OU!

 

Io sono un partigiano.

A Gauguin, o cão que nunca viu os sassi1 e a Giorgio, que os partilhou comigo.

1.A cidade escondida

Em Matera, vive-se de fora para dentro. Não de um fora para dentro em que o dentro é mercado, reboliço, azáfama, gente que corre, motocicletas velozes, tomates pelo chão, pregões de vozes cheias ou cães vadios que cheiram e lambem os pés. Em vez disso, um fora para dentro em que o dentro é como uma pérola, fechando-se a cidade como concha sem a olhar, aconchegando-a sem a tocar, protegendo-a sem o (se) saber.

A concha, cinzenta, dura, ondulada, às camadas de cebola presas umas às outras com cola forte, tem em torno de si o mar (as colinas), os peixes (as cabras), as algas (a urze), as bolhas de dióxido de carbono que ascendem (o ar), as correntes fortes (o vento africano), as ondas (de calor?), as rochas (as rochas). No seu interior (vale?), a pérola. Um conjugar de beleza branca e brilhante intacta, ainda que de cabelos (paredes) acinzentados, com a tranquilidade opaca de um Alentejo em dia de sol, plácido, quente, estanque, com esparsos anciãos que conversam sob uma oliveira, de boina na cabeça e cajado paralítico, dia, após dia, ou ainda dias, que são sempre os mesmos dias, porque duram para sempre e se estendem como a planície. Um museu do calor que tanto sobe do centro da terra como viaja (voa) em ventos africanos, em que a arte se constrói escavando montanhas, pouco a pouco, como um grande formigueiro sobre a terra, ao acaso, por acaso, sobrevivendo ainda que de areia e, por isso, criando magia. Isso é Matera: uma pérola tranquila e velha, numa planície quente alentejana, guardada por uma ostra cebola, que a esconde de quem passa.

 

2.A cidade imaginada

Em Matera, os sassi estão vazios. Para um observador externo, este nada oferece uma cena montada à espera das luzes e das personagens. A primeira frase de uma história que será o leitor (viajante) a escrever. O cenário está montado: as casas sucedem-se encavalitadas, encruzilhadas, labirintadas, desaparecendo de dentro para fora umas das outras. Matera oferece-se assim, estática, como se vivesse apenas para servir a imaginação. Alberga infinitas possibilidades: pelos seus caminhos tanto poderiam correr bárbaros, como extraterrestres. As suas portas abrem-se em túneis contínuos que contêm em si movimento e ruído invisíveis, mas sentidos. É um era uma vez, um alçapão para um sótão desconhecido, uma arca do tesouro cujo conteúdo pode ser tudo o que quisermos. Uma viagem no tempo instantânea às histórias que têm modelado as vidas de por quem lá passa. Nada mais está entre a cidade e este transporte a-espacial senão a vida de quem a vê, os livros que leu, os filmes que viu e o imaginário que transporta.

Para um observador interno, porém, o guião para este cenário já esteve escrito. Sabem como se vivia, em que direção se caminhava e de que janela se debruçava quem. Este cenário vazio não é um mundo de possibilidades infinitas, mas antes a memória das possibilidades que finiram. Como uma instalação de homenagem ao abandono, é uma lembrança constante do quão silencioso é não ter vida(s) dentro de si.

Em Matera, eu fui uma observadora externa. Para mim, foi bela porque me ofereceu papel para os meus contos de fadas. Imagino burros, rios de excrementos, mulheres fortes e redondas, vegetais que chegam em carroças, fardos de palha, festas com vinho jorrando diretamente da pipa para enormes canecas de barro, danças iluminadas por fogueiras.

Entre mim e quem de Matera a olha, está uma das dicotomias mais cruas do turismo de passagem. Onde se sente abandono, vêem-se contos de fadas; onde a memória dói, o futuro é consumível; onde a precariedade se entranha, a beleza é descartável. O viajante seguirá para outras paragens em branco, ainda que talvez não tão disponíveis para a viagem dentro delas como esta. O Materano permanecerá, olhando a cidade de frente com a memória e virando-lhe as costas com o que há-de-vir.

Ele sabe: a verdadeira cidade não se olha, vive-se. E não se faz de casas vazias.

