O silêncio de João da Ega e o cão de Cesariny, ou sobre como a literatura portuguesa me arruinou a vida

Para os amigos muito amados:
C., na tristeza da sua grande paixão, para que
não se esqueça de segurar a beleza.

E para o Pedro, que nunca escreveria
este texto porque ama demasiado Ricardo Reis.

André Kertész, universidade de Long Island, Nova Iorque, 1963

A tristeza, o modo como ela funciona, é transparente e simples, cru como uma cor básica, como branco ou negro, ou como pornografia. Não admite nuance, é uma forma muito particular (e talvez mecânica) de monotonia. A tristeza eu aprendi-a na escola, nas aulas de literatura portuguesa. Já era, é certo, minha e já estava ao meu redor, mas a literatura portuguesa tornou-a visível e inescapável com a leitura de Os Maias de Eça de Queirós. Vinha no currículo, vinha nos excertos escolhidos a dedo nos manuais, e era obrigatória, começava no princípio do 12o ano com Antero de Quental e não parava até nos livrarmos de Ricardo Reis. Não foi com a tragédia grega que aprendi a tristeza. Não há tristeza como fim em si próprio na tragédia grega e, já agora, importa clarificar que, tanto quanto eu o entendo, também não há destino, no sentido em que ele não é pré-determinado e no sentido em que as personagens da tragédia são responsáveis pelas suas escolhas. Não foi com os gregos que aprendi a tristeza. Aliás, desaprendi-a, porque para eles a tristeza é uma necessidade, anankê, que existe como a fome, pede resposta e desenlace, ela pode destruir o mundo, mas, na economia da épica e da tragédia, ela resolve-se ao tocar as suas consequências. Há uma crença nos gestos, no que pode ser feito, que no fundo anula o determinismo. Os gregos vivem o seu destino, com a sua responsabilidade, não são vítimas dele. Por isso, os gregos ensinaram-me, se não como curar a tristeza, pelo menos como me defender dela. A sua extraordinária individualidade, mal resolvida ao longo de todo o período arcaico, que é uma corrente de energia partilhada por uma sucessão de vozes muito fundas, sem tempo histórico porque são mitologia, e profundamente habitáveis (que é no fundo o que a poesia é), de todo o período clássico, por boa parte da comédia nova, essa individualidade que é nitidamente reinventada no período helenístico, até chegarmos ao último dos poetas de Alexandria, que para mim é o romano Catulo, nascido em Verona algures entre 87 e 84 a.C., às suas líricas feitas de auto-paródia, desespero erótico e lucidez, de profunda desconfiança da mediocridade que o rodeava e que no fundo começava por ele, não é forma nenhuma de tristeza para mim. Não é. De Catulo é a errância e o desassossego precursor dos poetas beatnik americanos, que não se confunde de modo nenhum com a tristeza cósmica e atmosférica daquele ajudante de guarda-livros que muitos séculos mais tarde viria a cantar de tristeza, mesmo quando essa tristeza era nele paródia, na cidade de Lisboa. A tristeza de Catulo não é a de Bernardo Soares. Bernardo Soares, no fundo, é discípulo não de Homero, o poeta que ele diz, cerca de 23 de Março de 1930, que gostaria de ser ao luar, mas de Carlos Eduardo da Maia.

A minha tristeza, então, quando é em mim irresolúvel, quando está comigo e é inexplicável, é sem dúvida produto de a ter lido nos bancos da escola enquanto lia Os Maias, sublinhada por Bernardo Soares e confirmada como inescapável modo de existir, não de viver, naquela cena final de um romance publicado pouco menos de um século mais tarde que o romance de Eça, Os Cus de Judas de António Lobo Antunes, naquela visita do narrador às tias que, olhando o sobrinho, regressado da guerra colonial, lhe dizem que nem ela chegou para fazer dele um homem. Aquelas tias são as tias de todos nós, e são, no fundo, uma variação sobre a conclusão fundamental a que chega João da Ega naquela única cena que era fundamental aprendermos para a papaguearmos sombriamente no exame nacional, esse ritual de passagem que nos permitira entrar na faculdade e começar a nossa vida adulta. Cumprimos esse ritual com aquela sentença de Ega em que ele conclui “falhámos a vida, menino,” antes de ele e Carlos da Maia, de seguida, quase de certeza, perderem o americano. Mas não se confundem com as parcas, aquelas tias de António Lobo Antunes, não podem cortar o fio vital da vida, elas existem para confirmar e prolongar a tristeza. E é tristeza porque essa concretização do percurso do narrador de Os Cus de Judas se torna explícita, naquela cena, como determinismo, não por ser tristeza, mas porque deriva dessa cena final de Os Maias, pertence à mesma tradição.

