenhum” de onde vem o filme  de Jonathan

 

Glazer, dando forma e corpo a uma conhecida tese de Serge Daney: “Le cinéma n’a plus d’autre spécifité que celle d’acueillir des images qui ne sont pas faites pour lui”.

    No personagem de Scarlett Johansson (uma versão feroz e voraz do alien personificado por David Bowie em The Man who fell to earth de Nicolas Roeg [1976]) [link A]), encontramos sinais de uma constante desadequação, impropriedade, da relação com o corpo que, afinal, é também a nossa. Será o corpo o “estranho” em nós – uma espécie de alien de 2º grau, teodolito caído do espaço a que damos a cobertura  de uma aparência que atenua, torna suportável (vivível?) a sua radical “estranheza” ( a “estranheza” do orgânico, dessa semente do cosmos de que somos os portadores [Lucrécio]) – ou somos nós o “estranho” nele, o elemento invasivo (um vírus, infecção da matéria) que vem parasitar o seu funcionamento?

 

    Com efeito, debaixo da pele = película, do personagem ou do filme, o que se encontra?      

    Quando Scarlett Johansson começa a retirar a pele que a cobre temos a percepção de que, debaixo dela tanto se pode encontrar o vazio ( e então ela pode abrir para o espaço sideral, o nada), como a  substância negra, não impressionada (virgem de impressões, sensações, figuras), do “negativo” do próprio filme. Uma matéria (substância) negra, maleável, moldável, mas sem atributos, especificações (qualidades) que é, como se diz, a do “sonho” e a do cinema.

 

    O desajuste do “alien” em relação ao (seu?) corpo (“ O cinema não reproduz corpos, ele produ-los com grãos, que são grãos de tempo”, afirma Deleuze numa entrevista aos Cahiers du Cinema nº 380, 1986) [link B] é, afinal, o das imagens de cinema em relação ao seu “destino”(fatalidade) figurativo e narrativo. Quando o processo devia ser o inverso (aquele que, com desigual sorte, aqui ensaia o alien): o que conduz do negro/ vazio original à  alucinação da imagem ou à  hiperestesia (hipnótica, siderante [vd. sequência na discoteca]) das (des)conexões (sinapses) dos neurónios e sentidos em sintonia com uma concepção de cinema (vida) como Ipad, ecrã de simulação e de interacção virtual/ real (“O cérebro é o ecrã”/ “o cinema não introduz só movimento na imagem, ele introdu-lo também no cérebro”, observa Deleuze na mesma entrevista).

    Under the skin confronta-nos, assim, com uma ideia de cinema (que o autor vem desenvolvendo dos clips musicais e anúncios de publicidade aos seus filmes: Sexy Beast [2000] e Birth [2004]), ela própria dada entre a abstracção (vd. as atmosferas monocro-máticas, bolhas de descompressão do real=gravidade, a branco ou negro,que constituem também espaços kubrickeanos de suspensão formal que Glazer já evocara em clips como The Universal, dos Blur [Clockward Orange], e Karmacoma, dos Massive Attack [Shinning]) e, continuamos, o máximo de sensorialidade  da fotografia suja e húmida de um microrealismo do quotidiano e do pormenor (urbanos) que conhecemos do cinema inglês (muitas vezes local, regional) que vem desde os anos 80 e 90 ( vd. Chris Bernard, A Letter to Brezhnev [1987], Alan Clark, Rita, Sue and Bob too [1987], Mike Leigh, Naked [1993], Lynne Ramsay, Morvern Callar[2002], entre outros).

    De tão “próximo”, o real torna-se “estranho” (“estranheza” de que aqui o “homem-elefante”, vindo de Lynch, pode ser a “figura”) ou mesmo “estrangeiro”, como se checos, albaneses, eslavos, porque tomam o “real” por baixo, aquém ou à margem da representação, se tornassem os “herdeiros” desse mínimo (denso) de real, das coisas e sensações,  aquém da linguagem e dos conceitos, a resgatar (Kracauer) pelo cinema.

