Angústia da exactidão

Próxima das neuroses obsessivas, de que todos os génios produtivos sofrem (em graus e intensidades diferentes), a angústia da exactidão alimenta-se de uma profunda paixão pela ordem (feita exclusivamente de leis cósmicas, bem para lá da condição humana), jogo de escrúpulos irrazoáveis, mania de auto-correcção permanente. Creio que todos os grandes criadores, quer se exponham na música, na literatura, na filosofia, na pintura, na dança, ou noutro qualquer exercício de pensamento lógico-criativo (onde se situam também os cientistas inovadores) foram, de uma ou de outra forma, obsessivos e tendencialmente compulsivos. Quando, por exemplo, Lobo Antunes diz que não pode viver sem escrever, mas que demora mais tempo, muito mais, a corrigir do que a criar a primeira versão, vive, à sua medida, na angústia da exactidão.

Mas a patologia é apenas uma possibilidade, embora a mais extrema. