A transformação de Portugal segundo Agostinho da Silva – breve aproximação

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Grande parte da produção ensaística nacional dos últimos duzentos anos centrou-se numa necessidade de pensar, ou regenerar, um Portugal a padecer de enfermidades várias, das quais se destacam as conhecidas crónicas crises económico-financeiras que até em termos de mentalidade acabaram por ter reflexos na vida lusitana. Produzida em tempos em que as ciências humanas ainda não eram vistas com o rigor e o carácter científico (e até técnico) de hoje, por elites político-culturais não necessariamente ligadas ao meio académico, essa reflexão em torno do sempre urgente tema do reformar o país, de criar um Portugal futuro desligado do polimórfico vocábulo “crise”, não conheceu a objectividade que por vezes se exige a quem escreve história ou ensaio. A obra de Oliveira Martins, historiador oitocentista, tantas vezes criticado pelo carácter narrativo, subjectivo, pouco isento, com que historiou o Portugal do seu tempo, é demonstrativa de uma forma de pensar no papel que não obedecia à ciência académica, aos imperativos do rigor e da neutralidade. Também no abundante trabalho escrito de Agostinho da Silva se enquadra não só esta vontade de transformar Portugal, mas de modificar os homens de maneira a instaurar novas formas de viver regidas pela liberdade, palavra fundamental para o entendimento de um homem que perdeu o seu posto na função pública por se recusar a assinar um documento a atestar que não participaria em associações clandestinas (opostas ao regime ditatorial)[1].

 Agostinho da Silva não foi convencional e não se exprimiu como alguém convencional. A sua escrita floreada e redundante, como as suas respostas aos entrevistadores da RTP[2], aponta para caminhos incertos, parece girar em torno de toda a história de Portugal para chegar a lado nenhum. É fácil para um jovem vindo de Inglaterra, como era Miguel Esteves Cardoso na altura em que o entrevistou, em 1990, encontrar lacunas no que lia, dizer na cara do autor que a sua obra lhe parecia superficial ou oca[3]. Para alguém que leia alemães, ingleses, que se fascine com o progresso europeu e americano, ler o filósofo português é como entrar num universo provinciano, datado. E a verdade é que a obra de Agostinho da Silva, apontando para a liberdade de todos os homens, é ao mesmo tempo profundamente patriota, enaltece o que é nacional, o que não sofreu a para si negativa influência estrangeira[4]. Por conseguinte, ao entrarmos no universo escrito de Agostinho da Silva, precisamos de ir prevenidos, em primeiro lugar, para um estilo de escrita pouco dado à objectividade, pouco seguidor de fórmulas que a Academia dos nossos dias conhece, e depois, por um tom patriótico e messiânico, de exaltação da monarquia, a que recorreu para perspectivar as potencialidades portuguesas.

O Portugal futuro desenhado por Agostinho da Silva é pouco claro, e nesse sentido contrasta com o trabalho levado a cabo, por exemplo, por Raul Proença, Jaime Cortesão ou António Sérgio, figuras ligadas à Seara Nova, revista a que também Agostinho esteve ligado. Ao contrário destes conhecidos nomes, que apresentaram propostas concretas,  ligadas ao desenvolvimento económico e material, Agostinho da Silva pautou-se por utopias. Para o grupo da Seara Nova, o signo essencial era o da acção, o da transformação prática, e era por esse motivo que Agostinho dos seus membros dizia que jamais haviam sido aquilo que poderíamos chamar “intelectuais puros”[5]. Se o filósofo se debruçava sobre a economia, se sublinhava a urgência de desenvolver a tecnologia, era para afirmar que a economia deveria desaparecer por completo, que a humanidade dever-se-ia libertar dessa escravidão chamada trabalho. A sua ideia era a de que o homem deveria ser criatura livre no tempo e no espaço, livre de categorizações auto-impostas.

Não obstante seja para o futuro que Agostinho aponta, é no passado que a sua obra se move, na glorificação dos heróis nacionais, na defesa do que é mais tradicional e puro na cultura portuguesa. Por outro lado, mais do que exaltar o espírito dos Descobrimentos, como fizeram tantos outros autores, interessa a Agostinho destacar as lutas pela independência contra Castela. Observa mesmo que o que Portugal fez de maior no mundo não foi nem o Descobrimento, nem a conquista, nem a formação das nações ultramarinas, mas o ter resistido a Castela. E no seu entendimento não houve batalha mais importante na Europa do que a de Aljubarrota[6]. E era por tanto e tão bravamente ter resistido às pressões castelhanas que Portugal representava uma esperança de “futura liberdade” para as outras nações da Península: “Portugal é, de todos os cantos da Península, o único que tem verdadeiramente génio político, talvez, de todas as gentes que falam latim pelo mundo, o único real herdeiro do povo romano"[7]. Contudo, este mundo profundamente nacionalista de Agostinho da Silva é também idealista, utópico, isto é, irreal, “não das existências mas das essências intangíveis, puramente ideais”[8], sempre do futuro, às vezes imaginário, como aquele em que se imagina D. João VI a decidir criar um universo português feito de nações independentes e livres com o seu centro de gravidade não mais em Portugal, mas no Brasil. Paradoxalmente, este alargamento de Portugal ao Brasil não era visto por Agostinho como uma forma de tornar Portugal cosmopolita, antes como um modo de livrar o país das daninhas influências europeias que não o tinham deixado ter nem regime cultural, nem acção política “verdadeiramente adequadas à sua mentalidade"[9].