 

    Essa experiência= via das sensações= sentidos, é aquela por que passa o alien do filme. Uma via, experiência, que, como com o cinema, se irradia e transmuta em hipersensibilidade, abstracção sensível, transportando-nos das determinações locais dos corpos e do espaço – através de um processo de indeterminação para o qual muito contribui o som, aqui, devido ao carácter electrónico das instalações sonoras, tanto menos uma dimensão (porque lhe falta “expressividade” figurativa / narrativa) como uma 3D da imagem (ele é, em certa medida, o coração/ centro pulsante do filme que sustém, do princípio ao fim, esse efeito de irradiação “sensurround” abstractizante) – para, sim, a sua dissipação (infra ou ultrasensível) no Tempo (“A  imagem, em si mesma, é um conjunto de relações temporais […].As relações de tempo nunca são vistas na percepção comum mas elas podem ser vistas na imagem […]. A imagem torna as relações de tempo […] sensíveis e visíveis”, precisa ainda Deleuze [para uma versão em inglês do texto cf. Gregory Flaxman (ed), The Brain is the screen – Deleuze and the Philosophy of cinema, University of Minnesota Press, 2000 [365/ 373]).

    Daí que, apesar das conexões com Kubrick, o percurso do filme de Glazer nos pareça muito diferente (desse ponto de vista, ele encontra-se mais próximo da sequência com o corpo na morgue de Eyes wide shut do que de 2001- A Space Odity – aqui não há “osso” que sirva de suporte material/ físico à Alegoria): passando, na abertura, dos flashes de luz à imagem do olho, personagem e filme, depois de percorrerem (e testarem) a alego-

ria sensível das suas diversas figurações (tentativas de corporização= figuração por adopção das “imagens” do mundo [vd. cena de “não-relação” sexual, já perto do fim]), desintegram-se e dissipam-se de novo em som-tempo e luz-energia (cósmicos), ou seja, no cristalino diáfano da própria matéria= substância luminosa- corpuscular (agora não “negra” mas “revelada”) do Cinema.

 

 

Link A:

    Como o próprio Roeg esclarece, o filme trabalha sobre situações de uma dupla estranheza que advém da colocação de um alien (extraterrestre ou cidadão inglês) num cenário e paisagem também eles “estranhos” (seja o deserto do Novo México ou a flatness icónica da cultura americana).

    No entanto, à opacidade (negra) e ao excesso (pulsional= sensorial) do universo de Under the Skin  contrapõe-se aqui a virtualização do real nos ambientes hiper-mediáticos ( e mediatizados) das instalações de aparelhos de TV construídas pelo alien (“o que me interessa é a energia, a transferência de energia”, afirma): assim, esse aquário de imagens, a banda-sonora (com segmentos de música electrónica que evocam os Pink Floyd da altura e anunciam o Bowie de Station to Station e, sobretudo, Low [discos em cujas capas se reproduzem fotogramas do filme]), ou mesmo a abertura do espaço exterior (o deserto), constituem a substância oca, o vazio a preencher de matéria (com água, informação ou imagens) para que se fixe, sedimente algo, haja, por assim dizer, real (que será também sempre “alienígena”, localizado, como nostalgia: utopia, num universo diferente).

 

    Pela mesma razão, no filme, as imagens de si no espelho, ou as dos outros enquanto espelho (Mary Lou e o alien, Thomas Jerome Newton, como o andrógino um do outro), nada fixam a não ser o espaço entre elas, a dobradiça do dispositivo de reflexão/ figuração criado, o cinema. Em Under the skin, contudo, é o excesso de opacidade (negro) do corpo (que refere a opacidade interna do seu funcionamento: o duplo enigma do desejo e da carne) que absorve (mastiga e cospe), na sua densidade: espessura (inumanas) qual-quer imagem.

 

Link  B

    É curioso constatar como Scarlett Johansson tem dado corpo e voz a estas experiências sobre “figuração do imaterial” no cinema.

    Deste ponto de vista, Under the Skin tem semelhanças, ao mesmo tempo que é como que o seu inverso, com Her de Spike Jonze.

    Em Her era pela Voz – o mais abstracto e não figurativo, embora figural – que se procurava produzir: projectar – e no melhor dos ecrãs: o cérebro do personagem/ espectador – o corpo de sensações que constitui o simulacro imaginário-real da atmosfera sonora do “fantasma” da rede/ computador (e, claro, da ideia-imagem, no nosso banco 

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de dados, da actriz); em Under the Skin, contudo, a via é a do invólucro (película: cobertura) do corpo para a constelação sensível (astral,cósmica) que nele, pelas suas “presas”, se procura encarnar (só o “homem-elefante”, homólogo figural do “alien”, se  salva).

   O corpo e a voz, hipersensuais, de Scarlett Johansson – assim como a relação de acordo: conveniência que entre eles parece haver e que ambos os filmes desconstroem para a testar e, em última análise, refundar – funcionam aqui como uma verdadeira antena de sensações, lugar (passional e em certa medida “sacrificial”) da precipitação: condensação e depois irradiação do real. Ou seja, no sentido pleno do termo, uma imagem.

