Marinheiro com Residência fixa

Com Navalhas e Navios – Poesia Reunida 1972- 2012-

de Urbano Bettencourt (2019)

Prefácio: Carlos Bessa; Edição Companhia das ilhas

     A primeira vez que ouvi o nome de Urbano Bettencourt foi no ano de 2003, em Ponta Delgada. Tinha, como se pode facilmente confirmar, 20 anos. Lembro-me ainda hoje desse dia, ou melhor, da conversa em que o nome apareceu. Um dos meus amigos, um rapaz que na altura estudava Filosofia na Universidade dos Açores, e que gostava de livros como eu, referiu o nome do poeta contemporâneo açoriano numa conversa sobre poesia, onde andaria, provavelmente, autores que andávamos a ler e, inevitavelmente, Antero. Digo inevitavelmente porque, bem ou mal, a memória do grande poeta sempre esteve bem presente nas ilhas, e no espírito de quem lê poesia nas ilhas, o que era o nosso caso, rapazes de letras e na casa dos vinte.

     O mesmo Antero aparece como título de um livro de Urbano Bettencourt, já em 2006, e que, por algum motivo que ainda não sei bem, me fez pensar no livro de Armando de Silva Carvalho – Anthero, Areia & água, de 2010. Desse livro Antero, de 2006, o poeta só nos deixou, nesta antologia, um único poema, o que criou em mim, desde logo, uma curiosidade em ler a totalidade do livro. Será mesmo um livro? Ou será apenas um poema solto escrito em 2006?  Eu poderia ter perguntado diretamente ao poeta, mas preferi não o fazer, pois o leitor é que tem de ir à procura do que lhe falta, algo que terei de fazer quando estiver em S. Miguel, porque bem sabemos, e quem não sabe digo-o já, ter acesso a livros das ilhas, estando no continente, é um tormento, sobretudo se os livros já estiverem fora do mercado. (Esse tema dava pano para mangas, mas deixemos para outro dia).

     Embora passasse a conhecer, em 2003, o nome de um dos maiores poetas açorianos contemporâneos – Urbano Bettencourt – a leitura da sua obra foi sendo feita de forma dispersa e muito tardiamente, um ou outro poema apanhado por acaso em revistas ou antologias de poesia açoriana. E isso deveu-se por minha culpa e não pelo poeta que foi publicando com alguma regularidade livro atrás de livro. Ao contrário do que a maioria das pessoas possa pensar, sou um leitor muito lento, e quero continuar a ser um leitor lento. Refiro-me, não à leitura do livro propriamente dito, mas, sim, à sua absorção. Um poema pode ser lido em dez minutos, mas a sua compreensão pode demorar meses e até, em determinados casos, anos. Esta é a leitura que me interessa, e a que deveria interessar a todos. Acredito que há poemas que exigem uma vida inteira para serem compreendidos e outros em que uma vida não chega, os que ficarão sempre por ser compreendidos.

     Digo tudo isto para se compreender duas coisas: primeiro) a importância desta antologia para minha geração e para as gerações mais novas, passamos a ter uma visão global da obra de um dos maiores poetas açorianos vivos; e segundo) para dizer que precisei de algum tempo, alguns meses, para entrar na poesia de Urbano Bettencourt. E não sei até que ponto terei entrado inteiramente nela, o que deve ser entendido como um elogio ao poeta, pois exige do leitor tempo.  Ora, quando comecei a ler o livro, não consegui parar, pela simples razão de que me surpreendeu imenso o livro. Aqui é preciso fazer um parenteses, para dizer que Urbano Bettencourt, já com 70 anos, faz parte da geração dos poetas que, realmente, me interessam, ou seja, os poetas que começaram a publicar nos anos 70, ou seja, João Miguel Fernandes Jorge, Joaquim Manuel Magalhães, Nuno Júdice, etc. Mas também quer dizer, Santos Barros, Marcolino Candeias, etc . Ou seja, estamos perante um autor que vem de uma geração que me fascina, uma geração em que a narrativa e a contenção metafórica estão de alguma forma ligadas. Posto isto, depois desta observação, há que entrar no universo de Urbano Bettencourt.