A tristeza, que não é o mesmo que depressão, pode ter uma função vital que tem a ver com empatia, é talvez aquela coisa que no Soneto V faz Garcilaso de La Vega dizer com uma lucidez alucinada de uma forma de não aceitar a pena que é litigação, maneira de combate, mi alma os ha cortado a su medida. Não é por nada que Madrid tem uma Plaza Mayor e nós um Terreiro do Paço, uma dá exactamente para aquilo que a rodeia e o outro para o amplo vazio. A tristeza talvez contenha na lucidez que lhe é própria o mecanismo da sua própria rejeição, mas apenas quando nenhum destes dois elementos é um vício absurdo, um indestrutível remorso que não poupa nem perdoa nada nem ninguém. A condição da tristeza de Carlos Eduardo da Maia pode até confundir-se com a de Édipo, mas não é a de Édipo. Édipo, segundo Sófocles, não foge para Paris, não passa as suas manhãs cheio de tédio e tristeza a conduzir pelo Bois: cega-se, vai para Colono, morre entre os atenienses a amaldiçoar os tebanos, e Creonte também não é nenhum Eusebiozinho, no fundo, uma figura central para entender o tipo de tristeza que está em causa em Eça.

Na escola, li Os Maias de cabo a rabo sem que ninguém tivesse tido em momento nenhum a decência, a gentileza e a lucidez de pronunciar a palavra tristeza. Aliás, essa tristeza é persistente, é em tristeza que acaba a cega paixão que une Pedro e Maria Monforte, é de tristeza que morre Afonso da Maia, e é uma pesada tristeza a companheira de fuga de Carlos Eduardo. É companheira de fuga, não é vista como forma de resposta. E isso é porque a tristeza, em Os Maias, é cobarde. Não era de Eça a tristeza, também, mas ele materializou-a e canonizou-a quase como génese da nossa modernidade toda, não apenas da literária, na mistura de misoginia e cobardia moral que é a trajectória, pré-determinada, dos homens da família Maia, e que já vinha de trás, começa em As Folhas Caídas, é uma misoginia do olhar, mulher enquanto paisagem e queda. Criticou-a, e bem, acho, Paola d’Agostino na sua reescrita inquieta de Os Maias a partir da perspectiva de Tancredo e Maria Monforte, em Tancredi, o Napolitano, no extraordinário relance de um olhar, mais do que italiano, napolitano (a partir do contexto do ressurgimento italiano) sobre a Lisboa e a intriga do romance de Eça. E Eça até pode ter aprendido o que havia a saber sobre determinismo com Zola e com Flaubert, com Madame Bovary, até porque é mais ou menos a trajectória de Flaubert aquela que Eça imita, no percurso que vai de Bovary/Maria Eduarda a Salammbô/ Gonçalo Mendes Ramires, e certo é que Os Maias podem ser uma crítica a esse determinismo, mas reiteram-no, a voz de Ega, quando dissonante, não convence, é a voz de um sofista. Aliás, o seu carácter e o de Carlos Eduardo da Maia emergem em estado bruto numa das últimas frases que Carlos pronuncia “Sobretudo, não ter apetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.” Ao que o narrador acrescenta “Ega, em suma, concordava.”

É a concordância de Ega, claro, o que aqui me perturba. Então e o estômago, de que, segundo ele próprio na página anterior, tudo depende? Mas como assim, João da Ega? O que aconteceu a não ter apetites? Não o estômago que espera jantar o paiozinho que Carlos Eduardo da Maia queria muito ver cozinhado para o jantar no dia daquele encontro com Ega e sobre o qual vai murmurando inanidades enquanto os dois amigos procuram uma tipoia, Carlos afinal sem apetites e receoso de contrariedades, mas morto de fome. Não é o estômago de Carlos Eduardo que aqui me importa. Esse demonstra simplesmente o que já sabíamos, que a vida é demasiado longa para ser trágica, que a fome e a humanidade têm um elo irracional chamado sobrevivência, e que essa é, muitas vezes, o lado indómito da natureza que se perpetua e se recicla enquanto ruína – mas em Os Maias essa reciclagem não é reinvenção, é convalescença, um pretexto para sancionar a akrasia em que ambos caíram e que pelo menos Carlos Eduardo confunde, hipócrita e cobardemente, a meu ver, com uma estoica ataraxia. O fatalismo muçulmano que ele diz ser a solução para o romantismo do qual nem ele nem Ega conseguem escapar, sendo que ambos reconhecem que os que se dirigem apenas pela razão não vivem, é justamente uma variação viciada dessa busca de racionalidade, desse modelo inatingível que não conseguem deixar para trás e que vai contra a sua natureza. Sabe alguma coisa sobre isso João da Ega, mas ele não diz a Carlos Eduardo da Maia o que era preciso dizer ao intuir isso, e torna-se então um mau amigo, com uma má consciência. Porque Ega não é Carlos Eduardo da Maia, não é o homem quebrado que não regressa de um erro trágico que o destrói, Ega vê, como Carlos não pode ver, aquilo que não diz a Carlos. Quando Carlos nota que vivera apenas dois anos no Ramalhete mas parecia ter lá “metida a vida inteira,” Ega chega explicitamente à conclusão que isso assim parecia a Carlos porque era o momento da sua vida em que ele tinha vivido com paixão. E este é um pensamento por onde, com um pouco mais de distância, com um pouco menos de sentimento romântico trágico, perpassaria uma necessária intuição dionisíaca, pela qual talvez ambos pudessem escapar tanto a um sentimentalismo romântico como a uma excessiva racionalidade: um impulso dionisíaco que é necessário, vital e que na verdade é até uma alegria que aqueles dois amigos em certo sentido partilham na capacidade que ainda têm de se encontrar. Mas é um pensamento que não sai da boca de Ega. E permanece não dito, como quase tudo em redor de Carlos depois de se revelar quem é Maria Eduarda, incluindo a degradação do seu carácter, e torna-se anátema, mancha moral que, de resto, já vinha de trás, do carácter de Pedro.