O Cinema no Espaço

    1. A  “teoria” surge, muitas vezes, de onde não se espera.

    Numa das falas de A Hora do Lobo (1968), de Ingmar Bergman, afirma-se que “agora que o espelho se quebrou, é altura dos bocados começarem a pensar”.

    A reflectir, reenviar imagens duplas (ou terceiras), encurvadas sobre si mesmas, em que a linearidade (apenas) aparentemente mimética das suas figuras, se opacifique, deforme, confunda, reconduzindo-nos a uma interrogação sobre a neutralidade e o funcionamento dos dispositivos.

    Em boa verdade, sempre foi assim, nomeadamente no cinema, uma prática das formas, como no início se dizia, “jovem” e, por isso, “secundária” e “segunda”, que, no próprio processo de reprodução do mundo e das outras “artes”, introduzia, na e pela imagem, já uma reinterpretação e crítica do real, assim como dos códigos icónicos que ele traz consigo.

    O  Western americano, como género – pense-se em John Ford (de The Iron Horse [1924], ou Stagecoach [1939], a The Searchers [1956]) ou Budd Boetticher ( de rajada, nos anos 50, Buchanan rides alone, Ride Lonesome, Comanche Station) -, levou por diante, ante os nossos olhos distraídos, uma exposição e reflexão sobre a espacialização do tempo na imagem – em certa media continuando a experiência inovadora do tipo de imagens introduzidas, nas primeiras décadas do século XIX, pelo Panorama-, tal como, para dar o exemplo de outro género (clássico) popular, o cinema de aventuras no mar (Raoul Walsh com Captain Horatio Hornblower [1951], Sea Devils [1953] ou mesmo The World in his arms [1952]), capta a ocorrência do “acaso” (a revolução das coordenadas do tempo e do espaço na continuidade de tempo da representação), elaborando, tempestade a tempestade, o que talvez se possa designar por uma poética do acontecimento.

    É o caso hoje, pensamos, de filmes como Gravity (2013), de Alfonso Cuarón (os seus primeiros 20/25 minutos), e All is Lost (2013), de J.C. Chandor.

    2. Através do longo plano-sequência (numérico-sintético), sem (quase) som, dos primeiros 16 minutos do filme (“a kind of  continuous flow allowed by digital manipulation”, como observa Roger Luckhurst na crítica da Sight & Sound de Dezembro de 2013 [vol. 23, nº 12,p.26]), aprofunda-se  a dimensão temporal do espaço que é como que modulada e varrida pela combinação do 3D (que permite pulsações, crispações e expansões,  projecções  frontais e laterais do espaço) com a sugestão dos movimentos de câmera (um plissado espácio-temporal da massa, contínuo, da imagem, percorrida e movida pelas dobras de correntes interiores que revolvem a sua superfície), de modo a construir a arquitectura de uma atmosfera formal-sensível de significação que podemos associar à 4D do cinema (“Cuarón estabelece um jogo geométrico apaixonante entre um espaço euclideano em revolução permanente e uma câmera panóptica que flutua pelo meio dos objectos num estado de imponderabilização”, comenta Mathieu Macheret nos Cahiers du Cinéma nº 693 [Outubro/ 2013, p. 32]) .

     Deste ponto de vista, o filme de Cuarón –hierarquias de “autoria” à parte – exponencia, dando-lhe vibração e volume, o trabalho de rarefacção e abstracção (mais  bidimensional) de Stanley Kubrick em 2001- A Space Odissey (1968 ): aqui, em Gravity, não é preciso lançar um osso no espaço para passar à alegoria, o “osso”, as extensões da nave/ máquina, fazem já parte do universo do plano (=imagem).     

    No início dos anos 30 – no quadro do fim do cinema “mudo” e da introdução das novas tecnologias do som e do 3D -, Jean Epstein, em dois importantes artigos (“ Le ciné-matographe continue…”e “Bilan de fin du muet”), refere-se  a um tipo (novo) do cinema, que ele designa (enigmaticamente) por “cinema no espaço” (“cinéma dans l’espace”),  uma forma que o ajuda a teorizar a possibilidade da 4D no cinema (algo com que também se preocupa, nesses anos, pensando-a sobretudo em função da Montagem, Eisenstein, nomeadamente no artigo “A Quarta Dimensão do Cinema” [1929], depois inserido no volume Film Form [1949]).