 

3. A cidade libertada

A águia perdera-se. A aranha também se tinha perdido, ainda que, tendo-se perdido, tenha encontrado um novo lugar onde, na verdade, estava muito melhor. Desta forma, depois de se ter perdido no verdadeiro sentido literal da palavra, a aranha perdera-se também num sentido um pouco mais figurado da palavra, embora na mesma verdadeiro. Perdera-se de ser uma aranha, e transformara-se em ser numa formiga. Não por maldade, ou por querer gozar da comida com que a alimentavam as outras formigas. Nem sequer por apropriação cultural do universo das pobres formigas, mais pequenas e indefesas. Apenas porque era uma formiga, e não uma aranha. Pertencia a um mundo diferente, sob uma pedra, comendo migalhas.

Talvez em vez de se ter perdido, a aranha se tenha encontrado, na verdade. Porque se uma aranha não está presa ao lugar ou à família de aranhas em que nasceu, ela não está sequer cativa de ser uma aranha. É livre.

Talvez a águia encontre uma cidade onde pairar. Uma em que as casas tenham todas uma cor que se assemelha à sua. Talvez encontre esta cidade, e permaneça para sempre como a única águia em Matera, olhando-a do cimo, imóvel. Talvez a águia se transforme em falcão (muito mais comuns no céu materano) e se encontre depois de se ter perdido, tal como aconteceu com a aranha. Ou talvez continue mesmo sendo águia, ainda que só. Majestosa, enorme, voadora, corajosa: símbolo, para todos os habitantes de Matera, de que se pode sempre encontrar-se depois de ter perdido, de qualquer forma, em qualquer lugar.

E, mais importante, de que, tal como a aranha ou a águia, também eles são livres.

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1 Sassi: Casas pré-históricas escavadas nas montanhas de Matera, na Basilicata.

Escrever ou tão pequena parte ser no mundo

Escrever é penoso,muitas formas de escrever, diferentes maneiras de dizer a mesma coisa, é sempre possível encontrar uma frase mais bonita do que esta, a palavra escarrapachada no papel desagrada, as palavras nunca são as mais belas, as escolhidas não são as ideais, existem mais graciosas, mais apuradas, ao texto faltam parafusos, uma vírgula aqui que não devia, uma frase para ali que se repete, que não bate certo, os chavões aos pulos, o dicionário fechado, e no fim, qual fim, o texto não tem fim, morre de cansaço, de tédio, o texto não bate certo, sente-se a desarmonia, texto feio, o texto sofre de fealdade, não se pode ter texto mais grotesco do que o que escrevemos, o que nos pertence é fraco e custa aceitar a limitação, a ausência de apuro, a elegância foge para os textos dos outros, não só dos consagrados, mesmo um zé-ninguém, autor de romances de facebook, bate mais certeiramente nas teclas, isto de escrever seria tão mais fácil se em vez de escrever fechasse os olhos a pensar no texto e adormecesse sem nunca ter escrito e acordasse no dia seguinte esquecido de que alguma vez quis ou tentei escrever, não vale a pena o esforço, isto, se pensar bem nisto desligo e volto para debaixo dos cobertores, o macaco aprende, oh se aprende, lembremos o anúncio do Gervásio que levava o objecto ao contentor do lixo, o macaco sabe, o macaco escreve, mas escrever não é deixar de ser macaco, claro que não é, pegadas de animal por todo o lado, o texto manco à conta da limitação intelectual, educativa, e eu a perseguir a perfeição, a sujar o menos possível o caderno para não o conspurcar com o esterco cuspido pelo cérebro, chamemos assim o quadrado de osso e pus, escrever esgota a vaidade, queria ser escritor e agora quero ser nada, para ser escritor é preciso escrever e nada do que aqui está, nada nos jornais, nada nos livros é escrita, palha, isso temos de sobra, resmas de nada, o vazio assalta-nos, a caneta trespassa a folha para dar lugar a nada, é triste rodear o vazio durante tantos anos, ainda no outro dia o melhor ou um dos melhores ou seise um dos melhores escritores portugueses comentava que poderia morrer depois de publicar os trinta livros que planeara, que depois disso se fechava um ciclo, e eu a ler aquilo e a imaginar o escritor morto e os trinta livros empilhados numa livraria ou na feira da ladra ou numa cave bolorenta, os trinta volumes, o tal ciclo, quarenta anos de escrita, tudo isso a valer rigorosamente nada, não nos enganemos em relação a isto, aqueles trinta livros valem o mesmo que a palha entalada entre a dentuça do burro, o escritor, esse tal melhor escritor, também é primo do macaco, os seus livros são papel, vestígios de uma civilização à beira de acabar, estamos à beira da extinção, como estivemos desde que apareceu tudo, nada dura, nada presta, e um dia o circo termina, e escrever dói tanto e não leva a lado algum e, mesmo assim, mesmo assim, aqui estamos. 