E regressa, essa concordância, repetida numa acéfala tonalidade horaciana, em Ricardo Reis naqueles versos escritos, cerca de 1930, que em nada se confundem com o mundo de Horácio, com a música torrencial e generosa (não é uma raridade em Horácio, pertence ao mundo dos amigos, dos lupanares, mau grado a sua misoginia, do amor, do seu entendimento de Roma, da atração e repulsa que ele sente pelos aristocratas com quem se dá, é visível até na graxa medíocre que ele dá a Mecenas) do seu carpe diem, não se confunde, também, já agora com o mundo de Álvaro de Campos: “Quer pouco: terás tudo./Quer nada: serás livre.” São versos para preparar a morte, estes de Ricardo Reis, que pedem que se viva sem paixão, com uma enorme indiferença mesmo em relação àquilo que se possa amar, e, por isso, com uma enorme cobardia. É uma frase para aristocratas aborrecidos, que como sucede normalmente com aristocratas, acham que vivem sem qualquer privilégio, porque se esquecem deles, acham que não os têm porque sempre foram seus. É um mundo insustentável esse, no qual, no fundo, talvez se exista, mas onde não vive ninguém.

Para mim, ao escrever estes versos, importa dizê-lo, Ricardo Reis, vive não naquela pensão junto ao Tejo onde José Saramago o imaginou de regresso do Brasil, em O Ano da Morte de Ricardo Reis, mas na casa das tias na Rua Barata Salgueiro, em Os Cus de Judas. Ao pronunciar estes versos sei que ele está, sem dúvida, lá escondido, atrás da consola império de coxas tortas, onde repousam também as molduras dos defuntos generais portugueses.

É ao estômago em causa nessa cena que quero chegar, pois é também estômago o que está em causa no encontro do narrador com as tias em Os cus de Judas, na tal casa da Rua Barata Salgueiro, que é já jazigo e não casa, a que o narrador regressa depois de regressado da guerra. Vale a pena reproduzir aqui na íntegra o que se lê nessa cena: 

Instintivamente coloquei-me na atitude hirta e séria que se oferece aos fotógrafos de feira, examinando-nos por detrás das grossas lentes impiedosas das máquinas de tripé, ou em sentido, como quando cadete, em Mafra, perante o mau humor autoritário e crônico do capitão, a franzir-se de botas afastadas numa arrogância agourenta. Cheirava a cânfora, a naftalina e a mijo de siamês, e apeteceu-me veementemente sair dali para a Rua Alexandre Herculano, onde, pelo menos, se visionava, no alto, um bocadinho turvo de céu. Uma bengala de bambu formou um arabesco desdenhoso no ar saturado da sala, aproximou-se do meu peito, enterrou-se-me como um florete na camisa, e uma voz fraca, amortecida pela dentadura postiça, como que chegada de muito longe e muito alto, articulou, a raspar sílabas de madeira com a espátula de alumínio da língua:
— Estás mais magro. Sempre esperei que a tropa te tornasse um homem, mas contigo não há nada a fazer.
 E os retratos dos generais defuntos nas consolas aprovaram com feroz acordo a evidência desta desgraça.
 Não, não, siga sempre em frente, vire na primeira à direita, na segunda à direita a seguir, e como quem não quer a coisa está na Praceta do Areeiro. A salvo. Eu? Fico ainda mais um bocado por aqui. Vou despejar os cinzeiros, lavar os copos, dar um arranjo à sala, olhar o rio. Talvez volte para a cama desfeito, puxe os lençóis para cima e feche os olhos. Nunca se sabe, não é? Mas pode bem acontecer que a tia Teresa me visite.

Esta praça do Areeiro, no fundo, é análoga, mas bem diferente de outra. Está unida, é irmã da praça onde se demorou o outro grande discípulo europeu de Louis-Ferdinand Céline e do seu Voyage au bout de la nuit, o Patrick Modiano de outra trilogia sobre uma guerra (a Segunda Guerra), La Place de L’Étoile. Quase exactamente contemporâneos (Lobo Antunes e Modiano, não os seus protagonistas), o narrador de Lobo Antunes, tal como o de La Place de L´Étoile, Raphael Schlemilovitch, é perseguido pela memória da guerra, mas Raphael Schemilovitch, que é vítima e agressor ao mesmo tempo, ao contrário do narrador de Lobo Antunes, sabe que não há complacência a ter com o modelo, sabe que nada no anti-semitismo de Louis-Ferdinand Céline se pode confundir com literatura e tem de ser visceral e violentamente parodiado, a partir de dentro. O interior do narrador de Os Cus de Judas é, no entanto, aquele que continuará perpetuamente a poder ser visitado por aquela tia Teresa que sabe, heteronormativamente pelo menos, o que é ser um homem, e sabe que nada fará dele um homem. E o que é um homem, o que é, afinal, uma pessoa? Não explode, o narrador de Lobo Antunes. Não responde a quem, ao contrário dele, na verdade não viu e não entende o que eram os homens, essa interminável geração de homens quebrados que desfilam por toda a trilogia de O conhecimento do Inferno, que em nada se parecem com os generais que estão nas fotografias. Mas não são as parcas, estas tias, são a velha autoridade bafienta de um outro ídolo, mais opressivo, que mais tarde, demasiado tarde, fora de romances, cairia finalmente da sua cadeira.