A complexidade ou densidade da obra deste pensador português não se restringe a entrevistas ou a dois ou três livros que possamos citar, mas o interesse aqui não era analisar Agostinho da Silva na sua totalidade, antes contribuir para entender as suas propostas para o porvir nacional. E o que se encontrou não é simplesmente interpretável. O caminho visionado pelo filósofo é de índole imaterial. A sua leitura da história de Portugal tende a encontrar grandeza onde outros viram decadência, e encontrar decadência onde outros vislumbraram progresso – a Europa, por exemplo. Quando lemos qualquer dos seus livros, a percepção que fica é a de estarmos no reino da impossibilidade, da utopia. E assim se depreende que a filosofia de Agostinho da Silva, pelo menos no que a estes temas se refere, ultrapassa os limites da história e da filosofia, chega a ser um longo devaneio literário cujo destino final é somente pensar. E talvez não haja outro sentido para a escrita do que o pensar.   

 

 

 

 

[1] Não ter cartão de contribuinte português era outra prova deste espírito sempre inclinado para o ser livre.

[2] Intituladas “Conversas Vadias”, estas entrevistas realizadas em 1990 podem ser encontradas no arquivo da RTP: https://arquivos.rtp.pt

[3] As palavras usadas por Esteves Cardoso foram certamente outras, mas o seu sentido não diferirá assim tanto do que aqui escrevo.

[4] Um dos momentos que assinalam a decadência portuguesa é, para Agostinho, o Renascimento, que trouxe do estrangeiro as mais diversas influências (literárias, linguísticas, etc.)

[5] SILVA, Agostinho da, Só Ajustamentos, Salvador da Baía, Imprensa Oficial da Bahia, Salvador, 1962, p. 133. 

[6] Id., Ibidem, p. 31.

[7] Id., Ibidem, p. 33.

[8] Id., Ibidem, p. 81.

[9] Id., Ibidem, p. 106.

Radio silence: notas sobre rádios

            “Rádio é um recurso tecnológico de telecomunicações utilizado para propiciar comunicação bidirecional por intermédio da transcepção de dados e informações previamente codificadas em sinal eletromagnético que se propaga através do espaço do mundo físico material e imaterial.” (Grifo nosso). Não sei o que a Wikipédia quis significar com “imaterial”, mas entendo essa sua vontade “amplificar” o alcance e as possibilidades do rádio, como se ele estivesse além da nossa individualidade e autorrealização.

            De minha parte, apenas quis lembrar-me dele. “O rádio. Lembrar-se do rádio, penso, ou escrevo em post-its (fiz isso apenas uma vez), ou penso quando desligo o carro e quero continuar ouvindo a estação mas preciso entrar em casa e lembrar de ligar na mesma estação. Simplesmente lembrar de deixar o rádio ligado. Uma forma singular de ocupar o espaço, também penso (só agora, que escrevo). Mas hoje estamos no shuffle.” (Anotações do diário)

Me refiro ao rádio pois é minha máquina predileta, basicamente por sua transmissão de frequências. Os vinis, hoje são caros e ocupam demasiado espaço, e, para quem tem rinite, é um problema a mais quando já existem os livros; enquanto que os CD’s, eu prefiro, mas os da minha coleção são de bandas obsoletas e infames, ou que, no mínimo, você, em pleno século 21, não mostraria para os convidados, muito menos para crush’s.

Há a máquina notebook, eu sei, que te conecta com possibilidades de combinações infinitas de matéria, inclusive com todo tipo de programa de rádio-transmissão. Digo a matéria, e não a simulação desta, ou meras imagens do real que se projetam numa mesma tela sempre feita da mesma coisa, ou seja, tela cuja substância não muda ao longo de um bom tempo, como a velha CPU que tenho, em cima da mesa-depósito, na quina do corredor de casa (mesa que papai ganhou (com design modernista e que ninguém nunca conseguiu montar com firmeza) de seu antigo trabalho, como forma de pagamento, pois a firma faliu; mas a CPU continua lá, pronta para ser ligada com todos os arquivos que eu deixei para trás, fotos editadas com sutis rabiscos do mouse feito pelo paint, ou só desenhos feitos com o paint, cartas breves de pedido de namoro também editadas com o paint, com corações efeito graffitte, um romance baseado no filme Guerra dos mundos, cujo título era Universos em guerra, e que o Pedro, meu vizinho, ajudou a escrever, se bem que depois de dez minutos sentado ao meu lado de frente para aquela máquina velha (pois já existia o Xp, e o meu era o 94, mas não seja por isso), o Pedro disse que precisava ir para casa e levantou-se, perguntou se o portão estava aberto, e foi sozinho fazer seu compromisso, mas me ajudou nos primeiros parágrafos; depois, eu imprimi a história na mesma tarde e fui para a casa de Pedro onde o encontrei deitado no sofá assistindo o melhor filme que já vimos juntos, era da Disney e devia ter mais de duas horas, trama complexa de um grupo que queria se libertar do mal autocrático exercido por outro, eram crianças num acampamento, ou crianças escravas, ou ladras; nunca vou me lembrar do título, mas os personagens e a fotografia remetiam a uma atmosfera desértica e onírica, como sonhar Fellini em colorido, não em p&b; tudo excessivamente amerelo-ouro. Mas a matéria em si ganha a medida do notebook, como dimensão biológica da experiência, e fica contida num buraco cujo fundo não há, se prolifera em abismos dentro de outros que retornam, sem absoluta hierarquia, por nossos próprios movimentos sobre teclas e mouses e as respostas da tela do notebook (tendenciosamente no mesmo ciclo vicioso por analogias mega-inteligentes, para as nossas preferências, etc.)