Um ditador que não é um ditador

Um ditador que não é ditador não pode usar bigode. Os bigodes ficam sempre mal quando vem o Carnaval, sendo preciso cofiá-los em frente da televisão, o que do ponto de vista da comunicação é dois, e não um. Três nunca seria. Um ditador também não pode fumar porque estraga os dentes, e além disso pode provocar várias doenças, nomeadamente a doença-do-charuto ou a doença-do-cachimbo, que grassa por zonas em que não há monarquias activas. Roterdão, por exemplo, seria uma terra em que tal acontecimento não sucederia.

Um ditador que não é ditador não diz não às liberdades. Fecha-as, come-as, tranca-as, fode-as, e eventualmente torna-as maiores quando os que delas precisavam têm uma larva no olho esquerdo. No direito, não, porque só há ditadores que provoquem mortes no lado esquerdo, o que tem a ver com a forma como o cérebro funciona (hemisfério esquerdo, mão direita, vice-versa).

Um ditador que não é ditador não ordena: sugere, indica, estimula, faz pensar, faz evoluir, faz caminhar. Por exemplo: se um ditador que não é ditador quer que um grande número de pessoas, pelo menos mais de duas mil, pense que ninguém pode contar os grãos de um metro quadrado de areia, sugere que se conte uma praia inteira. Se a alguém não interessar a questão, melhor. Se alguém defende que um metro quadrado de areia até pode ser eventualmente contável, a praia sempre foi o sítio de eleição para cadáveres que dão à costa. Pensando bem, “dar à costa” é uma expressão demasiado abusiva, uma vez que quem já está morto não pode dar coisíssima nenhuma. Há expressões infelizes. O que nos leva à seguinte questão (aqui faço um parágrafo ridículo, mas que me permite manter o ritmo do texto).

Um ditador que não é ditador pode morrer. Os ditadores mesmo ditadores não morrem. Também não caem da cadeira. Também não morrem de doença prolongada. Também não morrem de velhice. São fuzilados, incinerados, decapitados, empalados, desmembrados, envenenados ou asfixiados. Entretanto ocorreu-me que não sei de nenhum ditador que tenha sido crucificado: são ditadores, não são mártires, e há uma espécie de acordo tácito acerca de como uma morte excruciante deve ocorrer entre os ditadores, a crucificação seria demasiado simbólica para seres desta natureza. Aliás, no caso dos ditadores mesmo ditadores, nem a história os absolveu ou há-de absolver, no sentido em que a história ainda vive no século passado, e aceita a pena de morte. Alguém devia ter uma conversa com ela, explicando-lhe que isto da morte já é uma coisa demasiado batida, já se fez muitas vezes, já está feita, já chega. Se alguém tem o poder de acabar com este desagradável hábito é a história, uma vez que ela é uma construção inteiramente humana, e não sendo capaz de alterar a realidade pode deixar pistas para um mundo pós-nuclear em que extra-terrestres descobririam nos nossos anais que éramos imortais. Só temos todos de morrer entretanto e não deixar vestígio disso, mas isso faz-se, é fazível, é exequível.