Onde há gente? Álvaro de Campos começa a conseguir chegar lá naquele “Poema em linha recta,” que principia com aquele verso absolutamente essencial, talvez património imaterial da humanidade em que diz “Nunca conheci quem tivesse levado porrada.” Este “Poema em Linha Recta,” desconfio eu, tem na sua sequência lógica, um certo poema daquele que mais parodiou Pessoa, Cesariny, aquele poema que começa com o verso “falta por aqui uma grande razão” e que continua: “uma razão/ que não seja só uma palavra/ ou um coração/ ou um meneio de cabeças após o regozijo/ ou um risco na mão/ ou um cão/ ou um braço para a história/ da imaginação” até chegar ao centro, que são aqueles versos: “faltas tu faltas tu/ falta que te completem/ ou destruam.”

Há uns anos, ao escrever sobre uma antologia de poemas de Mário Cesariny que retira o seu título deste poema, Uma Grande Razão, Gustavo Rubim notava:

Por muito que se queira reduzi-lo a filho, talvez dilecto, da famosa desenvoltura retórica de Álvaro de Campos, Cesariny inscreve na língua um acontecimento que nem Campos faria prever. A «grande razão» em falta é bem a marca de pertença ao mesmo mundo da modernidade onde as palavras dizem sobretudo o sentido que não encontram mas há, em Cesariny, uma torção afirmativa que liberta o poema da incessante glosa do confronto com o nada.

Talvez seja a partir desse poema de Álvaro de Campos que se explica porque é que eu acho que é em alguns poetas da segunda geração do modernismo e pós-modernistas que se dissipa o silêncio de João da Ega: entre outros, Sophia, Jorge de Sena, Mário Cesariny, Alexandre O’Neill, Herberto Helder, que seria o poeta que viria a escrever, dionisiacamente:

Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão? 

Em “Intercidades,” um poema de 2010 que se tem conservado ao longo das sucessivas reescritas de Mulher ao Mar, Margarida Vale de Gato escreveu: “eu fumo um cigarro entre duas paragens/ leio o Lobo Antunes e penso as pessoas são tristes...” É, em certo sentido, um poema sobre a busca e a nostalgia de um outro tempo, tempo “para sermos barcos à noite,” um modo de resistir ao silêncio condescendente e cúmplice da akrasia, à tristeza, àquilo que nos mata enquanto estamos vivos enfim. E a resposta ao silêncio de João da Ega é essa, não é outra. É a grande razão de Cesariny e a casa, o cão, os salões de um seu outro poema, “Julião os amadores,” cujo sentimento e paisagem emocional acaba por ser bastante análogo ao que se encontra no poema de Margarida Vale de Gato. Se a poesia é o lugar onde a linguagem vai para se estranhar a ela própria, como tão claramente se vê, enquanto projecto poético, por exemplo na poesia de outros poetas da geração de Margarida Vale de Gato, Rita Taborda Duarte, discípula ela de O’Neill e Luíza Neto Jorge, ou de Miguel-Manso, mais próximo de Cesariny e Ruy Belo, entre outros, o que está em causa parece-me ser justamente a formulação de Gustavo Rubim, na torção que ele identifica, “as palavras dizem o sentido que não encontram.” A primeira resposta à tristeza enquanto medo de viver, de amar, de arriscar, talvez seja mesmo a liberdade dionisíaca desse encontro estranho com algumas palavras que nos libertem dela.   

Londres, Luton,
26 de Outubro/
Lisboa, Algés
29 de Outubro de 2023

Café Filosófico, tradução e niilismo

Na sequência de um post publicado aqui sobre sobre tradução, vitimização e ressentimento, realizei um café filosófico, na livraria Snob, como sempre, no último sábado. Relativamente ao que escrevi na Enfermaria 6, acrescentei algum do pensamento de Paul Ricœur sobre o tema da tradução, que além de consolidar o de George Steiner traz a novidade de uma hospitalidade linguística, de uma ética da tradução que facilite o encontro entre estrangeiros, na maior parte dos casos entre o autor e o leitor. Depois procurei aplicar este princípio ao actual conflito do Médio Oriente, tentando perceber se estamos perante um incomensurável absoluto, ou não.

Errata: cometi pelo menos dois erros infantis: comecei por situar a Antígona de Sófocles no século XV, depois mudo para o século V, quando, como todos sabem, eu inclusive, que é do século V a.C. Há mais lapsos, imprecisões e falta de profundidade analítica e hermenêutica, sou humano, demasiado humano (e tenho horror à falsa modéstia).

