Visita à Biblioteca de Adriano

 “é terrivelmente difícil amar estátuas em ruínas”

Tatiana Faia 

à Tatiana

 

É difícil compreender o número de catástrofes
Que acumulamos ao longo da vida,
A persistente ruína de carne em que nos tornamos,
Após incontáveis apocalipses pessoais,
Terminam amores tão sólidos como as colunas
De um templo, que um agricultor usou
Para proteger a vinha do ar salgado,
A fé salta de ilusão em ilusão,
Dependendo da crença em moda ou medo,
Com sorte, o nome de uma rua permanece,
Imutável como um nome próprio,
Irreconhecível para quem a baptizou,
Levamos ainda o colapso de todas as civilizações
E isso sente-se na saudade pelo que nunca
Vivemos na carne e sentimos apenas no sangue
O silêncio que o tempo impôs às pedras,
Dura mais um momento que a vontade de eternidade,
A visita numa tarde quente à biblioteca em ruínas,
Que distante revisitarás, no livro da mesma poeta. 

04.12.2022

 

Turku

Haikus Malteses

Xlendi Bay, Malta

 

Na figueira maltesa

um pisco canta

o fim do verão.

 

Rapidamente se esquece

o que milénios de pó

escondem.

 

À beira do mar

todos os amores

a espuma das ondas.

 

A caminho de África

três patos descansam

ao lado dos turistas.

 

Cabem nas pupilas

as falésias gigantes

o mar possível.

 

Longe destes olhos

que fechados

tocam o infinito.

 

O mar nada revela

ondula um momento –

eternidade para a carne.

 

Prende-se o mar

com as mesmas amarras

que o amor.

 

Onda contra a onda

que regressa –

uma mosca observa.

 

Num copo de Chardonnay

põe-se

o Sol.

 

O olhar de Calypso

na praia –

o verão parte.

 

Sobre a merda das pombas

pousa graciosamente

uma borboleta.

 

Vinda do mar

a tempestade –

aves silenciosas.

 

Sobre o fresco cagalhão

ejacular –

manhã de Novembro.

 

No caranguejo morto

a sombra

de um pequeno peixe.

 

Caranguejo morto

ao sol

perde o verde.

 

Pequeno camarão transparente

lutando pela vida

como um elefante.

 

As ondas brilham

ao sol –

mais um barco passou.

 

São alimento

a morte e o sol –

consumindo vida a vida.

 

Puxa a linha

o pescador –

outros regressam.

 

O sol e o mar

nas salinas abandonadas

continuam o trabalho.

 

Por trás

do farol apagado

põe-se o Sol

 

Malta, Novembro 2022

Borralho

Borralho

 

Era fácil, engolia-se a escuridão e o vazio dos dias,

Olhavam-se as paredes com força suficiente para lhes destilar

Da humidade outros significados, acreditava-se ainda

Que era possível sair-se do tempo enquanto se batia um verso,

Tornava-se a realidade palpável, mesmo que apenas no passado,

Traziam-se os dias quentes de volta, o cheiro a cona aos dedos,

Enquanto na cama ressonava o cansaço dos lábios nos outros,

A poesia fazia sentido, os dedos deixavam-se levar por um tremor

Embalado por uma harmonia quase divina, era fácil,

Bastava um copo cheio da fase que fosse, no fim o resultado

O mesmo, mas ao menos um alívio arrancado da melancolia

Eterna do cair de uma folha, na sua leveza a felicidade oxidada,

Agora isto, não esperar nada das palavras, atirar versos

De barro à parede a ver se a luz se acende e a noite longa

Como um inverno sem vinho, morre-se tantas vezes

E todas as palavras deste mundo, não tocam sequer a eternidade.

Borralho II

 

Bastava um canto vazio num bairro plantado num luar de Agosto,

A ideia do amadurecer das romãs antes do Inverno, o meu esperma

Que te humedecia as cuecas numa tarde ainda quente de chuva,

Abrigados do desencanto que o futuro sempre reserva,

O amor era pouco mais que a eternidade, um infinito em forma de açúcar

Derramado numa mesa de café da província, esquecer tudo

Por uma vontade maior que qualquer fome, bastava um corpo

No outro, mas o inverno consegue ser tão longo e frio,

E os anos oxidam até o brilho das estrelas, a verdade, quando o caudal

Do rio agoniza na canícula, mostra-se como os sacos com ossinhos

Dos cães e gatos que foram lançados da ponte romana,

Então basta uma palavra para a bílis se derramar na remela fresca,

Fode-se numa pressa de carne que descongela no saco da mercearia,

Só porque em casa não há um canto que não tresande ao que trazia

O luar às noites de geada e sabor ao vinho já vinagre,

Quantas vezes se repete a mesma história antes do cansaço

Nos impor uma responsabilidade do tamanho da morte.