     O que me chamou à atenção, no imediato, foi a ideia de estarmos perante um ponto fixo que deambula por três universos espaciais/ geográficos diferentes. Ou seja, o ponto fixo será os Açores e a deambulação poética de Urbano Bettencourt anda por: a) Portugal continental b) Madeira c) Canárias e Cabo Verde. Se quisermos podemos resumir em Macaronésia e Portugal continental. O que quero dizer é que  estamos perante uma poesia cheia de referências culturais de diversos pontos do Atlântico, uma poesia tipicamente pós-moderna, rica em relações intertextuais com outros poetas e obras. Dito isto, torna-se claro que a minha compreensão da poesia de Urbano Bettencourt fica aquém do que é exigido pela sua poesia. O que parece ser uma desvantagem é antes uma enorme vantagem, pois é um livro que me obriga a ir atrás de outras coisas, um livro que estimula a minha curiosidade, um livro sempre em expansão todas as vezes que o leio. Ao mesmo tempo, é um livro sobre o universo familiar, a ilha, as coisas simples da vida, o amor, a morte, a saudade, a que se associa algum humor e algum sarcasmo (ver por exemplo o poema “Exercício de Socorro a náufragos (tranquilos ou não) depois de falhar a respiração boca a boca)”). Este poema talvez seja o meu preferido.

     Esse ponto fixo que se move num espaço geográfico extensíssimo, e, diga-se muito claramente, do qual há um enorme desconhecimento no Portugal Continental, tem a sua melhor expressão num dos seus mais belos títulos: Marinheiro com residência fixa, de 1980.  Nesse título, creio, podemos sintetizar toda a poesia de Urbano Bettencourt. Carlos Bessa diz exatamente o mesmo no prefácio de Com Navalhas e Navios: “Marinheiro com residência fixa, que pode ser entendido como a síntese de uma arte poética. É o mar português tão presente na nossa lírica e na nossa épica, um mar agreste e um mar de heróis, mas também território de gente anónima, de diferentes tipos de anti-heróis que deram a vida em nome da pátria ou que dela fugiram à procura de um eldorado.” Por mais que se navegue entre ilhas e arquipélagos distintos, a residência fixa, as raízes de Urbano, está nos Açores, o que faz desta poesia uma poesia rica e cosmopolita, uma poesia insular cosmopolita.

      À primeira vista, parece ser um paradoxo este entre Insular e Cosmopolitismo, mas não o é. Ou seja, a ideia de que a poesia açoriana é um universo provinciano fechado sobre si é a ideia mais errada que se possa ter dela; ela, e sobretudo uma poesia como a de Urbano Bettencourt, é, sim, uma poesia insular com traços de cosmopolitismo de toda a ordem, que vai da poesia das Canárias passando pela poesia de Cabo Verde, até às nacionais e internacionais (veja-se por exemplo Alguns poemas de Wang Yong). É preciso dizer isto claramente, porque eu escrevo do Porto e a maioria das pessoas que vão ler estas notas estão no Portugal Continental, num espaço geográfico que reduz tudo o que pertence à natureza das ilhas ao meramente insular e provinciano. A condição de ser diferente não pode ser reduzida a uma categoria inferior, ela é, sim, o seu contrário, uma poesia rica onde o local encontra-se com o nacional e o internacional.

     Ora, tudo isto para dizer que não percebo a dita e “majestosa crítica” (gosto de ser irónico) deste país. Esta antologia saiu em Setembro de 2019 e, pelo que sei, tem passado despercebida, tem sido até ignorada. É mais fácil escrever umas notas sobre um miúdo da minha geração do que tentar entender 40 anos de poesia de um autor que vive numa ilha no meio do Atlântico. É exatamente para dar atenção a esta antologia que resolvi escrever estas notas, para chamar a atenção de que esta antologia exige mais atenção da parte do leitor, dos bons leitores.