Vitimização, ressentimento e tradução

 

I

Nunca o Planeta foi tão humanamente ruidoso, porque somos imensos e porque não conseguimos ficar em silêncio a pensar e a imaginar antes de agir. Parece que o ser humano se compraz em gritar, não isto ou aquilo, mas contra quem quer que não partilhe a sua opinião. Na guerra que está em curso no Médio Oriente, claro, mas também nas eleições polacas, na invasão da Ucrânia pela Rússia, no choque entre os grandes blocos geopolíticos dos USA e da China, no sentimento anti-imigrantes europeu e no anti-europeu africano, a norte como a sul do deserto do Sáara, nas igrejas políticas dos extremos, esquerda e direita... Vivemos num paroxismo de ódio e raiva, numa vertigem de vingança. Chegamos, como Nietzsche temia, a num niilismo que se alimenta de dois sentimentos (mistura de instinto e de socialização): ressentimento e vitimização. Daí que a fúria, directa ou vicariante, se tenha sobreposto à razão (a parte boa da razão apolínea). Daí que os argumentos sejam escrutinados pela bitola da superioridade moral mais do que pela da coerência interna ou consistência pragmática.

Parece-me, pois, que devemos de traduzir de outra forma os nossos desejos e emoções, traduzir também as nossas palavras interiores, as que se seguem imediatamente aos impulsos mais básicos e que tantas vezes nos empurram para a crueldade, para uma falha grosseira de empatia ou uma empatia selectiva. Trata-se de nos interpretarmos para preservarmos a nossa humanidade e a humanidade do outro (essencial para a nossa).  Mais do que gritar convicções, devemos de traduzi-las, interpretá-las e compreendê-las, talvez para as anular, antes de as lançar ao vento, que tantas vezes as vira contra nós. E àqueles que julgam que os problemas da injustiça se resolvem através da crueldade, é preciso dizer-lhes que nenhuma liberdade ou emancipação se ganhou alguma vez através da ignomínia. Que devemos sempre conduzir-nos como guardiões da humanidade, de uma humanidade partilhada.

Reativemos, pois, o bom ceticismo, sem cair na indiferença. Sejamos capazes, por exemplo, de condenar energicamente os assassinatos perpetrados pelo Hamas (contra israelitas e palestinianos divergentes da sua causa), mas questionar também o contexto geopolítico que não permite uma paz estável entre israelitas e palestinianos (parto do princípio de que o Médio Oriente está cevado por um mal que é banal, seguindo a interpretação de Hannah Arendt). Uma crítica equidistante à procura de uma paz perpétua.

Que tem isto que ver com o mundo da tradução? Senão tudo, pelo menos muita coisa. Se entendermos a tradução como está postulada em Depois de Babel de George Steiner: «a tradução está, formal e pragmaticamente, implícita em todo o acto de comunicação, na emissão e na recepção de todos os modos de sentido, tanto no sentido semiótico mais amplo como nas trocas mais especificamente verbais. Compreender é decifrar. Entender uma significação é traduzir.»[1] Resta, pois, perceber como entende Steiner a tradução, concordar ou não com ele é outra questão. Será essa a finalidade das próximas duas páginas, apresentando desde já uma constatação: não há traduções literais, nem de obras nem de impulsos ou instintos, só através de várias e irredutíveis circunvoluções chegamos a produzir um sentido de chegada que nunca é idêntico ao sentido de partida, seja o pré-reflexivo dos instintos seja o da obra original.

II

Regressei, por caminhos que se me impuseram mais do que escolhi, a Antígonas de George Steiner.[2] Costumo deixar um rasto no que leio, sobretudo quando são ensaios, porque receio perder as marcas de inteligência, interessa-me menos compor uma erudição, útil ou fútil. Foi, por isso, fácil encontrar o que julgava procurar (a leitura de Steiner sobre teoria da tragédia do jovem Friedrich Nietzsche) e surpreendente descobrir apontamentos sobre o problema da tradução que, entretanto, tinha esquecido (até porque a principal obra de Steiner acerca deste tema é Depois de Babel).

Há uns meses, em conversa com Marcos Foz, na livraria Snob, disse, acerca de uma tradução em concreto, que o tradutor quisera evidenciar uma mestria exagerada, que dessa forma já não sabia se leria o autor ou o tradutor, que preferia as traduções nas quais quase não se notava a presença do tradutor.

Na me recordo se Marcos Foz anuiu, creio que o enunciado não diluía a minha responsabilidade nem procurava argumentos que confirmassem ou infirmassem aquilo que dissera. Talvez por ter sido mais uma intuição do que uma reflexão. Uma daquelas boas fulgurações em que emerge, e nos submerge, um sentido que não esperávamos, verdade relâmpago.

Neste meu retorno (será eterno?) a Steiner, encontrei aquela mesma verdade envolta em argumentos (sempre mais sintéticos do que analíticos, neste pensador). E senti uma alegre-tristeza ao ver que não estava só (como o génio ou como o louco, talvez o génio-louco).[3] Será um pouco isto, creio, que se sentirá no mundo das ideias (não o de Platão, mas o imanente no qual vivem, com todos os esplendores e melancolias que se possam imaginar, os amigos dos conceitos e das metáforas). Plagiar involuntariamente dá-nos a medida da nossa comensurabilidade colectiva, de uma filogénese das ideias, dos limites, afinal estreitos, da genialidade. Genialidade que o romantismo oitocentista, obcecado pelo intempestivo e pelo sublime, compreendeu, talvez sem se aperceber da contradição, como dever de emancipação, fatalidade e liberdade (naquela época, os génios inventavam mundos investidos de um poder sobre-humano que verdadeiramente não lhes pertencia, emancipavam os homens impelidos por forças que se tinham apoderado deles. Faziam, assim, demasiadas rasantes à vertigem da loucura e não tinham coração para viver muitos anos, mas sabiam pairar sobre os abismos).