    Para o Epstein desses anos, o cinema permitia ao homem ter “experiências do tempo” (em presença, numa situação semelhante à simulação da realidade virtual: a da sessão de cinema) [I, 250], o que ele associa à 4D da imagem: “o cinematógrafo é o único instrumento actual que regista o acontecimento num sistema de quatro referências” [250], escreve. Por um trabalho de modulação (pela câmera lenta ou acelerada, a sobreposição ou o Grande plano) do tempo na imagem (aquilo que ele designa por manipulação da “perspectiva no tempo” [ibid.]), o cinema seria capaz de, esbatendo as “fronteiras entre os reinos da natureza” dar ou reatar com a unidade da matéria (o “mundo na sua mobili- dade geral e contínua”[ibid.]) e, assim, passar a ou criar um outro estado (superior) da matéria/ real. “Cada imagem traz consigo um instante do universo que reconstituímos no espírito em toda a sua continuidade à medida que decorre a projecção”: o que impedirá então o cinema de “criar o seu aspecto próprio do mundo?”, interroga-se [249].

    Em 1929, a propósito de A Queda da Casa Usher, no texto “A Alma em câmara lenta”, Epstein profetiza: “um dia,  o cinematógrafo será o primeiro a fotografar o anjo do homem [l’ange humain]” (Écrits sur le cinématographe, vol. I, Seghers, 1974, p.191 [em todos os casos, traduzimos]). Ou seja, sabêmo-lo hoje, os astronautas.        

    Mathieu Macheret, no texto dos Cahiers  (“Tombé dans le ciel”), estabelece uma relação entre a queda dos astronautas no espaço e o personagem (narrador) de A Descent into the Maelström de Poe. No entanto, mais do que ao conto de Poe – com o seu vórtice interior à própria matéria -, pelo nosso lado, referir-nos-íamos antes à tentativa de criação, no filme, de um espaço imponderável, suspenso da interacção , não feliz mas fatal (trágica), entre matéria e anti-matéria, homólogo daquele que é pensado por Poe em Eureka (1849).

    Por um lado, escreve Poe, ”na unidade original da primeira coisa encontra-se [já] a causa secundária de tudo, com o gérmen da sua inevitável aniquilação” [9], pelo que o mundo (a matéria), na sua expansão ( e divisão), tende para o desastre, a sua anulação, mas também para a unidade ( a de uma “matéria sem matéria”): “Ao mergulhar na unidade, mergulhará de imediato nesse nada”, “niilidade material”, que contudo pode dar lugar a uma “outra criação” (Coisas de Ler, 2004 [109]).

    Esse espaço de Enunciação autónomo, de imponderabilidade, de expansão das características formais-virtuais da Imagem de cinema, produzindo a partir de si mesmo a sua substância= realidade – na entrevista à Sight & Sound, Cuarón refere-se à construção de uma “caixa de luzes” onde foi metida a actriz, Sandra Bullock, de modo a criar um efeito de imponderabilização e imersão numa luz (homogénea e contínua) “não filtrada”: “we had to work out a system of surrounding the actor with lights on all sides, because the light has to go everywhere, and yet we still needed to be able to get the camera in the actor without the light being in the way”, observa Tim Weber, o responsável pelos efeitos especiais do filme [idem (30)] -,     

esse espaço, escrevíamos, é o de uma “atmosfera”= “bolha  englobante” (pele/ película amiótica de uma nova realidade monstruosa?, pós-humana?), seja esta a de Gravity, ou a do universo (sub)marinho de The Wild Blue Yonder de Werner Herzog (2005) – talvez o “elo” substancial-abstracto que nos permite passar da abstracção figural, sim, mas ainda figurativa, de 2001 de Kubrick, para a desfiguração informal de Gravity de Cuarón (ou pelo menos a sua hipótese, na 1ª parte do filme, antes dele sucumbir ao romanesco e pitoresco da linearidade narrativa do “resgate” da astronauta sobrevivente).

    Nestes filmes, assim, como na Arquitectura dita pós-moderna, confrontamo-nos com uma Imagem = matéria-forma sobretudo trabalhada, a expressão é de Alain Renaud-Allain, como a “detenção [l’arrêt] de um fluxo num caso de figura, mais ou menos robusto” (“La nouvelle architecture de l’image”, Cahiers du Cinéma nº 562, Outubro/ 2003 [71]). Nela, comenta ainda o autor, “ a mecânica dos sólidos subordina-se à  mecânica dos fluidos, a forma ao processo de formação; o sólido constitui um estado possível e provisório do material” e “a forma (…) é uma função do tempo (endurecimento, esfriamento…)” [ibid.].