Apenas uma tendência. Mas que às vezes nos faz espantar quando nos deparamos (raramente ou com esforço) com espaços elaborados em uma matéria que não existia dentro desse ciclo, com verdadeiras ruínas, não raras vezes tentadas como “obras de arte”, e as habitamos por alguns instantes, instantes repletos de morte, e que imediatamente jogamos fora, dum lugar que carece de discurso, de escolha ou analogia, cuja podridão desloca os ensejos que tanto investimos a cada mínimo espaço de tempo conectados (no banheiro, na fila do mercado, no pronto socorro, no pré- e pós-sexo, nas escadas do prédio, no café, no engarramento); desloca-os todos para o movimento mais ousado e transgressor. Que é perspicaz e quieto, por sua desmedida substância.

O rádio cumpre, de forma abreviada e portátil, essa temporalidade indiferente e fora de alcance. Por seu corpo hoje inútil e sua vida própria, principalmente durante a noite.

Há disso nos romances, por exemplo; e é algo bonito, que nos toca particularmente na modernidade líquida, ou seja lá o que isso for. Trata-se da “perda” de tempo que investimos na leitura, na excessividade textual que pode levar a diversas imperfeições do enredo, detalhes e memórias absolutamente descartáveis, deslocadas do foco, um prolongamento do corpo de quem escreve que escapa no texto. Falo do romance (poderia falar em “gastar tempo” se dissolvendo em versos, nos enjambements) pois é o gênero mais valorizado hoje, dentre outras razões, por sua característica da “perfeição”, da possibilidade de narrar uma história com um tamanho ideal que dê conta daquilo de que enuncia: que seja compreensível e bem resolvida. E sua beleza particular é precisamente oposta a essa noção de “obra”; é a de um espaço cuja possibilidade de inventividade de matéria é inesgotável.

Outro exemplo de uma situação-ruína, extraio justamente de dois romances: radicalizando essa “textualidade” inútil, num gesto primitivo e infantil, os personagens pegam um livro e o estendem no varal; o livro fica aberto e com a maior área de contato possível, acelerando as reações químicas do vento, da chuva, do sol e do cocô de pássaros, sintetizando, num experimento visível, algo do tempo geológico. (São duas cenas parecidas, presentes em 2666, de Roberto Bolaño, e em Nocilla Epeirence, de Augustín Fernández Mallo, que disse não ter lido o romance de Bolaño antes de ter escrito Nocilla, ocorrendo o fenômeno de “plágio por antecipação”, como diz Borges.)

No dia-a-dia, não precisamos deteriorar os livros. O rádio é uma máquina fácil de ser acoplada ao ambiente e pode ficar de segundo plano, enquanto se escreve ou se lê um livro, por exemplo. É uma questão de escuta, em ambos os casos. Mas no caso do rádio, não precisamos nem estar “ouvindo rádio”.

Pois me lembrei dele, que ficava ali atrás na estante, a maior parte do tempo à toa, ruidoso enquanto me dedicava a algo mais importante, até que ele parou de funcionar. Agora, vejo-o ali ainda, com seu corpo alheio, indiferente. E então, todo o silêncio que percebo, emana exclusivamente dele, das suas caixas de som que não funcionam, aí penso que o título da música “Radio silence” faz sentido.

“Radio silence”, canção melosa do britânico James Blake. Eu justificaria dizendo que suas músicas são ritmadas fora do padrão da indústria (padrão das estações de rádio?!), verso-refrão-verso-refrão-solo, pois elas cismam em não cair no refrão, se prolongando, como em Erik Satie. Mas não tem nada a ver; as analogias são fúteis mesmo.

11/06/2017

Canção citada.

Da minha impossibilidade actual de desfrutar de um livro

“O sujeito entretém-se a galar as mulheres que deslizam e abancam ao seu lado ou à sua frente no metro, como se todas fossem perfeitas e apetecíveis, e quando uma bela dama corresponde aos olhares e exibe sinais de querer falar e lança beijocas ao ar, ele baixa a cabeça, a sentir-se o mais feio de todos, a relembrar a dentição amarelecida, as cicatrizes na testa, as olheiras, a pança mal disfarçada por camisa xl e os fungos que nem latas de spray, gotas, pó de talco, lixívia e o que mais se imaginar conseguem desentranhar das unhas.” 


Este rascunho mal amanhado, dedicado a um pertinente tema como o das trocas de sorrisos no metro nova-iorquino, brotou-me em Fevereiro deste ano num caderno devido a um terrível hábito, que já em Portugal me trazia grandes desgostos, de começar a ler obras literárias dadas à estampa por autores rotulados pela imprensa periódica como o novo grande talento mundial desde Kafka ou Tolstói. Sucede-me quase sempre o mesmo ao entrar na Strand, livraria situada em Union Square, Manhattan: folheio livros num canto escuro em que turistas não passam, compro um que me agrade e encafuo-me no metro na esperança de, pelo menos durante a meia-hora seguinte, me perder nos prazeres que só a boa literatura oferece, mas desato a tropeçar nos parágrafos, chego à página sete a desfalecer, desmaio na décima página, chego ao terceiro capítulo depois de ter saltado meia-dúzia de páginas, e aquilo que parecia a minha salvação acaba na estante, junto a tantos outros Kafkas redivivos. Esquecido o livro na mochila, atento na senhora de mini-saia que tira selfies, no cintilante grupo de empresários forrados com notas de dólar, no hispânico a dormir uma soneca encoberto por boné que faz sombra até ao bigode, na velhota que jura ao telefone nunca ter conhecido alguém que fizesse tantas vezes sexo por dia quanto a inquilina do andar de cima. 