Hoje, não há génios, porque ninguém acredita neles (esquecemos a teologia das alturas rochosas), as nossas aventuras são modestas (porque indigentes, escrevemos manifestos sem dentes), apesar da bazófia do marketing. Um racionalismo plano, redondo e as vagas sucessivas do capitalismo (ui, afinal também sou anticapitalista) afogaram todas as possibilidades de grandeza (que seria sempre a de um semi-Ícaro, ou melhor, a de crentes em semi-Ícaros).

Fazemos, pois, pequenas coisas e vivemos muitos anos. Muitos anos com poucas ideias e seguros de vida caros. É talvez por isso que escolhemos um eterno retorno que rebaixa (em Nietzsche eleva, mesmo que abra as portas das trevas, não fica é a meio caminho, no banal e irrelevante confortáveis), não avançamos, preferimos os resíduos do passado que já conhecemos. Somos a civilização da ruminação. Queremos futuro, não o nego, mas já não aguentamos os abismos que vêm com ele. Desejamos amanhãs previsíveis, quando eles faltam regressamos ao passado (embora viciados numa ideia ingénua de progresso).

Mas voltar a Steiner não é bem a mesma coisa do que retornar ao conhecido. Com ele, no mínimo, ganhamos balanço para entrarmos com mais força e mais temeridade no desconhecido. Sem muito controlo mas com grande júbilo. E no máximo descobrimos que, afinal, não o tínhamos lido bem, regressamos a ele para descobrir o novo. Até porque, como é tantas vezes evidente, «A leitura nunca é estática. O sentido é sempre móvel.» (Steiner: Antigonas, 245)

Antes de citar a ideia que plagiei involuntariamente, há mais duas notas sobre a arte de levar de um lado para outro o pensamento e a sensibilidade, uma arte (uso o termo «arte» para realçar que não há um método exemplar para o processo de tradução) fundamental para o espírito: «Sem a tradução, as nossas iniciativas de espírito e forma rapidamente se perderiam num regresso à inércia.» (Idem, 246) Primeira nota, «nenhuma tradução é inteiramente comensurável com o original, uma vez que mesmo na mais perfeita tradução há sempre essas linhas quebradiças que afectam o contacto entre a instância da origem e a da receção.» (Idem, 247) Segunda nota, as traduções são «produtos de uma densa herança histórica. Chegam muito depois. Estejam ou não explicitamente conscientes do facto, a acumulação das edições, exegeses, encenações e leituras críticas anteriores age[m] sobre a maneira que é a da sua compreensão.» (Idem, 250-51)

Agora, a ideia plagiada. Steiner começa por dizer que «A grande maioria das traduções são más. São imprecisas, frouxas, redundantes, estilística e conceptualmente deficientes, e complacentes com o erro.» (Idem, 247) Mas o pior está nas traduções maiores, nas palavras de Steiner: «Mais falsa é a tradução “grande” ou “de nível superior” que interpõe a sua fulguração obscura e o seu virtuosismo entre nós próprios e o original.» (Idem, 248) No segundo prefácio a Depois de Babel (1992) inserirá isto no campo mais vasto da «transfiguração», uma «questão moral» decisiva: «em que o peso e a irradiação intrínsecas da tradução eclipsam os da origem». (p. 20)

Assim, o tradutor — de si, do mundo e de livros — trai e recria. A linguagem traduz sempre imperfeitamente, mas é desta imperfeição, e só dela, que emerge o humano.

[1] Depois de Babel. Aspectos da Linguagem e Tradução, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa; Relógio D’Água, 2002 [1975, 1992, 1998], p. 16.
[2] Antígonas. A persistência da lenda de Antígona na literatura, arte e pensamento ocidentais, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Relógio D’Água 1995 [1984].
[3] Acabo de surpreender, no The Guardian, Killian Fox a dizer «I hate Reading books where you find your own opinion confirmed.» A propósito, imagine-se, de um Antigone’s Parallax, livro da filósofa eslovena Alenka Zuancic.

mil pesetas

Para a Jillian Saucier 

1.

mil pesetas
mil pesetas espanholas
qualquer coisa
como seis euros hoje 

2.

o dinheiro é a coisa mais suja do mundo
digo-te eu enquanto atravessamos
aquele parque onde a primavera
parece estar sempre
prestes a começar 

o dinheiro é a coisa
mais limpa do mundo
dizes tu
e lava tudo 

não, é sujo, insisto eu
mesmo ao manusear uma moeda
sabes que ficaste com as mãos sujas
e sempre que uma te cai nas mãos
trocaste por ela qualquer coisa sem preço 

mas pode ser reconhecimento dizes tu
mas pode ser um reconhecimento continuo eu 

mas como reconhecimento
é a coisa mais fria do mundo
a minha primeira moeda
de cem escudos
e a tua primeira nota de um dólar
talvez tenham sido a nossa
primeira lição
em egoísmo e medo de viver 