      Com Navalhas e Navios, título retirado de um dos seus poemas, pode também ele resumir toda a obra de Urbano: Navalhas, instrumento de corte capaz de ser tão útil à sobrevivência como ferir, magoar, matar; Navios, meio primordial para a viagem marítima, é também o meio para o sonho, a evasão de si mesmo e o contacto com os outros. Temos assim esse dualismo entre dor e sonho, entre realidade difícil e a possibilidade de imaginação, entre ficar e partir. Temos assim, duas palavras essenciais aos marinheiros: navalhas, a que permite escamar o peixe e cortar as linhas de pesca; e o Navio, o barco que lhe permite recolher o seu sustento e, ao mesmo tempo, sair da sua residência fixa, para mais tarde regressar a ela. Em alguns poemas a marca da dor está bem presente, talvez relacionada com a experiência do poeta com a guerra colonial, na Guiné (ver os poemas Remuniciar o tempo, atente-se à palavra Remuniciar, vinda de municiar, munição) e com a do exílio das ilhas, dos anos em que viveu em Lisboa longe dos seus Açores.

     Num conjunto de poemas de título “Alguns nomes de circunst/ânsia”, são feitas homenagens a Domingos Rebelo, a Virgina Woolf, a Santos Barros, Ivone Chinita e Garcia Lorca. A ideia já referida de viagem marítima é retomada com a ideia de “circum-navegação”, através do uso palavra “circum-negação (uma palavra que desdobra o sentido), uma das primeiras palavras que aparece nos primeiros poemas do livro. Aqui esta circunstância, circum-navegação, está associada à palavra ânsia, o que pode apontar para uma ânsia de conhecimento do mundo (uma curiosidade sem fim) e ao mesmo tempo uma ansiedade que despoleta a criação literária.

     Uma das críticas mais comuns ao livro, é a de que o poeta teria cortado demais, teria selecionado demais para esta antologia. Pode ser verdade. Desta antologia faltam os poemas em prosa e as pequenas prosas, muitas delas com um elevado sentido de humor e de ironia. Neste ponto, não posso deixar de dizer que é uma das facetas que mais me atrai na poesia de Urbano Bettencourt, o que a coloca próximo de outro autor seu amigo e grande poeta –  Santos Barros. E convém referir que Urbano Bettencourt trabalhou sobre a obra de José Martins Garcia, cuja obra é de uma fina ironia e humor fabuloso. Sem querer desvalorizar outros poetas açorianos, estes são, para mim, os três grandes, os que me fascinam e que recomendo vivamente. Contudo, como não sou monóculo, nem ciclope, direi que outros poetas merecem a devida atenção para as suas obras, como por exemplo Emanuel Jorge Botelho, só para citar um exemplo.  

     Com Navalhas e Navios merece mais leituras, mais descobertas. Exige que se leia a antologia de ponta a ponta e, se possível, se recorra às primeiras edições dos seus livros, para melhor entendermos a obra de Urbano Bettencourt. Só assim, o objeto pode ganhar maior amplitude. Não foi minha intensão esgotar o livro nestas notas, mas sim despertar algum interesse, para o lerem com maior atenção. Em nota final de rodapé, não posso deixar de elogiar a capa, pela beleza e simplicidade, porque estou cansado de ver Bruegel e pintura inglesa mutilada e a encher supermercados, como se a pintura só servisse para atrair a compra de livros. Recomendo vivamente a leitura desta antologia. E faço votos para que os seus ensaios, com os quais tenho muito que aprender, e as suas pequenas prosas saem muito em breve.

Ps- Quando terminei estas notas, soube, pelo facebook, que o Urbano Bettencourt ganhou um prémio de reconhecimento pela “Letras Lavadas”; assim, envio-lhe deste lado, os meus parabéns.

notas - Porto, 21.04.20

    

O PAÍS DAS MIL ERVILHAS e outros poemas

O PAÍS DAS MIL ERVILHAS

 

Como conseguirão chegar a Krebber

se ainda não passaram pela asa de Klee?

 

Como conseguirão chegar a Guyton

se ainda não saíram do negro de Braque?

 

Como conseguirão chegar ao século XXI

se ainda não chegaram ao século XX?

 

Como conseguirão chegar a Mei-Mei

se ainda não esqueceram Mallarmé?

 

O diabo é estarmos rodeados por

Mallermazinhos por todos os lados!

Disse e muito bem Murillo Mendes!

 

AS CATEGORIAS

 

Existem três categorias de poetas

os que matam por uma carreira

os que trabalham por uma carreira

os que não procuram uma carreira

 

Existem três categorias de poetas

os que vão a todas as leituras

os que vão a algumas leituras

os que detestam leituras

 

Existem três categorias de poetas

os com enorme ego

os com grande ego

os de pequeno ego

 

Existem três categorias de poetas

os maus os assim assim e os bons

Existem três categorias de poetas

e eu espero não pertencer a nenhuma.

AS COLINAS VERDES DA TERRA

“It used to drive me nuts when people immediately

connected my work to cartooning, and I had a whole

speech about how modernism is filled with painters

who use black outline, blah, blah, blah.”

                                          Carroll Dunham

Já não se conhecem lutadores nus

sobre o prazer limpo de competir

Somos dois homens cuja cara espelha

o oculto ser que o mundo perdeu

Sob esses finos cabelos e barbas espessas

há todo um corpo que deseja outro

 Somos dois homens sem seios femininos

e o centro da nossa rebeldia jaz no centro

Destes corpos a pele pálida é a morte

entrando pelas unhas a meio do dia

 Procura procura a tela fixada em título

e procura vestígios da colina vazia

E nós teremos a suspeita ou certeza

de estarmos a ver o exato mundo

Somos dois homens de cara branca

e de roliços corpos em esforço

 Volumétricos delitos de virilidade

cujos genitais são duras bagas

lançadas por entediantes deuses

            TRANSPARÊNCIA

Da alta coluna o palhaço no meio

da praça do comércio gritou a viva voz:

 

Dizei-me quem são os vossos amigos

e dir-vos-ei em qual editora publicam!

Infringida a primeira regra do espaço

social só lhe restava a prisão. Por isso

apareceu o “crítico” de pena na mão e no

telegrama sentenciou “a terrível pena”:

 O cardume não tem qualidade não me

veio beijar a horas a mão o pé e o cu.

De x-ato na mão rompia calmamente

película a película sozinho na sua cela

Tinha por único amigo o silêncio e duas

pequenas aranhas uma cega outra negra

dunham3.jpg

Carroll Dunham - pormenor

Dois Livros

I

Valha-nos a clorofila!

Rectificação da linha geral (2020)

     Queria começar por contar uma pequena história, ocorrida em 2016. Quando andava a mudar de casa, para a atual morada onde vivo, resolvi despachar uns quantos livros de poesia que só faziam volume na estante. Leituras que pouco ou nada acrescentaram ao que já tinha lido, livros que não precisava e que não me encheram a alma. Nessa limpeza foram, entre outros, dois livros de José Alberto Oliveira – Tentativa e erro (capa dura e relativamente caro naquela altura, pelo menos sempre assim achei) e Como se nada fosse (este comprado nos Açores, em férias).  Até que no ano passado, em 2019, De passagem ficou nos destaques principais da poesia, como um dos melhores livros do ano. Uma surpresa! E dei-me a sentir-me culpado por não ter lido o poeta com a devida atenção, pensei.

     E, assim, quando saiu Rectificação da Linha Geral (2020) (capa tão bonita! Como as da Língua Morta (x)) dei por mim a comprar o livro e a lê-lo, desta vez, com a máxima atenção possível. Era eu a dar outra “hipótese” a tão maltratado poeta, maltratado por mim, entenda-se. E foi, assim, que nestes últimos meses fui lendo o livro com calma. E venho, aqui, deixar as minhas impressões. Não mais do que meras impressões, porque não sou crítico literário nem recebo para isso. Mas antes de avançar, queria dizer algo que toda a gente já sabe, a redução da qualidade a pique da Assírio & Alvim, no que toca a apresentar novos autores. Quem ler isso dirá que não, não é verdade, pois a editora publicou “maravilhosos livros nos últimos anos”. Não, não é verdade. Há exceção do livro da Ana Luiza Amaral e do recém-publicado livro de Jorge de Sousa Braga (autores nascidos na década de 50), a editora tem sido uma desgraça. Terá com certeza, os seu problemas, mas é um facto, a progressiva “decadência” da editora. Pois não soube introduzir no seu catálogo jovens poetas mais interessantes. O que tem salvado a editora, parece-me, são as reedições (agora Rilke) e os tijolos, muito pouco práticos, das antologias de Cesariny, Sophia, Botto, por aí. Parenteses à parte, voltemos a Rectificação da linha geral. E aqui começa: Rectificação da linha Geral não é exceção na linha que cai a pique da Assírio & Alvim.