    Penso no livro The Lonely City - Adventures in the Art of Being Alone, escrito por Olivia Laing, autora dotada de um talento narrativo que lhe permite dar uma perninha em qualquer género literário, com particular incidência no ensaístico, como um exemplo do que me parece errado em muito do que se publica actualmente. Esta é uma obra centrada em experiências de isolamento e incomunicabilidade vivenciadas por artistas em Nova Iorque, cidade propícia a depressões e outros abatimentos da alma. Temos Andy Warhol, pálido, anti-social, complexado por ter nascido no seio de uma família de imigrantes que foi parar a Pittsburgh, desde cedo a temer não falar tão bem inglês quanto outros americanos, a fugir ao diálogo. Também neste livro entra Valerie Solanas, criatura solitária, incapaz de expressar os seus sentimentos através de palavras (apesar de ser escritora), que em 1968 tentou matar Andy Warhol a tiro. Já nos trabalhos do pintor e fotógrafo David Wojnarowics, outro artista sobre o qual Laing disserta, o sexo abunda por ser essa uma forma de escapar ao confinamento solitário, à “prison of the self”. Estes e outros exemplos dados por Laing poderiam resultar em algo que escapasse à passagem do tempo, se este livro não sofresse de uma moda americana que retira interesse e substância a tantos trabalhos pelas máquinas de marketing considerados imperdíveis. A moda de querer ser tudo, de abarcar os temas todos sem passar da superfície, de exibir uma inteligência que não passa de estilo (estilo mainstream), de espargir pós-modernidade, de triturar relatos pessoais, ficção, história, filosofia ou considerações sobre arte.

Sobra da leitura deste e de outros livros uma certa desilusão: a leitura não foi tão prazenteira quanto poderia, não aprendi o que gostaria. Um livro aparentemente profundo gira em torno de nada e perde-se em redundantes umbiguismos. Talvez se a autora se tivesse restringido a temas como a depressão ou a solidão, se tivesse aproveitado esses temas para nos ensinar mais sobre personalidades como as referidas. Se tivesse sido menos New Yorker. Menos trendy. Menos cosmopolita. Se tivesse sido menos Master of Fine Arts in Creative Writing. Mas nada. Este tipo de literatura padece de uma doença que se confunde com talento. Falamos de uma doença nascida nas melhores universidades, que se manifesta em brilhantes textos, repletos de estruturas. Unanimemente elogiados pela mais liberal imprensa americana, premiados pelas mais catedráticas criaturas, estes textos a custo escondem o martelo que tantas vezes na academia faz as vezes de caneta. Os cursos de escrita criativa, os workshops, as palestras nas livrarias, nos colleges e o marketing descarado não evitam o desaparecimento do leitor num sonolento oceano de mecanizadas fórmulas literárias, disfarçadas de criatividade, composto por peixes Kushner, Eggers, Egan, Smith, entre tantos outros génios contemporâneos que, felizmente, a eternidade esquecerá. 

Um dos infortúnios trazidos às nossas vidas ocidentais pelos não-lugares, como lhes chamou Marc Augé,  foi a transformação do nosso mundo num vasto centro comercial ou loja de souvenirs, que tanto existe em Paris como em Lisboa ou na Califórnia. Seguimos a regra do Burger King e temos aeroportos, restaurantes, livrarias e livros iguais em toda a parte. Na Bertrand, na Barnes & Noble ou na Strand, os livros cheiram a novo, a limpo. Vislumbramos os 50 exemplares do mesmo livro empilhados como bananas à espera de expositor, os postais da cidade, os gadgets, os moleskines, os quadros, as frases catchy, e tantas outras bodegas que confundem uma livraria com um supermercado ou com um Starbucks. E embora não sejam lugares físicos, encaro muitos dos livros que leio como espaços banais, comparáveis a uma cadeia de hambúrgueres, insossos, entediantes, frágeis para quem não faz parte daquela esfera literária que se auto-engrandece sem medir a fraca qualidade do que premeia. 

Os génios têm culpa. Por cada Beckett teremos mil pequenos nonsensical writers. Por cada Lobo Antunes teremos mil sofredores de tasca. Por cada David Foster Wallace, um académico genial, capaz de nos deixar a sofrer por lagostas ou de compilar informação de lista telefónica nas mesmas páginas  em que descrevia a infelicidade de gente à procura de uma fuga da existência, teremos mil Daves e Kates a moer-nos o juízo. O legado dos grandes criadores não é apenas a genialidade - é uma multidão de seguidores que frequentou a universidade, que se entreteve com workshops, com mestrados de escrita criativa, com teorias que afastam a literatura daquilo que foi com Faulkner ou Hemingway ou Henry Miller ou Proust - uma literatura que não dependia de qualquer estrutura, de qualquer método ou Ted Talk. Assim, depois da existência de génios como Wallace, ficam as gerações de meninos encantados com a multidisciplinaridade, com o urbano, com o ser tudo, com as grandes questões filosóficas e artísticas - meninos que ao abraçarem tudo prescindem da maturação, da reflexão e de um ligeiro, talvez enorme, sofrimento que rouba fama e tempo, mas que acrescenta qualidade e profundidade ao que se escreve. 

"Arthur Rimbaud in New York (Coney Island)" / Estate of David Wojnarowicz. "

"Arthur Rimbaud in New York (Coney Island)" / Estate of David Wojnarowicz. "

Entre mim e o mundo

Tu existes. Tu Importas. Tu tens valor. Tens todo o direito de usar um gorro, de ouvir música tão alta quanto quiseres. Tens todo o direito de seres tu. E ninguém deverá impedir-te de seres tu. Tens de ser tu. E nunca podes ter medo de seres tu.