é belo o dinheiro, dizes tu
faz o mundo girar 

é feio, respondo eu
como fim
e muitas vezes como meio

3.

natalia ginzburg tinha razão
é preciso ensinar as crianças
a ter desprezo pelo dinheiro
ganhá-lo para o gastar
gastá-lo como coisa
muito subserviente
a uma arte de viver 

4.

uma nota de mil pesetas espanholas
com a cara de benito pérez galdós
datada de 1979
impressa em madrid
na misteriosa caixa de dinheiro estrangeiro
da minha mãe
entre algumas libras inglesas
e moedas de um país do leste da europa
difícil de identificar
naquela casa pequeníssima
com um jardim obsessivamente cultivado
onde às vezes as árvores de fruto falhavam
misteriosamente
dionisicamente
dando ou não frutos
consoante assim o entendiam
onde tantas vezes não havia
dinheiro para comer  

e onde ela foi vertiginosamente adoecendo
até ser uma mulher que já não viajava
que acreditava que o mundo
era um lugar que não valia a pena visitar
o sítio onde um filho primogénito talvez
nascido por volta desse ano de 1979
repousa para sempre sem lápide
entre as austeras campas de tijolo
caiado de branco
dos avós e dos tios-avós 

mas também o sítio onde não sei como
três filhas não morreram de fome
e talvez não tenham enlouquecido 

o dinheiro diante da pobreza
devia mesmo ser
como a poesia diante da morte, jillian 

5.

mil pesetas espanholas da década de ‘80
são muito melhores do que mil pesetas espanholas
da década de ‘90 

digo isto apenas
porque acho a cara de benito pérez galdós
que está impressa numa
bastante mais tolerável do que a cara
de hernán cortés na outra 

6.

não sei como se expressava
a soma de mil pesetas espanholas
naqueles dias do final de agosto de 1936
em granada
isto é não sei que notas ou moedas
seriam necessárias para perfazer essa quantia
que no valor relativo de hoje
seria qualquer coisa
como quinze mil euros 

mas tenho a certeza
que isabel roldán
prima de federico garcía-lorca
e que angela cordobilla
a empregada na casa
de manuel fernandéz-montesinos
(cunhado de lorca
executado poucos dias antes dele)
que levou a lorca comida e roupa
todos os dias
enquanto ele esteve preso
no governo civil
se lembrariam 

porque é a soma que ambas recordam
com uma raiva indignada
vir pedida como doação
para a causa nacionalista na carta
que o pai de lorca recebeu
das mãos de um guarda
em calle de san antón
lavrada na letra do filho
que se despede dele com amor 

ian gibson
biógrafo de lorca
especula que quase sem dúvida
foi esta a última coisa
que lorca escreveu neste mundo 

e isabel roldán recorda
como não teve coragem
de dizer ao pai
para não doar aquele dinheiro
porque ela sabia
mas ele ainda não
que aqueles homens
que agora lhe extorquiam doações
três ou quatro dias antes
tinham levado o filho
um pouco para fora da cidade
e entre as oliveiras
em fuente grande
tinham sido eles
quem o tinha assassinado

Oxford, 30 de Julho de 2023

Crítica Cultural

Usarei a enunciação «crítico da cultura» devido à incapacidade (impossibilidade?) de encontrar outro sintagma para definir aqueles que formal ou informalmente diagnosticam, avaliam e propõem uma cura para a cultura (aqui sinónimo de cultura erudita). Seguindo Friedrich Nietzsche, o crítico da cultura será um médico da cultura.

A produção e circulação de informação tem-se deslocado da imprensa, rádio e televisão, com trabalhadores por «conta de outrem», para uma pletórica produção de conteúdos transmitidos, por vezes ao acaso (sem um público-alvo definido), nas redes sociais. Multiplicaram-se, pois, os críticos da cultura, muitos deles com uma produção descontínua, efémera e até única. Mas a disseminação dos críticos e das críticas, num caos que parece criar uma pan-estimulação avassaladora, capaz de sufocar qualquer leitor que arrisque ceder ao apelo deste abismo (vertigem do scrolling), acaba por ser organizada em bolhas. Os grupos de «amigos», «seguidores» e «leitores» selecionam, com critérios que não cabem num pequeno catálogo, os «seus» críticos, que seguem de forma mais ou menos intensa. Há seguidores fanáticos, outros indiferentes, outros escrutinadores, alguns, poucos, por óbvia contradição nos termos e nas atitudes, críticos. Tudo dentro da lógica agónica que compõe uma parcela essencial das redes sociais digitais: os conteúdos devem gerar atração ou aversão, nunca indiferença, e devem fazê-lo em torno de no máximo dez preconceitos.

