Monte Carlo

Hoje sinto um desacerto
De há uns anos
Que ainda não desapareceu

Como o outro
Parei o carro na serra
Para nas luzes ao longe
Ver-me a mim
E dizer aquele sou eu
Mas não correu bem assim

Eu não perdi a memória
Não perdi de vista a casa
Não saí de nada à pressa
Fechei a água e o gás
Não me esqueci do caminho
Não há nada que me apresse
Nem há nada que me impeça
Há só esta sensação
De que por qualquer razão
Vou ter de voltar atrás.

Frutos estranhos

Filho de um tempo esquinado
Fruto esquisito da árvore
Em que me vi pendurado
A arder do sul e da sarça
Não tenho bem destrinçado
Se é mal do cú ou das calças
Mas esta vida não serve

E se este não apertado
Se me fixou na garganta
Como uma ideia não deve
Disfarçar não adianta
A queda está para breve
E volta tudo ao princípio.


De Sebastião Belfort Cerqueira, Monda, Edições sempre-em-pé, 2019



Teste

Tu estavas a ver o filme
E eu estava a fazer contas

Tu estavas a ver o filme
Como eu acho que vês filmes
E eu sempre sem posição
Com um ábaco no colo
E os cálculos todos riscados

Tu a olhar prò ecrã
E eu a olhar-te para a mão
Já a faltarem-me dedos
E a querer os teus emprestados
E a tentar parecer calmo
E copiar pelo do lado
Para que não percebesses.

Tu estavas a ver o filme
E eu perdido em matemáticas
Com esperança de que no escuro
Não reparasses em mim

Enquanto olhavas para o ecrã
E aprendia a tua cara
Como se fosse na escola
E houvesse um teste no fim.



De Sebastião Belfort Cerqueira, Monda, Edições sempre-em-pé, 2019