            Um ditador que não é ditador tem um ideal, mas não uma utopia. As utopias são irrealizáveis, como por exemplo a de um certo indivíduo que decidiu escrever em latim quando dominava perfeitamente o inglês (que palerma!). Escreveu ele que seria possível que mulheres e homens tivessem os mesmos direitos. Que absurdo. Paspalho utópico. Ou aquele outro – lembras-te da minha última carta, meu amor? – que ousou falar em parábolas: “amem-se uns aos outros”. Um ditador que não é ditador não tem utopias. Tem i-d-e-a-i-s. Ideais são ideias muito vincadas que todos devem partilhar, mesmo que não queiram, porque são os que um determinado conjunto de indivíduos estipulou como correctos e revolucionários. Um ditador que não é ditador também sabe que os ideais facilmente se tornam em ideias, e que as ideias são mais fáceis de manter do que os ideais. No fundo, é como um cheque ou uma mala cheia de dinheiro. Eu prefiro a mala. Mas sou notoriamente conhecido pela minha pouca motivação para o idealismo. Estou a brincar. Não sou notoriamente conhecido por nada. Até porque me irritam os pleonasmos.

            Uma coisa em que um ditador que não é ditador é muito bom é em pensar, de uma forma geral, muito melhor do que os outros. Por isso é que se pode dar ao luxo de matar uns quantos, porque estão a pensar mal. Convenhamos que quem pensa mal pode prejudicar os ideais, e por isso mais vale um fuzilamento provisório, algo reversível após a morte. A opção por fuzilamentos definitivos é típica dos ditadores efectivos, e não dos que não são ditadores. Um fuzilamento definitivo é típico de uma ditadura; um fuzilamento provisório é típico de uma não-ditadura. Se virmos bem, dói muito menos morrer provisoriamente do que definitivamente. Que o digam as encarnações todas de Vishnu, que provavelmente nunca se poderão ter conhecido do ponto de vista teológico, não pelo menos na nossa concepção de tempo, que continua a ser demasiado humana. Uma nova ideia para mudar na história.

            Um ditador que não é ditador também tem um amor geral pelo “povo”. Aqui contrasta flagrantemente com um ditador de facto, que tem um amor geral pelo “povo”. A diferença está em que enquanto um ama o povo na sua generalidade e não sua particularidade, o outro também. Apenas uma coisa partilham, o ditador e o não ditador, é que quando alguém prova que não é do povo, mesmo que seja, é porque está contra o povo, e pode ser desmembrado ou electrocutado. Por exemplo: o “povo” gosta de batatas. Mesmo que nunca ninguém tenha conhecido alguém chamado Povo (e só uma pessoa tomada individualmente é que têm esta estúpida tendência para a identidade de gosto, e mesmo isso é discutível), sabemos que o “povo” gosta de batatas. Fulano de tal é do povo. Talvez porque comesse batatas, porque não havia outra coisa para comer. Entretanto, descobre que adora inhames, e tenta convencer os outros que as batatas são uma merda, mesmo que de facto as batatas sejam melhores. Não pode. Já não é do povo. Pode-se fuzilar, limitar ou eventualmente sodomizar, em casos extremos. Um não ditador fará tudo isso provisoriamente, claro está.

Uma última palavra acerca dos círculos. Cuidado com eles. Eles nunca saem do mesmo lugar. Isso, quer um ditador, quer um não ditador, sabem bem.    

Hoje é dia 31 de julho

Céus. Nada mais que um vácuo apesar da individual conjuntura – não desvenda-se nada além de uma camada de seda branca que cobre todas as relações e o espaço entre minhas mãos e as palavras brotando; uma música, poderíamos chamar. Que por entre os poros ecoa. Um sussurro na sala. Será que uma certa escritora também se preocupa em contar histórias, como eu? Se algum dia, o que é improvável, ela disse consigo mesma que estaria disposta a perder o tempo e entrar numa gandaia ficcional? Ele vai às ruas, acende um cigarro acreditando em espíritos, toma um ônibus para o litoral, acredita na revolução and so on. Ou alguém perdido no outro lado do continente que nem se sabe se está vivo, mas de repente recebe essa mensagem de voz, tarde, de qualquer modo perguntando o que você está fazendo, sem nenhuma pretenção ou intenção-de. Mas tarde de mais, pensam os últimos pregadores de praças públicas, pois que tipos de frutos seriam possíveis hoje derivados de sermões? O fim só pode estar quase. 