E o que faz esta legião de críticos da cultura (nos restos de uma pós-modernidade que se quer mais performativa do que explicativa)? Fundamentalmente duas coisas: 1- enaltece e engrandece qualquer acontecimento (cinema, teatro, literatura…) no qual participe, à semelhança de um dos síndromas de férias mais recorrentes: não se diz mal do que experienciamos, pois isso iria desvalorizar-nos; 2- desconsidera quase tudo o que se faz fora do seu círculo existencial, a partir de critérios que não se dão ao trabalho de desocultar, a linguagem é muitas vezes de combate físico e os ataques são sobretudo ad hominem. Estão sedentos do infortúnio dos outros. Esta maledicência seria irrelevante se a imprensa de «referência», a rádio ou a televisão públicas, sobretudo o Canal 2, contrabalançassem este histrionismo, espontaneamente maldoso ou bondoso, com documentos, em vários suportes, que descrevessem e avaliassem, com o devido rigor, atividades e produtos da cultura erudita. Não é o caso, salvo honrosas excepções (Ípsilon, Nada Será como Dante, revista Electra, Pedro Mexia no Expresso, por vezes o Jornal de Letras… esqueço-me certamente de algumas, mas não serão muitas), temos uma incipiente crítica cultural efectiva, talvez também porque a nossa cultura é pouco vibrante e lhe falta um público.

Não me querendo alongar no «falta um público», creio que não temos críticos, a exercer realmente essa tarefa sem os códigos demasiado fenomenológicos (mesmo quando parecem só gostar de hermenêutica) da Universidade, que além de observar e catalogar quisessem também avaliar aquilo que se faz a partir de um patamar que os colocasse ao nível e acima da obra. Ao «nível» para compreender as suas linhas de força próprias. «Acima» para enquadrar a obra no ecossistema de que actualmente faz parte e projetar, com as justas temeridade e ousadia, como visionários, as forças que emergirão no seu ciclo de vida (dependendo tanto de si como dos leitores, de hoje e de amanhã). Bem longe, portanto, de ou fazer um retrato ditirâmbico, ou queimá-la numa fogueira da santa inquisição do gosto subjectivo (redes sociais). Mas evite-se também o rigor mortis (Universidade).

Tal não significa que o mundo da cultura seja o mundo das delícias. O culto ascético da perfeição indispõe os criadores para a fraternidade ou sequer a tolerância do outro, mais azarado ou mais genial. Não há, com as excepções que tantas vezes destroem a beleza dos imperativos categóricos, trabalho colaborativo na cultura erudita, mesmo quando é necessário colaborar para apresentar um produto final (por exemplo, no teatro, ou na música sinfónica). Mesmo se é verdade que a «ansiedade da influência», como a entende Harold Bloom, nos revela que ainda que os criadores desejem ser um «Adão logo pela manhã», «Não pode haver escrita forte, canónica, fora do processo de influência literária.» (O Cânone Ocidental, Temas e Debates, 2012, 20). Certo, mas isto é um processo de apropriação cultural (uso o termo fora do movimento de hipersensibilidade Woke), uma apropriação oportunista, parasitária muitas vezes. E não um processo de colaboração criadora.

Bem sei que Bloom, como qualquer um que se atreva a fazer um cânone artístico, teve uma boa dose de incriminações, que hoje não está sequer no campo do «talvez seja recomendável». Mas ele é um modelo de crítico da cultura. O que fez para a literatura, o estudo denso e profundo de 26 escritores (incluindo Fernando Pessoa, relembre-se), serve de modelo (sendo que um modelo não se imita, inspira-nos) para outras áreas. Não são 26 escritores isolados, apesar de serem únicos, mas que se influenciaram (Shakespeare é a grande fonte, «escreveu a melhor prosa e a melhor poesia da tradição ocidental», idem, 23), muitas vezes agonicamente, de forma que cada um atingisse as suas máximas individualidade e grandeza. Cito-o novamente: «As nossas instituições condenam a competição tanto na literatura como na vida, mas o estético e o agonístico são uma única coisa, como nos é dito por todos os antigos gregos e por Burckhardt e Nietzsche, que recuperaram esta verdade.» (idem, 18). Tentemos fazer um pouco aquilo que ele fez, à nossa medida, a partir dos nossos possíveis (por vezes tão acanhados). 

É verdade que há um conjunto de críticos portugueses que cumprem perfeitamente uma parte do trabalho de Harold Bloom, mas de uma forma ou de outra estão demasiado condicionados por funções e estilos académicos, fazendo avaliações neutras, esgotando-se nas descrições (por mais interessantes que sejam). À medida que o mundo da crítica foi sendo preenchido pelos professores universitários as críticas afastaram-se da vida. Os bisturis analíticos apresentam a cultura, naturalmente orgânica, como pouco vivível para os espectadores. Ainda assim, quero citar alguns, e nem todos cabem na figura do curandeiro desastrado por excesso de diagnóstico: António Guerreiro, Augusto M. Seabra, Eduardo Coelho, Eduardo Lourenço, Jacinto Prado Coelho, João Bénard da Costa, João Barrento, Joaquim Manuel Magalhães, Jorge de Sena, Jorge Leitão Ramos, José Augusto França, Lauro António, Vasco Câmara… [Acrescento sugerido por Tatiana Faia: Agustina Bess-Luís, Rosa Maria Martelo e Maria Irene Ramalho]. [Acrescento meu: José Gil, Diogo Ramada Curto].