Borralho 3

 

Cabernet Franc e o silêncio defunto de todas as amantes,

Hoje umas velhas, cada uma um cabelo branco, uma ruga,

Um evitar de espelho, um filho que ancorou a resignação,

Outro que afundou o que restava da juventude,

Eu acho que vivo para ser memória, um arrependimento

Que hoje nunca, um terrorista sem-abrigo confortável,

Com um trabalho essencial que nem pandemias param,

O fumo que curou o fumeiro hoje apenas nas paredes

Do que foi a própria pocilga da porca que comia

Os gatinhos recém-nascidos, oferecidos numa crueldade

Inocente, a do pior tipo que nem deus julga, engolidos

Entre merda e batatas que tinham ficado esquecidas,

Cacarejam as galinhas enquanto Rimbaud eleva a pena

De um poema no reflexo das Ardenas num buraco negro,

Eternamente, como o arrependimento, o bochecho

Oxigenado num exagero pouco definido, a eternidade,

O azul que se visita às escondidas, num pequeno-almoço

De ostras e o Hemingway a explicar ao lado, também,

O sabor de uma pêra e a morte que água de couves cozidas

Antes de um corno se enfiar na continuidade da carne,

Tudo isto é estrangeiro como os órgãos que nos levam

Ao momento que nos permite a leitura de qualquer

Movimento peristáltico, o nariz sangra contra o papel-higiénico,

O Cabernet Franc vai-se engolindo enquanto não se engasga

O tempo na sorte ou a falta dela, certo é o outono.

Borralho 4

 

O mais importante nesta vida é a possibilidade do silêncio,

O silêncio consciente, ouvir a rugosidade da parede nos olhos,

Não o silêncio de acordar porque alguém abriu uma porta,

Ou a carta caiu no chão, ou deixaram de nos escrever

E compensam as ausências com flores que se tornam

Plásticas e o sol arranca-lhes a cor para relembrar o esquecimento,

Isto, estar aqui às duas e meia da manhã, nada mais artificial,

No entanto, amanhecem as madrugadas na procura

Dos meus dedos por pepitas de ouro ou merda,

Uma perdição no plano cartesiano, o infinito mais próximo

Dos anos noventa do que amanhã, fazer crer que o medo

Dos cães nos dias de festa era dos foguetes e não do ridículo

Do nosso mau gosto civilizado, será o universo simétrico,

Terá um centro, uma ressaca de língua pintada,

A sombra de uma figueira onde desejar uma morte perfeita,

O mais importante nesta vida é este silêncio de dedos

Que criam nada, um caos lógico, essencial, como a ausência

Absoluta num momento do tamanho da eternidade.

Borralho V

 

No quarto ao lado, das duas uma, ou alguém se masturba,

Ao mesmo ritmo do toque das teclas, ou alguém me odeia e dorme,

A porta não se tranca porque o lençol seca, salpicado com esperma

Incontáveis vezes, só não se trocou o sofá por desconhecimento

Da verdadeira variedade genética entranhada no sofrimento

Das fibras, maltratadas por copos de vinho trémulos e pepitas

De chocolate, espalhadas como merda, iluminadas apenas

Por um filme de Pasolini em fevereiro, e um gajo, passada

Quase uma década, continua a esfarrapar-se todo,

Por caralhos que se esquecem da cor dos olhos logo que

Se deixam embalar pela doçura inelutável da eternidade,

Aquele gajo tentou, arfando, aquele último aperto para nada,

Este verso que se desembrulha e gostaria de ser sublime

E a vida impossível dos que a organização do caos

Tornou num destino trágico, apenas alguém se move

Na cama do quarto ao lado, a saturação dos dedos,

Inconsistente com o grau de desespero de quem espera

Um verdadeiro apocalipse que o torne o anjo anunciado

Há tantos anos atrás, quando ainda havia uma luz no cabelo

Além da prata da inevitabilidade, mas ao menos isso…

Borralho VI

 

Só podemos realmente digerir o que mamamos

Há uns 6000 mil anos para cá, parece a história da minha vida,

Incontáveis caganeiras, por uma fome sem enzimas,

Um turno da noite numa folga, apanhar um táxi no hospital

Partir o telemóvel contra um poste numa distração focada,

Cona, que mais, ir ao encontro de mais um doce cataclismo,

O culpado, sempre o mesmo, este estômago alojado

Entre a gaita e os tomates, pai da imaginação insone

Das manhãs que puxam insones jactos contrariados contra a sanita,

Deixar na cama, imensos sacos murchos sem leite,

Para ir mamar na persistente firmeza de uma nova ilusão,

Deixar no taxista a certeza de uma taxa por um primitivo

Prazer roubado a sinais de fogo antes de aprender

O que estava realmente escrito nas rugosidades do anel,

Já frio, antes do coalhar do silêncio nas fibras do que isto move.