Visto o vídeo e lida a citação, peguem nos auriculares e carreguem no play.

Esta lista será a vossa companhia ideal para a leitura do livro e, caso decidam arriscar, a leitura deste pequeno apontamento sobre uma das grandes obras literárias dos anos mais recentes.

 

Imaginem nascer e crescer num país onde sabiam à partida, pelo vosso mais básico instinto e por toda a cultura que vos rodeava, que o tom de pele seria decisivo para a vossa sobrevivência ou a vossa morte. Foi nessa realidade que Ta-Nahisi Coates cresceu e tomou nas mãos o seu destino, recusando render-se às evidências que o apontavam como apenas mais um na estatística.

Escritor, jornalista, professor, escreveu Entre Mim e o Mundo (Ítaca, 2016) para tentar explicar ao filho adolescente o que significa ser negro nos EUA de hoje. A resposta não é fácil, feliz ou maniqueísta, separando o Mal e o Bem com a facilidade irresponsável do cinema americano que vende bilhetes.

Ser negro nos EUA é um perigo de morte e ele sentiu-o por diversas ocasiões, inclusivé na presença do filho.

Digo-te agora que a questão de saber como se deve viver dentro de um corpo negro (...) é a questão da minha vida, e descobri que a busca incitada por esta questão em última instância se responde a si mesma.
Quando aceitei tanto o caos da história como o facto do meu fim total, vi-me livre para finalmente considerar como querida viver – em particular como viver livremente neste corpo negro. É uma questão profunda, pois a América vê-se como obra de Deus, mas o corpo negro é a prova mais clara de que a América é obra dos homens.” “A questão não tem resposta, o que não a torna fútil. A maior recompensa desta interrogação constante, do confronto com a brutalidade do meu país, consiste em ter-me libertado de fantasmas e em ter-me fortalecido contra o terror puro da perda do corpo.

Empatia. O ingrediente secreto das vidas e das literaturas que contam. Sobrevalorizada ou essencial à sobrevivência? Será ainda relevante na sociedade de hoje, sustentada por uma rede de relações artificialmente mediadas? E perante a sua ausência, valerá a pena sustentar as mentiras tantas vezes ditas, até que se tornem verdade? Valerá a pena continuar a lutar, pacifica e resilientemente, esperando que cesse a injustiça e o ataque ao que de mais fundamental existe na condição humana?

A resposta cabal de Ta-Nahisi Coates é N Ã O.

Natural da Baltimore escalpelizada na seminal série The Wire, o escritor serve-se da sua obra, súmula de registo biográfico e diarístico, a espaços jornalístico e intimista, para detalhar a origem desta dissidência face ao discurso conciliador, de resistência pacífica, preconizado por Martin Luther King, e a preferência pelo contemporâneo e iconoclasta Malcolm X.

A sua argumentação tem por base a sua existência, no que acaba por se traduzir num inortodoxo bildungsroman.

Seguindo a herança familiar que lhe foi inculcada por pais e avós, a descoberta e fortalecimento das suas bases identitárias e mundividência é feita através do questionamento constante.

Desde cedo, percebe que a formulação das perguntas e o caminho para o seu esclarecimento são infinitamente mais importantes e formativas do que as respostas. A sua evolução e dialéctica com o Mundo são sempre precedidas ou complementadas por este artifício, com as perguntas a crescerem em abrangência e profundidade, em paralelo com o seu auto e heteroconhecimento.

Parecia-me agora essencial interrogar incessantemente as histórias que as escolas nos contavam. (...) Levei estas perguntas ao meu pai, que quase sempre se recusava a dar uma resposta e em vez disso me sugeria mais livros. A minha mãe e o meu pai estavam sempre a afastar-nos de respostas em segunda mão – mesmo daquelas em que eles próprios acreditavam. Não sei se alguma vez encontrei respostas minhas que fossem satisfatórias. Mas, de cada vez que as formulo, a pergunta torna-se mais refinada.

Com uma infância e juventude presa entre as ruas e a escola, nunca confiou no formato institucional da educação que lhe era disponibilizada, nem quando chegou ao ensino superior na Universidade de Howard (a sua amada Meca) onde, apesar de ter encontrado uma casa, escapava às aulas para se perder na biblioteca e estudar aquilo que mais lhe interessava.

Comecei a ver as ruas e as escolas como armas do mesmo monstro. Umas estavam investidas com o poder oficial do Estado, ao passo que as outras tinham a sua sanção implícita. Mas as armas de umas e de outras eram o medo e a violência. Falha nas ruas e os gangues apanhar-te-ão quando deres um passo em falso e reclamarão o teu corpo. Falha nas escolas e serás suspenso e enviado de volta para essas mesmas ruas, onde o teu corpo será reclamado

A natureza profundamente pessimista (realista, dirão alguns), contenciosa e insatisfeita do seu discurso narrativo, paradoxalmente transforma “Entre Mim e o Mundo” numa obra de improvável cariz filosófico, no sentido mais clássico do conceito. A maiêutica que Sócrates cunhou e Platão eternizou na palavra escrita, surgem aqui como fundamentais.

A digressão dialógica e argumentativa em forma de questionamento, sem dar a resposta cabal ao problema inicialmente formulado, supera-o e por vezes subverte-o, convertendo-o em mero pretexto para debater o que de essencial oculta a sua particularidade.