      O livro com 143 páginas poderia ser reduzido a 50 páginas; o mesmo é dizer que quase metade dos poemas merecem o caixote do lixo. O título demonstra uma presunção, uma que o interior vem a confirmar. Segundo o título/poeta é preciso “corrigir” a linha geral que corre na poesia. É nessa presunção e arrogância que o poeta se acha no dever de corrigir aquilo que está mal. A começar pela poesia dos mais jovens, parece-me. Pelo menos é esta a leitura que faço do título. E são várias as passagens, de uma ironia e sarcasmo, que apontam para este sentido.

    Com este livro ficamos a perceber o que anda a “malta de 68 anos” a fazer, é simples, reduz-se a três coisas: a) ver notícias (telejornais, notícias sobre tudo e mais alguma coisa); b) a preocupação da doença (convém fazer o levantamento das mazelas e doenças presentes, coisa que não fiz) e c) exercícios de “elegante retórica”, tão elegante que não me passa ao lado. E, assim, nesses três pontos fica arrumado o livro. Mas, não direi que o livro é mau. Não, não direi. Medíocre também não, o poeta não merece tanto. Merece, sim, três estrelas, “um travesseiro” e um pontapé no cu (esta frase vai servir para a minha candidatura a uma bolsa da Gulbenkian). [Aqui, abre-se outro parenteses, para dizer que quem está a dar o pontapé são estas notas e não eu; tenho educação para dar e vender!]. Pior só mesmo Manuel Alegre, mas todos já sabemos disso.

      Há no entanto, poemas que gostei muito, são disso exemplo os da página 42 e 43, sendo o da página 43 o poema “Novembro (Les três riches heures du duc de berry)”, um dos mais bonitos, senão o mais bonito. Um poema ecfrástico à pintura que vem na capa, onde vemos uma personagem masculina com um só olho (dado importante – monóculo- como parece ser este poeta) e que parece atirar aos porcos bolotas, ou pelo menos, a dirigir-se aos porcos. A imagem e o título, assim, como o conteúdo de muitos desses poemas, aponta exatamente para isso, para a arrogância do poeta que chegado aos 68 anos, se acha no dever de “Corrigir” toda uma “Linha Geral” da poesia, como se ela existisse como corrente uniforme. O poema da página 43 revela que este poeta terá mais sorte se se dedicar a poemas ecfrásticos feitos a partir de livros de horas. E há imensos por descobrir. Fica a sugestão.

     Dito tudo isto, fica claro que, numa próxima mudança de casa, uma que já se adivinha para breve, este será mais um livro a despachar, a servir de “dádiva envenenada” a um “fiel” amigo.  Mas, convenhamos, talvez sem a página 43, ou ainda sem as páginas de “Academia”, “Instruções” ou “Período Refractário”, dos poucos que realmente se salvam. Aqui coloca-se uma questão: quatro poemas salvam um livro? Acho que sim, mesmo este livro. Nem mesmo a crítica elogiosa no último expresso me fez mudar de ideias, porque para ler notícias sobre a banca e o sistema financeiro basta-me ligar a televisão. Pior do que o tédio em que todos vivemos, fechados em casa, só mesmo esta poesia de quotidiano; longe da fabulosa poesia de Edson Russell ou Frank O’Hara.

     Mas, esperemos que, neste final de ano, esteja entre os melhores livros do ano, assim saberemos, definitivamente, que tal se deve à marca da editora e não à pena do seu autor. Coisa que, convenhamos, já todos nós sabemos [Salve-se as exceções]. Que pode um poeta de 68 anos se não escrever o que quer? Espero que o faça, como eu também o faço, mas, se possível, com maior ironia e sarcasmo, com mais sal e menos telejornal.