    Daí que, no cinema, em que o ecrã (mole, líquido, poroso ou maleável) deixa de ser uma “superfície”= “espelho” (2D) para ser um “interface” (3: 4D), surja a noção de uma Imagem-modulação , “já não procedendo de um qualquer estado das coisas [Imagem- movimento > Imagem-rasto (“trace”)], mas da dinâmica das fontes e dos fluxos [uma Imagem in progress: poiesis]”(Renaud-Allain[72]). “Do estatuto de impressão luminosa [“trace” > mimese] de um objecto enquadrado , recortado no mundo, a visibilidade da imagem passa ao [estatuto] de caso de uma figura possível de um fluxo electrónico integralmente controlável e manipulável em cada um dos seus parâmetros (amplitude e frequência, luminosidade e cromatismo)” (sublinhado e parêntesis, nossos ) [ibid.].

    Parafraseando e invertendo a ordem de relação dos termos numa conhecida fórmula de André Bazin (voltaremos a ela), o que estes filmes nos apresentam é a hipótese da matéria como estado estético do cinema.

    3. All is Lost, de J.C. Chandor, com Robert Redford como velejador perdido na fúria dos elementos, é o anti-Gravity.

    À imponderabilização do espaço do filme de Cuarón (por isso, à sua maneira, Gravity pode ser visto como um western cuja “última fronteira” foi projectada no espaço) contrapõe-se aqui – é a fenomenologia do acontecimento (acaso e aventura [vd. latino advenire]) do cinema do mar -  uma lógica= princípio da colisão do espaço e do tempo – é isso o acidente (do latim accidens, verbo accedere), “o que acontece” – que leva à corporização (coagulação e depois explosão), em formas e figuras, de um “abstracto” (seja a noção de “espaço”) que se repercute, em cadeia, na / pela particularidade da massa.

    No “acidente” (aqui, a tempestade), o espaço absorve e fixa (materializa) o tempo, de acordo com uma tensão impossível que o leva a explodir= estilhaçar-se na particularidade da massa (a sua abstracção-concreta) que, no filme, é a forma: figura do cinema.

    Se Gravity pode ter a ver com a via de um pós-cinema, All is Lost  trabalha a massa, profundidade, para cá (o informe) e para lá (o fragmento) da figura: a sua “abstracção” é não a do ar: espaço mas a da água: massa (como em Abyss ou Titanic de James Cameron – pense-se, por exemplo, em toda a parte final de Titanic com a cavalgada wagneriana da massa das águas a invadirem a arquitectura= estrutura do plano e do barco).

    Voltamos, assim, à fórmula de Bazin (extraída do seu artigo “Wylliam Wyller, ou le janséniste de la mise en scène”), a de um cinema concebido como “estado estético da matéria”: uma substância dúctil e  plástica, arquitectura móvel e porosa, pregante ao real, em sintonia com a concepção plástica do cinema elaborada na década de 1920 por  autores como Riccioto Canudo, Élie Faure, Germaine Dulac, Marcel L’Herbier ou Jean Epstein.

    Para  Faure (“De la Cinéplastique”,1922), o cinema, fundamentalmente, “incorpora tempo no espaço” [33] e a sua “forma” (caracterizada pelas modulações da “duração”) pode ser descrita  como um “drama formal precipitado no tempo” [34]. Ao fim e ao cabo, uma matéria-massa, concreta-abstracta, que se podia trabalhar como uma arquitectu-ra maleável de ondas e fluxos aberta ao mundo: “o filme é, antes de mais, plástico”, comenta Faure, “ele representa (…) uma arquitectura em movimento que deve permanecer em constante acordo, num equilíbrio dinamicamente continuado na relação com o meio  e com as paisagens onde [ele]  se eleva e mergulha” [27]. E precisa: “um  grande edifício mutável que, diante dos nossos olhos, renasce constantemente de si mesmo por efeito dos seus poderes interiores e em cuja construção participa a imensa variedade das formas humanas, animais, vegetais ou inertes” (Função do Cinema e das outras artes, Edições texto&grafia, 2010 [36/37]).

    Tudo o que a tempestade, no seu vórtice, novelo, amassa, mistura e transporta consigo,  - essas "prises": capturas do real na imagem -, dá materialidade  e elementariedade a esse estado da matéria de Imagem-cineplástica. 