Embora “Entre Mim e o Mundo” seja uma longa carta ao seu amado filho, poderia facilmente transformar-se num diálogo, sem que o sentido da obra se perdesse.

O seu eixo central é a identidade.

Mais de seis décadas depois de Ralph Ellison (com o fantástico Invisible Man) ter desbravado o caminho para que a negritude nos EUA fosse problematizada com a merecida elevação, Ta-Nehisi Coates torna todo este percurso mais pessoal e pungente, perante o retrocesso a que os direitos dos negros americanos, tão arduamente conquistados desde os anos 60 do século passado, têm sofrido nos últimos anos.

Com o nascimento do seu filho Samori, momento em que a vida deixou de ser só “sua”, a urgência e o inevitável temor pelo perecimento do seu corpo e dos seus amados torna-se ainda mais premente. Por toda a obra, relembra-nos que todo o discurso é vão perante a imponderabilidade do momento ou local errado, do gesto irreflectido, da palavra descuidada.

Com o leitor estabelece-se uma proximidade cúmplice, como se assistissemos, por um vidro baço que nos oculta, à história de Ta-Nehisi e, por intermédio da sua escrita, vislumbrassemos desassombradamente o que significa ser negro nos EUA de hoje.

Contudo, o principal destinatário (e simultaneamente cenário e objecto de análise) é a federação dos EUA, com o seu tão contraditório e eternamente adiado “Sonho” excepcionalista da “city upon a hill”, que propositadamente exclui os negros e os expõe ao perigo constante, apesar de deles se ter servido como combustível para o seu próprio progresso.

Toda a minha vida assisti a esse sonho. É um sonho de casas perfeitas e relvados prazenteiros. (...) E por muito tempo quis escapar para dentro do Sonho, (...) Mas essa possibilidade nunca existiu, por que o Sonho assenta nas nossas costas (...) é feito com os nossos corpos.
Pouquíssimos americanos proclamarão directamente que os negros devem ser entregues às ruas. Mas um grande número de americanos fará tudo ao seu alcance para preservar o Sonho. Ninguém proclamará directamente que as escoals foram concebidas para santificar o fracasso e a destruição. Mas um grande número de educadores falou de «responsabilidade pessoal» num país criado e sustentado por uma irresponsabilidade criminosa. O porpósito desta linguagem de «intenção» e «responsabilidade pessoal» é o de garantir uma vasta exoneração.
No início da Guerra Civil, os nossos corpos roubados valiam quatro mil milhões de dólares, mais do que toda a indústria americana, todas as ferrovias, oficinas e fábricas americanas combinadas, e a principal mercadoria que os nossos corpos roubados produziam, o algodão, era a principalexportação da América.(...)É este o motivo da grande guerra. Não é segredo.

Sobre cada trecho pesa o temor, como se todas as páginas fossem irrelevantes perante uma força que cada negro norte-americano reconhece como extrínseca à sua vontade e intrínseca à sua condição e, como tal, irremediável e inamovível, embora não necessariamente indestrutível ou irreformável.

O tom do discurso é duro e intrangisente, mas sempre a coerente e realista, escapando aos estereótipos linguísticos e sociológicos.

Concomitantemente ao seu próprio desenvolvimento enquanto homem e cidadão, assistimos à maturação da sua mente, aos desafios colocados ao seu auto-conhecimento.

"How long?Not long, because the arc of the moral universe is long, but it bends toward justice."Assim discursava MLK, em Montgomery, Alabama, depois de terminada a marcha desde Selma a 25 de MArço de 1965, que teve como consequência a extensão do direito de voto aos negros nesse mesmo ano.[i]

Mas o medo, décadas depois, mantém-se intenso, entorpecedor e constante, em casa e fora dela. A música e a moda, presentes em qualquer esquina de Baltimore, “a sua armadura contra o mundo”, eram um refúgio, reclamando intensamente essa identidade, corpo e mente, para largos milhares de almas que se viam esbulhados desses e de outros traços essenciais.

A Morte inescapável,eternamente presente e passada, surge nos lugares vazios à mesa ou nos retratos recentes cujos gestos e sorrisos se dissolvem em espectros.

“Ou lhe bato eu ou lhe bate a polícia”, dizia o pai. A violência era o baptismo para o Mundo no seio familiar, como um rito de passagem e preparação para a possibilidade iminente da perda do corpo.

Na leitura, Ta-Nehisi encontra o refúgio para este cerco em que se tornara a sua vida.

Lia vorazmente porque os livros eram a luz que espreitava pelas frinchas da porta, e para lá dessa porta talvez existisse um outro mundo, um mundo que estivesse para lá do medo paralisante que sustenta o Sonho.

Encontra em Malcolm X o pragamatismo ausente de todos os escritos que lhe haviam passado pelas mãos. Pelo seu exemplo de honestidade e liberdade, no discurso e na conduta, sentiu ser possivel escapar à prisão de uma herança quase inexpugnável.

A “Meca – ponto de encontro da diáspora negra”, a Universidade de Howard, fez o resto do trabalho. Com o seu poder inclusivo, um corpo discente e docente de eleição e um campus borbulhante de novidade e diversidade, Coates “via agora que o mundo era mais do que um simples negativo das pessoas que acreditam serem brancas. (...) no nosso corpo político segregado, éramos cosmopolitas. A diáspora negra não era apenas o nosso mundo, mas, de tantas maneiras diferentes, o próprio mundo ocidental.”

A negritude ganha nova dignidade nestes anos de estudo profundo e revelações impactantes.