10/2022

Turku

Bagos de Bastardo


Nas folhas da videira

o reflexo da canícula –

silêncio no poço.

Com esta mão partida

ao que soarão os grilos

dos meus versos?


À volta da ermida

os toalhetes

dos encontros furtivos.

Quase impercetivelmente

a leve brisa e o tempo

arredondam as fragas de granito.

Arredondadas pelo tempo

e a leve brisa

as fragas de granito.

Há mais vento

quando passo

por choupos.

Quando passo

por choupos

há mais vento.

Gosto de me sentar

no silêncio do granito

ao vento.

Ah o som do vento

no granito

esculpido por milénios.

Como um beijo

de despedida

último sol de Agosto.

Nas silvas

do dólmen

a pena dum corvo.

Que rápido secaram

as amoras

dos caminhos.

Em cima da fraga

espero a tempestade –

vento de Setembro.

Chegará a tempestade

que o vento de Setembro

anuncia?

Semeadas de vazio

as casas onde

a ruína cresce.

Na muda presença

é onde habita

o maior silêncio.

Branco ainda

este sol

de Setembro.

Nas folhas da couve

brilham

refrescantes pérolas.

Bastou uma noite

para terminar o desassossego –

palha molhada.

Um banquete para pegas

e javalis

a vinha do meu avô.

Setembro –

do mosto

apenas uma memória.

Logo abraçam

as silvas

a fertilidade abandonada.

Onde crescem agora silvas

batiam-se

por um marco tombado.

Vinhas perdidas

lapides tombadas

eis o legado.

No meio do caminho

para a vinha perdida

cresce a videira brava.

Uvas da vinha velha

amoras dos caminhos

pequeno-almoço do poeta.

Na sua breve vida

o que teme

a borboleta?

À beira do rio

sentado

só eu passo.

Pequenas bolhas

o rasto do caminho

da lontra.

Açafrão do prado

no caminho –

aproxima-se chuva.

Nos bagos do bastardo

a doçura

das tuas mamas.

Setembro

regressam as moscas

do inferno.

Tarde de Setembro –

do que se despedem

os ramos da oliveira?

Agosto-Setembro 2022

Torre de Dona Chama-Cidões-Sabrosa


Batido pelo Sorriso do Passado

 

O passado olhou para mim e sorriu, não me reconheceu,

Durante aqueles segundos deixei de saber como andar,

Como se tivesse sido atingido na cara por uma fralda

Embebida em éter, fingi então receber uma mensagem,

Enfiei a mão ao bolso e lá consegui reencontrar o ritmo

E acelerar o passo em direção a mais um cabelo branco,

Lembro bem aquela noite no barco, aquele cheiro a madeira

Apodrecida pelo álcool, podia hoje a vida ser outra,

Eu outro, o amor de outra loira, podia nunca ter dado

O meu coração a comer a hienas obesas, perder tempo,

Podia, ela tímida, pediu à amiga que viesse falar comigo,

Eu quase jovem, nunca o fui, agora morro há quase dois anos,

Apelido famoso nos canais de desporto, eu que na altura

Só via beats, tanto amor à morte, a madeira do barco,

O mesmo barco, anos mais tarde, a trazer-me aqui,

O mesmo cheiro no quarto quando sinto o meu hálito,

Hoje o passado olhou para mim e não me reconheceu,

Quem seria aquele velho, ela casada com um americano,

Também envelhecerá, a amiga com o filho de um marroquino

Que afinal era um príncipe das arabias com temperamento,

Enquanto caminho até casa, depois de reaprender a andar,

Com uma Le Ragnaie na mochila de outra vida, penso,

Que apesar do vazio é melhor estar aqui, chateado com

O céu nublado, confiante que cada vez terei menos certezas

E que existe uma certa liberdade em estar batido, não passar do chão,

Ter o passado a olhar para mim sem me reconhecer.

 

26.07.2022

 

Turku