    Jean Epstein, pelo seu lado, alude a um “estado viscoso da matéria”, a sua morfo(onto)génese líquida (marinha) (vd. Coeur Fidèle, 1923): “espraiando-se no tempo, uma vaga [repetida, au ralenti] gera uma atmosfera de encantamento. O mar muda de forma e de substância (…), entre o líquido e o sólido acaba por se criar uma nova matéria , um oceano de movimentos viscosos, um universo embrulhado sobre si mesmo” (citado por Domique Paini, “La main qui ralenti”, Cinémathèque nº 18, 2000 [14]).

    No entanto,  nesse redemoinho – o filme tende para um ponto de vista que cada vez mais o puxa para o fundo  (o “olho do maelström” [Poe]) – há algo que resiste: um eixo – pense-se no corpo do navegador ou no mastro do barco – simultaneamente de centrifigação – porque por estar lá, vertical na espiral, atrai o desastre – e de fixação (centrípeto) que funciona como um princípio tanto de recalibração das coisas (do seu estado de utilidade e funcionalidade), como da sua possível sedimentação (há sempre promessa de terra em qualquer tempestade).

    Robert Redford é o modelo/ corpo deste cinema que vem dos anos 60/ 70 e que extrema , leva ao limite o conflito do  homem – colocado numa situação experimental instalada pelas imagens – tanto com o real, como com o princípio de figuração (representação) do cinema.

    Deste ponto de vista, via Redford, All is Lost prolonga e continua Jeremiah Johnson (1971), de Sidney Pollack, e a sua imersão do corpo do actor na neve (terra) e paisagem (cf.tb. Men in the Wilderness, com John Huston [autor de uma adaptação de Moby Dick, 1956], de Richard Sarafian [1971]).

    4. Mas uma via, pensamos, não exclui a outra, elas podem mesmo (devem?) intersectar-se para, desse modo, se metamorfosear: alterar (James Cameron?).

    Podemos sempre apanhar um barco para o espaço.

 

Little Poor Rich Girl (1965)

Revolve-o em profundidade ou amacia-lhe as superfícies. A ausência de definição da figura permite esse trabalho substancial sobre a imagem. E a imagem, aqui, com o seu carácter massiço de “matéria-forma”(ou “informe”) – o seu registo é o da “metáfora-deformação” a que se refere Jean Epstein -, adequa-se à noção de Imagem-Tempo de que falará Deleuze. A “duração” constitui afinal a substância, profundidade (como em Orson Welles), da imagem. Dilatando os poros da pele, os contornos da figura, o tempo acentua o efeito de branqueamento geral que trabalha o modelo das Odaliscas de Ingres por uma anamorfose que evoca tanto o (quase) nu de Kiki de Montparnasse em L’Étoile de Mer de Man Ray /Robert Desnos (1928) como os corpos derramados de Bill Brandt (nos anos 50).

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A persistência das Imagens

A persistência das Imagens

 1. Talvez haja um momento, não necessariamente pensado pelos futuristas com a sua utopia de uma mecanização do “humano” como uma ainda sua possível extensão (“declaramos sem sorrir que na carne do homem dormem asas” e que ele “será dotado de órgãos inesperados, órgãos adaptados às exigências de um ambiente feito de choques contínuos”, proclama Marinetti no manifesto O Homem-Multiplicado e o Reino da Máquina)[1], um momento, afinal, em que as máquinas, os espelhos, os diferentes dispo-sitivos, de tanto se reflectirem – de tanto pensar ou ser obrigados a trabalhar as proprie-dades da sua matéria e processos -, se tornam autosuficientes e acabam por produzir, a partir de si mesmos, as suas ideias, emoções e imagens.

    Nos anos 20 do século parece que passado – quando o mundo, dizia-se, era “moderno” -, num contexto em que se vivia uma relação extrema com o poder de abertura e de revelação do sujeito e do “humano” pelo real, os objectos e a máquina (o pintor, “mura-lista” e ocasionalmente cineasta, Fernand Léger, anunciava em 1924 “ a vinda [l’avène-ment] do objecto” que constituía, para ele, “o problema plástico da actualidade”)[2], essa possibilidade (oportunidade?) era pensada (vivida) como o devir-outro, in(h)umano, do sujeito enquanto parte (engrenagem) da instalação material das coisas (real) – do seu Dasein não só físico (“natural”) mas também tecnológico, traduzisse-se isso num devir-cosmos ou máquina (o que, muitas vezes, era o mesmo).

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