Descobre a poesia como depuração dos pensamentos até que “sobrassem apenas as verdades frias, aceradas da vida”, a discórdia como verdadeiro poder e forma última de auto-análise, o Amor e a genuína tolerância, como derradeira libertação e redenção.

Com a paternidade e o casamento, depois de deixar Howard sem concluír a licenciatura, a transformação é irreversível. Ao filho, deixa as passagens mais belas do livro.

A verdade é que te devo tudo o que tenho. Antes de ti tinha as minhas perguntas, mas em jogo estava apenas a minha pele (...) Mas um facto simples centrou-me e domesticou-me: se eu caísse agora não cairia sozinho.” “Havia um antes e um depois de ti, e neste depois tu eras o Deus que nunca tive.

Anos depois, descobre por acaso a morte de um amigo da faculdade – Prince Carmen Jones – perseguido por vários estados por um policia à paisana, para depois ser assassinado, com tirosde caçadeira à queima-roupa, a curta distância da casa da namorada que pretendia visitar, supostamente por semelhanças com um suspeito.

A próposito desta morte sem sentido de um pai, amado e respeitado por pares, amigos e familiares, Ta-Nehisi discorre sobre o sistema policial e judicial viciado e corrompido que permite tamanhas arbitrariedades. Insurge-se, comove-se e, como sempre, verte na escrita e no trabalho jornalístico a raiva que o invade.

Prince não fora assassinado por um agente isolado, mas sim assassinado pelo seu país e por todos os medos que o marcaram desde o seu nascimento.” “ A verdade é que a polícia reflete a América em toda a sua vontade e medo, e o que quer que pensemos acerca da política de justiça criminal deste país, não se pode dizer que ela tenha sido imposta por uma minoria repressiva. Os abusos (...) são o produto da vontade democrática.

Com este episódio e a descoberta de Paris, o americano abraça a tranquilidade do anonimato na capital francesa e é para lá que se muda, para uma nova vida familiar e pacata.

O livro termina com um fugaz “momento de alegria”, uma festa em que Ta-Nehisi regressa a Howard e se deixa dissolver numa efusão de corpos e ritmos, encontrando uma ponte para um património comum, independentemente da côr, género, orientação sexual ou política.

A ameaça ao corpo negro é real e constante, profusamente documentada e comprovada. Contra ela, não há escalada, aviso ou prevenção possivel.

Para manter a sanidade, o equilibrio e, em última instância, a vida, a solução possível de Ta-Nehisi foi a escrita, a proximidade com as pessoas por via do jornalismo e o questionamento como caminho e terapêutica.

A sua religião pessoal, que prega a quem o quiser escutar, é a recusa da perpetuidade da retórica excepcionalista enraízada no sistema politico norte-americano, e do pacifismo desde sempre associado aos movimentos dos direitos civis de MLK e dos seus discípulos: vazio, elíptico, em que a condição do negro é de paciente espera por dias melhores e o arco da História se verga para lugar nenhum.

Não vai haver um melhor amanhã e já não basta dar um murro na mesa. É necessário derrubá-la e reconstrui-la, para qur todos tenham lugares equiparados na grande família humana.

O caminho implica inteligência e tenacidade, conhecimento profundo da condição do negro contemporâneo, vigilância (adaptando o sentido bíblico do “vigiai” de Mateus, aqui para escapar à tentação de seguir os impulsos mais primários da violência e da vingança) e intervenção social e cívica.

Nesta última vertente, como em tantas outras, o livro e o seu autor têm sido exemplares.

Com a vitória na categoria de não-ficção dos National Book Awards de 2015 e a concessão da MacCarthur Grant (uma bolsa de 625.000 dólares, distribuida por 5 anos, sem qualquer contra partida, atribuida a personalidades que se destacam no panorama cultural desse ano, também chamada “genious grant” ou “bolsa para génios”), Ta-Nehisi contribuiu deveras para uma já adiada reapreciação da literatura negra.

Os candidatos e vencedores que se seguiram nos prémios literários anglo-saxónicos mais destacados, têm incluído sempre um ou mais escritores negros, contribuindo assim para uma maior representatividade nos palmarés e, consequentemente, nas vendas e na projecção mundial das respectivas obras. Os exemplos são já numerosos, mas destaca-se a vitória do inovador “A Brief History of Seven Kilings” do jamaicano Marlon James, ainda indisponível em português, no Booker Prize de 2015.

Entretanto, Ta-Nehisi Coates foi convidado a ressuscistar uma personagem esquecida da Marvel, um super-herói negro com o sugestivo nome de Black Panther, publicada com grande sucesso de crítica e de vendas, batendo recordes de décadas. 

A frase é batida, mas o caminho faz-se mesmo caminhando. Ta-Nehisi deu um passo de gigante com a sua obra prima e a nós, comuns mortais, resta-nos lê-la e partilhá-la, sucumbindo ao poder singular que a literatura desta estirpe possui de nos tornar parte de uma dissonância estranhamente harmoniosa de vozes, projectadas para um futuro desconhecido, que ansiamos livre e tolerante.

[i] A citação completa é de Theodore Parker (1810–1860), pastor reformista branco do Massachusetts e rezava assim: “I do not pretend to understand the moral universe; the arc is a long one, my eye reaches but little ways; I cannot calculate the curve and complete the figure by the experience of sight; I can divine it by conscience. And from what I see I am sure it bends towards justice."