Recebi a resposta de um amigo que fazia anos, falando de uma maconha disponível. Não sei quando chegou a minha mensagem, já é julho, e muito menos quando foi enviada, pois pode ter havido um delay de algumas semanas – que por sua vez trouxeram um delay de quase meio ano considerando o tempo de uma pessoa que fuma e lê Maiakóvski. Pensei que era engano, a mensagem, e talvez realmente o fora, pois ele viu na possível caixa de entrada o meu nome, separando para em algum instante de sua vida responder qualquer coisa, mas a outra pessoa da qual ele gostaria de ver e ficar conversando-de-fato e talvez namorar depois, era outra pessoa. Uma linguagem calma de suas dedadas no teclado compatíveis com quem sempre foi. A sua casa tinha muitos vidros, enquanto a minha, apenas concreto e breves janelas – cozinha, lavanderia, sala, quarto, quarto. Ele como que teve um espanto. 

Não havia nexo meu corpo aparecer depois de corridos anos. Mas eis-me ali, fumando até semana passada depois de terminar a tradução de cinco contratos normativos de uma multinacional voltada para soluções do mercado. No futuro estarão terminados, é o que penso enquanto fumo e ouço Satie e escrevo no morro; os detalhes ao meu entorno tornam o enredo impossível. Estava sem camiseta concertando algum utensílio quebrado, rodava um disco de minimal e parecia um machão quando cheguei – ele de costas e de cócoras, quando se virou teve o espanto calmo de quem fuma. As perguntas básicas da vida. O instinto silencioso da retina na outra, cortada pelo fósforo riscando incendiado até a ponta do tabaco preso nos seus lábios. Que embaraço aquele corpo por trás da fumaça – flashes da vida mesquinha se nos passaram em vãos da memória. Eu chegaria em casa e talvez colocaria todas as fotos, cadernos e roupas num cesto de latão pegando fogo. 

Já se queimou toda a erva restante em oposição ao calendário, –  escrevi no diário quando acabou o verde – dia trinta e um – aluguel e tradução – resistiremos a mais essa, seres inúteis. 

Eu necessitei de uma pergunta, algum afago linguístico entre nosso campo de atração – os poucos centímetros por onde se nos abria uma utopia, uma mínima piada que compartilhávamos. 

Me ofereceu um cigarro e fumamos gastando palavras no sofá preto. De que revoluções precisávamos?


Animais políticos numa sexta-feira à tarde: Algumas notas

1.    Há uns meses que ando a ler o jornal sem pagar. Ao fim do dia o rapaz na estação de comboio simplesmente não quer saber. Depois das quatro da tarde os jornais são apenas mais uma das tarefas que o esperam antes de fechar o estabelecimento, que, como todos os cafés de Inglaterra, fecha cedo, deixando a estação aos cães, aos últimos passageiros do dia e à indolência de carruagens que se alongam por estações cada vez mais desertas. É na fantasmagoria das estações de comboio deste país que melhor se entende o amor que une Inglaterra a um dos géneros literários nacionais, os romances policiais.

2.     O verão em Inglaterra pode ser mais ou menos insuportável, mas sobretudo mais ou menos inexistente. A meteorologia entra no mais completo descontrolo, como um barómetro avariado. A ilha simplesmente não foi desenhada para suportar o calor, são precisos vários dias de chuva para que se produza um dia quente, a que imediatamente sucede, claro, mais água. Foi Karl Ove Knausgaard quem escreveu, no primeiro volume de A Minha Luta, que os humores humanos são como a meteorologia, estão lá sempre, não é possível livrarmo-nos deles, a que se devia acrescentar que há uma ligação indelével entre humor e meteorologia, que quanto mais solar ou mais cinzento o tempo, assim de vez em quando o temperamento.  

3.     O humor é a atmosfera da empatia. Actos básicos de gentileza serão repartidos pelos dias segundo as flutuações desta moeda. Virtude (palavra que talvez só exista em sentido moral) é controlar o humor. Ausência de controlo resulta ou em injustiça ou em poesia ao género da do neo-romantismo, ao gosto de um Feliciano Castilho ou Bulhão Pato. Sabiam-no os estóicos e os epicuristas. Dois sistemas filosóficos, de resto, para os quais nunca tive muita paciência, sobretudo por me parecer que estão desenhados para contradizer os impulsos vitais mais básicos, que alguma coisa neles traduz avant la lettre a lógica de pecado e punição do catolicismo, e mesmo que isto não seja certo, T.S. Eliot tinha razão quando escreveu que o passado é constantemente alterado pelo presente, a nossa leitura dele pelo menos. Assim a minha embirração com os estóicos, olhando para eles depois de Cristo. Manter o nosso humor sobre controlo, sim, mas até isso com moderação.

4.     O moderado rapaz da banca do jornal, no entanto, tem um trabalho difícil e de um modo geral pouco apreciado. Por exemplo, não é raro trabalhar turnos invulgarmente longos, desde as seis da manhã até às seis tarde. Não é fácil aturar os transeuntes desta estação, dos adolescentes de uniforme aos ocasionais skinheads da English Defense League, consumidores de cerveja às 7 da manhã. O rapaz da banca de jornais, no entanto, parecendo que não, a sua vai tornar-se para mim uma dessas presenças silenciosas com quem se troca poucas palavras de cada vez, e que no entanto se sabe que, quando olharmos para trás, essa mesma presença há-de voltar como uma espécie de símbolo de toda uma época da nossa vida. Afinal, ele tem estado aqui desde o primeiro dia.

5.     O rapaz da banca do jornal reparte pequenos actos de gentileza pelos dias, de que deixar os passageiros ler os jornais que sobram ao fim do dia talvez seja apenas uma manifestação ínfima. A rotina das cidades condensa isto: há estranhos que se nos vão tornando cada vez mais familiares. Quando um de nós falhar este breve encontro diário, o outro notará essa ausência. O que permanecer há-de atentar na instabilidade introduzida pela ausência do outro.

6.     O futuro são as pessoas que comparecem às suas rotinas diárias. Nem tudo numa rotina é anestesia da repetição. Tudo o que se repete pode deixar-nos em guarda para a repetição excessiva. A banalidade de alguns gestos prepara o dia seguinte, traz o capítulo seguinte. O tecido das sociedades em que vivemos, o nosso conhecimento dos outros, assentam no reconhecimento prévio desse guião. A maior parte dos trabalhos que nos rodeiam são mais ou menos invisíveis.

7.     Parte da minha rotina implica esta estação de comboio e, assim, encarar mais ou menos diariamente com as primeiras páginas dos tabloids britânicos, o que garante que raramente me falta uma dose diária de indignação. Todos os jornais na Grã-Bretanha, do The Guardian ao Daily Mirror são abertamente facciosos.

8.     Talvez nada tenha clarificado este ponto para lá de qualquer dúvida como o período que antecedeu o referendo que ditou a vitória do Leave. As intenções de voto podiam ser facilmente previstas pelo jornal debaixo do braço. Boa parte do que se confunde ou não se confunde com jornalismo neste país serviu para ditar que esta votação não foi produto de uma reflexão sobre factos, mas sobre emoções, com a raiva e o descontentamento a explicar que se pudessem encontrar nas caixas de comentários de jornais pérolas como: “I’m voting leave: Muslims out!” Ou o meu prazer culpado de ler as crónicas da Marina Hyde no The Guardian, com a certeza de que aquela que esta colunista dedica ao último dia de Cameron no Parlamento foi escrita para mim, nemesis por outra manhã numa página de Orwell.

9.     Não que não haja margens para a surpresa, como encarar com a primeira página do Daily Mirror no dia anterior ao referendo, e ver a versão mais populista de um slogan a favor do Remain que nenhum partido de esquerda neste país se atreveu a cifrar: for your jobs, your NHS, for your children. Quoque tu, Daily Mirror?

10.  Nada me deixou entender tão amplamente as reservas que Platão mantém em relação aos poetas na República como a actuação dos políticos pro-Brexit nesta campanha, no sentido em que bons autores de ficção, poetas do calibre de um Farage e de um Boris Johnson, serão sempre bons a manipular as emoções dos cidadãos. É o grande ponto fraco da democracia. Uma explicação ética dos factos, segundo Aristóteles, bastaria para compensar esta limitação. Esta campanha demonstrou que basta as falsas opiniões circularem livremente, sem um contraditório que as prenda aos factos, para um milénio de fé na capacidade dos humanos para o bem ruir como um castelo de cartas. Penso que não deve haver teoria moral que sobreviva a um descontentamento podre em que um populista possa tocar com um dedo. Os mais pessimistas entretém comparações com a Europa dos anos 30.  

