No entanto...

No entanto, as coisas não são assim tão simples. As promessas velozes varrem o planeta, sentimentos etéreos galopam na rede, beijos e abraços inconclusos incluídos, uma grande envergadura de sorrisos e excertos de poemas levam a nossa icárica curiosidade até bem perto do céu, destruição garantida, a saudade prejudica seriamente a saúde, tempus fugit, também para ti, meu caro, também para ti, o meu sofrimento é verde, verde vivo, e o teu tem as cores castigadas pelo incomparável revés, a vida é tudo isto (e tudo aquilo), temos demasiados amigos e um coração do tamanho de um punho fechado pela suspeita, cerca de 750 centímetros cúbicos de esmero, realce e burocracia; temos Copacabana e Martigny, não te esqueças, e fome de Vietname e os pulmões enchem-se de ar quente só para podermos sobrevoar a Capadócia das sextas-feiras, enquanto a vida decorre em classe turística, entre cafés, semáforos, serviços e cerimónias do chá e valsas do adeus e o auto-retrato de Tintoretto ao espelho quase todos os dias, depois de Marte e Vénus terem sido surpreendidos pela inominável ressaca do além, e o dia apresentar sintomas de inanição e a noite continuar à custa de muito engenho que o amor já não busca autonomamente, até porque que as esperanças não no-las deram, e Kafka é que tinha razão, e o Ronaldo também, uma vez que os anjos e os árbitros desapareceram por completo da face da Terra, ainda que se avistem alguns, de quando em vez, no calor ocasional do facebook e nos sonhos soterrados dos isentos.

Personagens secundárias

Escreves o livro da tua vida com a boca colada a um manancial. O teu coração está em Madrid, algures entre a promiscuidade da selva e a tristeza do arcanjo. Fazes um esforço insano para pareceres invariável, grato, trivial, nem que seja por um instante. Aprendeste a falar mais alto. A dobrar as consoantes, a abrir as vogais. Aprendeste a conviver com a elipse, a olhar com profundidade para os vazios narrativos que arrastam o fedor e a fidelidade pelas paredes do teu pequeno quarto alugado e até o teu desespero se tornou elegante e sociável, depois de teres provado a sua ineficácia total. Sempre que o narrador te obriga a caminhar pelas ruas movimentadas da cidade, sem outro propósito que não o da pura locomoção, tu fazes ligeiras digressões interiores para escapares à prepotência mecânica da fábula e extrais dessa minúscula infracção uma radiosa e inevitável felicidade. O enredo dobra-se e desdobra-se vezes sem 
conta numa sinuosa procissão de mandatos, ordens, desordens e recados, que cumpres escrupulosamente até não poderes mais. Quando anoitece e julgas que sais do trabalho, mandam-te finalmente jantar e depois regressar ao quarto, assistir a um pouco de solidão no ecrã. Mas assim que finges os protocolos do sono e crias a elipse terminal, diriges-te para a penumbra redentora de um bar, numa hora tóxica em que o diálogo reina sobre a descrição pouco apaziguada de um sofá, e ficas sentado junto de um par de pernas em chamas, com a garganta desfeita de tanto calares, um copo de uísque na mão onde o reflexo do teu rosto perdura trémulo e oxidado.
É quando te escorrem as lágrimas.

As aparências

Javier Vela (1981)
De Imaginario, 2009
Tradução: André Domingues 

Beleza, flor de plástico, aroma do real, 
sempre de mão em mão como uma prostituta 
de luxo, persigo-te por detrás de cada imagem, 
de cada forma pura, sem nunca te alcançar. 

Nascemos para o êxtase e para o canto. 

Somos uma excrescência desnecessária 
à volta do nosso sexo: padecemos 
a tirania dos escaparates. 

Pálidos manequins, ficções adoráveis, 
que importa que sejais certos, se sois belos; 
jamais tereis a alma do modelo, 
mas tendes o seu corpo melhorado. 

A tua aparição exalta-me e consola-me. 

Por ti, ninfa intocada, ideia feita de carne, 
úlceras de ouro líquido nos meus olhos 
ouvi supurar. 

Sei que sob a alquimia das tuas máscaras 
se torna possível um mundo sem contornos. 
Levanta as saias, putinha de mil nomes. 
Levanta as saias para que eu o veja. 

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Notas de um suicida

Vivo no vigésimo nono andar da consciência. Sou 100% século XXI. O medo é minha dama  holográfica de companhia. Nada, nem a mais mínima acção, tem um enredo linear. As artérias do conhecimento estão entupidas. A menina que passeia o seu cãozinho pelo parque manipula conteúdo emocional de alta voltagem. Que posso eu? O meu nome não é sereno. Chamai-me o que vos aprouver. O final gratificante do dia dirige-se a grande velocidade contra mim. O pior foi quando comecei a visualizar o tempo e a desmontar os dogmas da extinção. O coração era feito de lírica. A noite passada sonhei com Carolee Schneemann. Tenho feito da minha vida uma performance recorrente. Um rito minimalista. Uma soirée dominical. O vento sopra-me instruções criminais. Não me deixo apiedar pela morte da presença. Mas a espontaneidade fugiu. É preciso pensar: abrir a janela. É preciso pensar: debruçar da janela. É preciso pensar: atirar-me e cair.

O calor

O calor cala a cena habitual, 
inunda de nudez e estátuas 
as nossas novas instalações. 
Despromove o equilíbrio fantasioso do corpo. 
Instaura uma regra movida a indisciplina, 
uma vida de estilo barroco minimal. 
 
Há um anjo na personalidade utópica da ventoinha. 
As horas adoecem por aí. Algumas, mais exageradas, 
chegam mesmo a morrer, 
sem darmos por isso. 
Os animais não dormem: derramam 
lentamente o seu instinto 
amador. 
As faces abandonam o seu âmbito 
mais ou menos prestável 
e pedem pão e liberdade 
às portas das grandes desfigurações.