 

Lourdes Castro: dar a ver o enigma

Lourdes Castro, Odalisque  d'après Ingres (1964)

Num testemunho intitulado Sombras Projectadas e Contornos, Lourdes Castro diz-nos o seguinte:

“A sombra ainda é palpável. O contorno já não é. (…) [o contorno] é, creio, um novo olhar sobre o que me rodeia. 
A sombra projectada como contorno interessa-me muito mais do que a sua simples representação. Porque o contorno da sombra é ainda mais fantasmático, fugitivo, ainda mais ausente. (…) Enquanto um contorno é qualquer coisa que foi feita com a presença da sombra, mas que dela se liberta. O contorno sugere ausência, verdadeira e absolutamente. E, para mim, é ir ainda mais longe. O contorno é o Menos que posso ter de alguma coisa, de alguém, conservando as suas características.” (p. 41)

A ênfase posta no contorno mostra um importante tópico de problematização. Desde logo, o contorno não se confunde com a sombra, mas também não se revela como intenção que postule alienação ou transcendência; não sendo também marca de qualquer polarização, o contorno será o entre a total dependência que elide a diferença e a ingénua tentativa de rompimento com o referencial.

Ora, a presença do contorno faz sentir-se aqui em primeira instância no e com a visão – o tal “novo olhar sobre o que me rodeia”. Permanência no mundo, o contorno não equivalerá à circunferência, ou seja, ao limite que elide a aproximação, mas sim ao acentuar das possibilidades de (re)conhecimento. 

Porém, seria talvez precipitado encarar a visão como sentido único, ou sequer privilegiado, no que tange a prossecução do entendimento – além de que “olhar” e “ver” não se anulam. Do que se trata é da articulação de um caminho, a saber, a visão que se relaciona com “o que me rodeia”, com a “ausência” e com “o Menos”; e nenhum destes movimentos se sobrepõe aos demais. O contorno acrescenta: “é ainda mais” e “ é ir ainda mais longe”; ou talvez possamos dizer que nesta obra, o contorno é a instância que, longe de um poder judicativo, instaura o aproximar-distanciar.

Com efeito, o que “rodeia” poder-se-á materializar no tipo de espacialização que (se) disponibiliza; a “ausência” não redundará na incomunicabilidade, antes consistindo na abordagem que des-constrói o sujeito; finalmente, “o Menos” inaugura e abre. Heidegger, nomeadamente no ensaio A Origem da Obra de Arte, apresenta algumas conexões originais que se prestam a interessantes pontos de contacto com o que vamos dizendo.

Partindo da agressão (racional) relativamente à “Stimmung”, que no ensaio surge traduzida por “impressão ou disposição afectiva” (p. 18) - e note-se porventura o eco kantiano da “algemeine stimme” contida na Crítica da Faculdade do Juízo -, Heidegger diz-nos que o “aparecer das coisas” (p. 19), i.e., a sua “consistência”, deve muito à forma “como contorno” que é a tradução da “especificação” e do “entrelaçamento de forma e matéria” (p.  21). Aí, “contorno” ancora-se em larga medida no caminho que o filósofo trilha, o qual se insere na “coisidade da coisa”: a ideia de “contorno”, juntamente com a de “utensílio” ou “produto”, pretendem desvelar, em primeira linha, o teor misto da obra-de-arte como “espontaneidade” e “fabrico”. Daí decorre que o contorno em Lourdes Castro se associe mais intimamente com um outro conceito heideggeriano: “Esta fenda abarca e mantém em conjunto na sua separação (…) o traço-fenda é o conjunto unificante de sulcos do esboço e do traçado fundamental, do rasgão e do contorno” (p. 66). O traçar-fenda, o “traço-fenda”, consubstancializa, assim, um modo possível de inscrição que foge ao lugar-comum e ao “habitual”: é a “clareia” e o “encobrimento” que a obra-de-arte projecta, é um co-povoar. 

O contorno em Lourdes Castro e o traço-fenda em Heidegger não sequestram, antes convidam a instaurar, precisamente porque contrariam a dominação da resposta que se pretende definitiva. O que Heidegger veio a cunhar de “habitar poético”, e de arte como “ditado poético”, serão abordagens à finitude do homem, ao “ser-para-a-morte” que salvaguarda o “mistério” e que, por isso, não poderá cessar de questionar o como do aí-ser de e em cada um de nós. “Ver o enigma” (p. 85) é a resposta que o filósofo dá à pergunta “Em que medida arte” (p. 58): haverá arte se e quando o ser rejeitar a elipse para a qual a excessiva subjectividade pode resvalar, optando – ou tomando para si – o “círculo” que, para Heidegger, abre o indivíduo ao estar-no-mundo poiético. 

Também Lourdes Castro vê o enigma e toma para si o confronto com as forças de dissipação inerentes à vida; ser capaz de atingir a “ausência” é o “Menos”, a saber, o vestígio, e não o esquecimento. É que o contorno “conserva”, ou seja, vivifica, e o retratar feito pela artista não copia, antes celebra a identidade. Essa espécie de concentração, leia-se, o esforço de procura do húmus que desencadeia e apreende, joga concretamente com o visível, ou melhor, com o habitualmente visível – o retrato. 

Todavia, Lourdes Castro controverte o jogo: deseja o in-habitualmente visível, graças à sombra e especialmente ao contorno; atribui consistência, ou seja, dá a ver. O “entre” será o que Heidegger designa de “clarear e pôr-a-coberto” (p. 39), que na artista passa pelo clarear para pôr-a-coberto. O contorno participa no assinalar daquela relação entre os entes quese caracteriza pela comunhão atenta e que desapossa, porque como diz Lourdes Castro: “Alguns têm a mesma idade, mas nenhum tem o mesmo coração” (p. 47).