II

“a brilhar e-/ternamente”

Matéria negra e outros poemas (2020)

       Comecei a ler Jorge de Sousa Braga pelos 20 anos, quando andava ainda pela Ribeira Grande, Açores. O Poeta Nu, edição de 1997, foi um dos livros mais reveladores que li naqueles anos lá na ilha. Ficou-me sempre como um dos mais importantes livros de poesia alguma vez lido, a par de Musa irregular de Fernando Assis Pacheco e O Virgem Negra de Cesariny. Três livros lidos antes dos 20 ou 22 anos em S. Miguel. Entre os três o humor, algo que sempre gostei na poesia, é inevitável, com diferenças é claro, mas todos brilhantes.

      O poeta Jorge de Sousa Braga não tem publicado, nos últimos anos, como sabemos, muitos livros de poesia da sua mão. Mas tem feito algumas antologias, como é o caso da antologia – Sombras brancas, da Língua Morta. Pelo que sei, o seu último livro de inéditos data de 2012 – O Novíssimo testamento, onde podemos encontrar logo à entrada do livro o melhor poema desse livro, o respetivo Testamento. Por isso, quando apareceu este livro nas livrarias, não só foi uma novidade para mim, como arranjei forma de o adquirir o mais rapidamente possível, mesmo no estado de quarentena. Para isso, usufruí dos serviços da livraria Flâneur, que tem feito um extraordinário trabalho de entrega de livros ao domicílio. Publicidades à parte, queria dizer isso para falar do meu entusiasmo sempre que sai um livro de Jorge de Sousa Braga. Ora, depois de uma primeira leitura não consigo deixar de dizer que o livro é de facto extraordinário e veio ao encontro das minhas expectativas. É de facto um belo livro, talvez ainda melhor que o seu anterior - O Novíssimo Testamento.

     O livro divide-se em duas partes: a matéria escura propriamente dita, e os outros poemas. Nesse livro é evidente o fascínio de Sousa Braga pelos bestiários, nele povoam diversos animais como gatos, o priolo, os ursos-d’água, peixes, galinhas, etc. Há também, sobretudo na segunda parte, e dando continuidade a aspetos de “O novíssimo testamento”, a reescrita de episódios bíblicos, é disso exemplo o bonito poema “A última ceia”, uma reescrita do episódio da última ceia de Cristo. Curioso é lê-lo nos dias de hoje, vejamos os primeiros versos: “Havia mais doze lugares à mesa e estavas sozinho/ Uns não puderam aparecer porque houve greve dos comboios”. Poema que parece pressagiar os tempos que correm.

     Mas voltemos à primeira parte do livro, a que dá origem ao livro – A matéria negra. Quando iniciamos a sua leitura damos conta que o ritmo do poema tem excessivas paragens, quero com isso dizer que o texto é feito quase todo com frases declarativas que se sucedem umas às outras, sem, contudo, perder o seu valor poético. Algo que, de certo modo, me fez pensar em William Carlos Williams quando comecei a ler e que, depois, foi ao encontro da nota no final do livro: “o primeiro poema (…) é uma espécie de colagem, a que a matéria escura tenta dar sustentação”. Este é o grande poema do livro com passagens como estas: “Prevê-se que no futuro aconteça uma colisão com a Andrómeda/ mas ninguém está preocupado com isso” ou “Eu sou um planeta errante que não está na órbita de qualquer/ estrela e flutua livremente no espaço sideral”.

     Em lato censo, podemos, creio, centrar o livro em dois temas essenciais: o voltar a olhar as estrelas (regressar ao universo, o mesmo é dizer, olhar para aquilo que nos é superior em dimensão) e o respeito urgente para com os animais e planeta, ou seja, olhar para o que nos rodeia ou nos é “inferior” em dimensão. Depreende-se, nesse livro, a necessidade de repensar o lugar do Homem no contexto do Universo. Ou seja, Jorge de Sousa Braga traz ao de cima a nossa insignificância enquanto espécie e diz-nos, no final de “A matéria escura”: “E estamos a caminho do desastre/ ou das estrelas”. Estes dois versos finais de “A matéria negra” podem espelhar as duas partes do livro: a primeira parte – as estrelas; a segunda parte: o caminho do desastre. Unificando tudo isto, está a matéria negra, que, segundo nos diz Sousa Braga “sem a matéria escura    viveríamos num universo sem enxames/ sem galáxias sem estrelas sem pessoas”.

