HOJE AS RUAS ESTÃO ERMAS

Hoje as ruas estão ermas
e a cidade fecha-se, enclausura-me
dentro de meus poemas.
Kavafis. Saio em busca de Kavafis
ou de qualquer outro poeta
que ande por estas ruas:
Eliot transmudado em Tirésias,
Dante guiado por Virgílio, qualquer um.
Onde encontrá-los
no deserto em que só a minha voz ecoa?
Como cantariam eles a aridez da tarde
e os vivos e os mortos?
Como cantariam eles o silêncio
destas ruas que vazias esperam
os bárbaros que já aqui chegaram
e constituíram família?

DIA DE TRABALHO

Há homens para os quais a liberdade
é um acaso incompreensível
e ameaçado por toda a sorte de casos
estes, sim, muito compreensíveis.
Acorda um homem com a manhã escura.
Sai de casa. Está na praça central
quando um homenzinho de quepe
na cabeça grita o seu nome.
Então ainda se bate continência?,
espanta-se e o homenzinho
responde mas é claro que se bate,
ignorá-lo é o tipo de delito
que não se perdoa a ninguém.

Ontem

Às nove horas da noite – réquiem
cansado – o poema falha
como fênix rediviva.
O que tenho. O que as mãos
concebem é ridículo
rouxinol domesticado.

Finda um dia em que não couberam
todos os seus cadáveres:
um poeta extinto, outros tantos
corpos destroçados
entre as rochas dos Alpes,
as homenagens, as vozes exaltadas,
as eternidades prometidas,
as catástrofes, os homens todos
furiosamente comovidos. 

Pela manhã iniciei a leitura
de um livro que já falhei
em ler anteriormente.
Às quatro horas, no escritório –
já as telas dos computadores se entupia
de urgentes obituários –
uma leitura clandestina
sobre a velocidade do infinito.
Foi calculado: as galáxias
afastam-se a uma velocidade
de 550 milhões de quilômetros horários.

Eu, futuro cadáver, às vezes
penso como as crianças -
único modo de falar com os mortos.
Onde estávamos ontem, desgarrados
irmãos do cinturão de asteróides?
Na queda, vimos
de onde ontem estava o sol
ou morremos antes de alcançá-lo?
Faço as contas, multiplico
o número de horas de um dia
pelo número de horas de um ano
pelo número de horas de todos os meus anos –
que distância impossível e ridícula,
terei me deslocado mais do que o espaço
entre a tabacaria da esquina e os mares congelados
das luas de Saturno? E o poeta morto, que viveu
muito mais do que eu, foi da Terra
ao além do Sol ou deixa átomos
do que foi, do que amou, de sua paixão
erradia no vazio enregelado de Netuno?
Ou estamos todos inertes e o espaço
que se dilata é uma desintegração da lei
que nos parecia irrevogável? Dispersam-se
nuvens de nebulosas
como debaixo da terra dispersam-se
unhas, cabelos, mandíbulas,
braços que ontem foram harpas
tangendo música imediata, telúrica, sensual.
Onde estaremos todos amanhã,
náufragos do eterno? São os peixes
multicoloridos as estrelas
e o nada morto – este vazio espesso
que tudo arrasta – talvez seja igual
a uma corrente marítima
 que amanhã vai trazer chuva e devastação
ou novos campos de girassóis
para enlouquecer os homens.

Que longa estação – que longo verão
mesmo agora que a luz está recolhida.
Às nove horas da noite, restos de poemas
nos pratos engordurados,
ofereço uma trégua:
é preciso ir ao vento, desfraldar bandeiras
aos gatos dos telhados, aos uivos lunares,
a deus tão dissoluto quanto os mortos.
É preciso, entre primaveras
que fincam raízes no arame enferrujado,
estender as roupas no varal.

CONDOMÍNIOS FECHADOS

Os condomínios fechados erradicam
as tabacarias diante das janelas
e os horizontes de becos à beira-mar.
Os prédios repetem-se, as sombras
parecem-se: são todas de homens.
Os gestos imitam-se e não há
mistério no mofo que se alastra
pelas paredes – provavelmente
foi um cano que se rompeu
e o zelador está sempre pronto.
O tempo não sangra. O instante
não alcança a crise: cristaliza-se,
multiplica a luz, os dias –
sou o de ontem, desde sempre.
Diante de qual parede esperar
a porta que não irá se abrir?
Se ao menos isso fosse claro.
Onde a criança que come chocolates?
Estão todos mortos, alheios, opacos.
São todos o universo a cair
sobre mim com um terror de fábula
infantil: leio sobre nebulosas,
sobre o brilho infindo dos quasares
e que jamais existiu um tempo
antes do tempo e então olho para o corpo
que ao lado dorme e penso
é mentira que exista amplidão maior
do que a do dia poeirento.
A noite continua. Queria
o meu coração fora de mim
apenas para dizer: é o luar,
é o rio em que os homens
lançam os seus excrementos
e os seus mortos mais queridos.
Mas não, o meu coração é ainda
menos do que um pássaro enjaulado;
é uma névoa apenas visível
em noites de puro espanto.
Abro a janela. Procuro o Esteves
para dizer Adeus, mas não, tudo
o que há diante da janela é o gato
vadio que dorme junto aos cactos.

 

INVERNO

Por aqui, em dias de inverno,
o frio é tão escasso que até se parece
uma destas mínimas canções de amor
que habitam o vento e desaparecem
quando ainda são transparência.

Após muito, ontem choveu.
Eu me preparava para a cama
e escutei o sussurro de passos
sobre o gramado do jardim.

Talvez, afinal, tenha sido mais
névoa do que garoa – a relva
amanheceu queimada de orvalho
e a tarde é de uma fria umidade
que se condensa no céu macio
de nuvens tão cinzas e baixas.

Os carros, regressando ao estacionamento,
lançam uma luz que atravessa a folhagem
das árvores compradas em lojas de departamento –
até então, pareciam-me palmeiras domesticadas
mas olhe, disse Ana, erguendo
uma pétala branca desfeita entre os seus dedos.