Nota de leitura (4)

Falo para ti à escuta.
As palavras escondem-se, não ouças
mais do que este rosto sonoro.

Como se a represa mostrasse
musgo, ramos podres, rãs,
folhas surgem dentro da casa.
Não a vejas.

À sombra do meu olhar
o que tiver de ser.

 

Joaquim Manuel Magalhães, Consequência do Lugar, Relógio D’Água, 2001, p. 17.

 

 

Joaquim Manuel Magalhães é, sem dúvida, a verdadeira "angústia da influência" para muitos dos poetas nascidos na década de 70 e alguns da década de 60: ou escrever a "favor" ou "contra". O outro também é Herberto Helder. Ao reler os poemas inseridos em Consequência do Lugar, sinto que existe uma grande afinidade entre uma grande parte dos poemas e os de Paul Celan (afinidade essa que teve,quanto a mim, o seu ponto culminante no volume Um Toldo Vermelho). Poderei estar enganado, mas é o que sinto, quer no tom, mas também na economia das palavras, onde certos poemas adquirem um estilo quase epigramático, embora carregados de significado. No exemplo apresentado, a questão da universalidade já não se coloca, tento em conta a enorme subjectividade que o poema encerra. Contudo, a “falta” de universalidade não rouba mérito ao poema ou ao poeta, apenas torna a sua “influência” um pouco mais limitada. E quando digo “influência” refiro-me apenas ao alcance que o poema poderá ter. Sei que talvez esta seja uma maneira bastante maniqueísta de “ler” um poema. Mas também não estou a dizer que é a única.


Nota de leitura (3) 

Diário

Se Deus quiser hei-de morrer
Com tudo feito e por fazer. 

Raul de Carvalho
Duplo Olhar (1978) 
em Poemas Portugueses: Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XIII ao Séc. XXI, Porto Editora, 2009, p. 1383. 

 

Raul de Carvalho é talvez um dos poetas mais esquecidos. E é também um dos nossos melhores poetas, apesar de considerar a sua obra um tanto ou quanto desigual (e talvez seja isso mesmo que o faça ser um dos melhores). É um poeta que muito aprecio e este é o único poema que sei de cor. E ele poderá questionar o leitor: existe poeticidade nele? O seu tom aforístico poderá, de certa maneira, levar ao equívoco e alguém afirmar “isto não é um poema” ou “isto não é poesia”. A primeira afirmação, do meu ponto de vista, é mais tolerável do que a segunda, pois acredito que nada está excluído da esfera da poesia. Acredito que uma das funções da poesia é revelar aquilo que poderá estar “escondido”. Neste caso a revelação é evidente: qualquer um de nós irá um dia morrer, e morrerá com tudo feito e por fazer. Novamente (e porque não?) a questão da universalidade do poema. Em qualquer parte do mundo este poema encerra em si uma verdade inequívoca. O poeta apenas se atreveu a dizê-la em voz alta.

Nota de leitura (2) 

Os Bichos

Parece o movimento
de uma serpente, 
este caminho que percorro
todos os dias
ao encontro do cansaço. 
E nas bermas
gatos esventrados. 
E no centro, 
bem no centro, 
alguns cães pisados. 
Bichos que sem culpa
prefiro pensar adormecidos. 

Henrique Manuel Bento Fialho
Entre o dia e a noite há sempre um sol que se põe
Edição de Autor, 2000, p. 29.

De todos os poemas que já li de Henrique Manuel Bento Fialho, ficou-me este gravado na memória. Não sei se devido ao facto de muito andar na estrada. Se devido ao facto de o considerar um muito bom poema. Mas também é um facto que acredito que toda a poesia tem, em sim, a intenção de comunicar, mesmo que seja na sua incomunicabilidade (recordo, por exemplo, alguns poemas dadaístas). A questão da universalidade é, de novo (e segundo o meu ponto de vista), também aqui importante. Penso que a maior parte dos leitores que conduz, e mesmo aqueles que o não fazem, se conseguem identificar, ou até mesmo rever, no sujeito poético deste poema. O quotidiano é plasmado em cada um destes versos com uma simplicidade desarmante. E essa simplicidade não deixa de ser poética. E é tudo menos fácil, pois falar da morte, sem cair nos lugares-comuns habituais, não está ao alcance de todos.

Nota de leitura (1) 

Catorze

A alma dum rapaz é naturalmente
fascista. Não se deixa levar
pelo brado da justiça. Conhece bem
as pedras e a força que as anima. 
Sabe a que distância um insulto fere bem. 
Não precisa de estudar o ADN, a lei
do mais feroz. Esmurra quem lhe foge, 
conjuga sempre os verbos no presente, 
acende numa sarça o cigarro inicial. 

José Miguel Silva
Vista para um Pátio seguido de Desordem
Relógio D’Água, 2003, p. 26. 

 

A minha relação com a poesia de José Miguel Silva não é d'agora. Alguns amigos sabem que Vista para um pátio seguido de Desordem foi para mim um livro decisivo na mudança da minha própria poética. Os mais próximos sabem que o considero o melhor poeta da sua geração (apesar de "geração" ser um termo perigoso). Não é segredo nenhum que admiro este género de manifestação poética, em detrimento de outra demasiado umbiguista mas com pretensão de universal, e que vai sobrevivendo à custa de melícias organizadas que atacam tudo o que lhes cheira a heterodoxia, ou "regresso ao real", como se a Poesia alguma vez tivesse sido ortodoxa, ou expulsa do "real", para assim ter de existir um regresso. Penso que este poema é universal. Todos nós tivemos catorze anos. Mas também é certo: há quem já nasce muito velho.

Quatro poemas das horas vagas

1.

Agora
a esta hora
sinto

a orfandade
duma guerra
perdida

Nada resta do dia
que resgate
desta anacrónica

melancolia —
tal a canga
sentida

E nem
o ronronar
do gato salva

esta "porra triste":
em tudo
ver absurdos

sem nunca
ter dado
para existencialista

 

2.

Durante
algum tempo

procuraste
uma espécie

de sossego
que trouxesse

paz
Procuraste

e desististe
Concluíste

que a paz
é um fim

e não um
caminho

E tu preferes
caminhar

 

3.

O sino da igreja
lembra que o tempo
não espera por
ninguém

O gato
à janela sabe
as vidas
que na verdade
tem

E este poema
acaba aqui
e não acaba
bem 

 

4.

Foi est
país que nos
calhou

à beira
mal plantado:
terra de uvas

onde
só sobra

bagaço