     O ano não terminou, mas creio que, até agora, este é o melhor livro do ano, dos que li, obviamente. Este, sim, merece já estar em alguma lista. E, claro, merece uma segunda e terceira leitura, por mim e por outras pessoas com outros olhos e outra sensibilidade, pois é um livro que exige ampliação. Mais do que rico palavreado, este livro requer sensibilidade a quem o lê. Um livro a brilhar no escuro, ternamente e eternamente. Recomendo vivamente. 

notas Março, 2020

 

AREIAS e outros grãos

“ele fala/ para a areia/ que lhe enche a boca”

Johannes Bobrowski

AREIAS

 

*

Serpente de ferro negro

correndo na frieza do

mar

traz-me a perdida pele

do meu longínquo verbo

amar


  *

Alga de sulcos veste

a mais pequena dor

lava

a mão dormente da

rede do pescador

e

louva

 

*

Cerca de terra e trigo

desmente a pérola do

rio

para que se incha nas

nas margens o junco e

o

fio

 

*

Sargo peixe de prata

corre além da fragata

ata

a curva que te rebaixa e

na espuma traz a pluma

que te

mata

 

*

Areia monódica de fino

e opulento grupo risca o

chão

em branco círculo de giz

Ir além dá trabalho assim

dizem

não

 

DESIQUILÍBRIOS DA SOMBRA

 

Do Sol ao Inferno

Do Grande ao Sofrível

Do Belo ao Vómito


  Por outras palavras…


 De Madalena a Melícias

De Isabel a Lemos

De Faria a Gesta


  …a meio ficou a aresta.


SEM JEITO PARA O NEGÓCIO

 

E o coro canta no

tempo em que os ratos

em medo

saem dos buracos

das paredes revestidas de estantes

ratos pequenos ratos velhos

alguns vermes muitos vermes e

o coro canta.

 

Sentada

a máquina tenta sobreviver

gerir o medo na penumbra.

Corre em penoso som a flor da peste

e todos leem poemas para o

confessionário Universal.

Nenhum tem jeito mas todos

têm perfil para o negócio.

 

O coro canta imparável

a futura sobrevivência

de quem sabe fazer negócio.

Tristes pavões sem grandes penas

julgados por quem vos vê.

 

Bobos da nova era

tudo será esquecido

sobretudo os nossos nomes.

Michaël Borremans , mercy 2016.jpg

Michaël Borremans - “Mercy”, 2016

O DERRADEIRO POEMA SOBRE O VÍRUS (...)

O DERRADEIRO POEMA SOBRE O VÍRUS

                COM O SUBTÍTULO

            ABRIL EM CHERNOBLY

  Ou será Chernobly em Abril? Não sei,

não sei, não interessa! Este é o derradeiro

poema (quero dizer, Soneto) à vinda

do Birus, do Vírus, do Tirus. Tirus? Sim

vinte tiros (com sotaque do norte) no pé.

Mas pior é ver a Genética com a Estética

(mais alguma palavra que acabe em -ética?)

Bom, eu até procurava no dicionário mais

alguma bonita palavra, mas, confesso, não

me apetece nada ir receber o Camões.

E, sim, este poema, este soneto de cama,

é mau. É, claro, que é mau. Tinha de ser

mau para servir de lupa amplificadora

do vírus que anda por aí em jornais de

duas siglas. Mau até dar com um pau.

                          (até rima, já viram?)

Recapitulemos: este poema, sim, é o

derradeiro poema sobre o vírus. Mas

qual vírus? O da linguagem (Langua

ge is a virus) ou do contente nome?



big-science_04.jpg

Laurie Anderson - O superman, 1982.