11.  Há um elo entre a banalização de tudo e a hegemonia da opinião sem factos que explica a ascensão (e esperamos que a queda) de um Donald Trump, de uma Marine Le Pen, de um Boris Johnson ou de um Nigel Farage. A opinião e o oportunismo dependem ambas de curtos intervalos de tempo e servem para alimentar o barulho que para os mais manipuláveis (ou os mais dispostos a serem manipulados) limita todo e qualquer espaço que pudesse ser dedicado a uma séria reflexão. A falta de tempo que nos instrumentaliza em casa e no trabalho é também parte deste problema. Quanto menos tempo mais raiva e menos reflexão, mais expostos nos tornamos ao populismo e ao oportunismo.

12.  É possível entender o descontentamento que a União Europeia provoca e não é algo que vem de hoje. Pode-se invocar a crise dos refugiados, ou recuando um pouco mais, a fraca resposta à ocupação da Crimeia, num país que afinal se manifestou pro-UE, ou a austeridade, ou muito antes disso, invocar lugares agora mais distantes, algures na Sérvia e na Jugoslávia. Surpreendentemente, nenhum destes argumentos ditou o resultado desta campanha, na qual de resto não se conduziu uma reflexão atenta acerca dos muitos problemas da UE hoje, uma que explicasse para lá de qualquer dúvida porque é que o caminho social e político aberto pelo Brexit seria tão mais preferível (sabemos agora que se ignora mais ou menos totalmente o que é este caminho ao certo). Onde as sondagens se viraram indecisamente para o não foi quando a emigração se tornou uma questão no referendo e, ligado a esta, o falso argumento da soberania. Mas a Inglaterra mantém-se um país soberano, com um parlamento com o poder de chumbar ou aprovar leis, e, até ver, o poder de controlar a sua emigração era mais forte enquanto estado-membro. É bastante improvável que a Inglaterra mantenha acesso ao mercado livre da União Europeia sem aceitar a livre circulação de pessoas. O último encontro entre May e Hollande parece confirmar esta ideia. Aí a grande mentira do Leave. Quando ouvimos Marine Le Pen em França descrever isto como uma vitória da democracia (uma vitória de 52% aliena apenas 48% da população de um país), sabemos que o populismo bateu tudo o resto aos pontos. 

13.  A banalização de tudo, que está ligada a esse furor da opinião que não questiona os factos, tem outro shortcoming, talvez mais preocupante do que os enumerados acima: é que arrasta a nossa empatia pela lama, torna-nos menos dispostos à gentileza sem a qual o mundo seguirá sendo a selva onde os fascistas de hoje, alguém como Trump, Le Pen, ou Farage, serão os últimos guardas da fronteira para lá da qual jaz tudo o que nos é alheio e que por isso deve ser exterminado ou deixado para morrer nos muros. É o movimento de nos virarmos para dentro, de irmos sendo cada vez menos cosmopolitas, que deixa adivinhar o fantasma do nacionalismo a pairar sobre a bandeira do patriotismo. Os patriotas que orquestraram o Brexit, com falsas promessas de mais dinheiro para o NHS, de resto, reconheceram todos a necessidade de correr de volta ao lar, abandonando a cena apressadamente  

14.  Na sexta-feira, 15 de Julho, encaminhando-me para a banca de jornais, paro e atento na capa de um dos tabloids. É tão conspícuo porque a imagem ocupa a capa toda. A princípio parece ser a estreia do filme da semana, um qualquer melodrama hollywoodesco, mas é uma fotografia tirada no passeio em Nice, na noite anterior, que atinge os transeuntes sem aviso. Vê-se um jovem casal estirado no pavimento, só um deles vivo. Uma imagem tirada de um pesadelo atirada para a banalidade sórdida de fazer vender tantos jornais quanto possível.

15.  Os últimos passageiros abrandam por instantes e seguem na indolência vagamente contente de sexta-feira à tarde para os vagões que os levarão às suas casas. Levinas escreveu, algures em Ética e Infinito: Entendo a responsabilidade como responsabilidade por outrem, portanto, como responsabilidade por aquilo que não fui eu que fiz , ou não me diz respeito; ou que precisamente me diz respeito, é por mim abordado como rosto.

 

Oxford, 19 de Julho de 2016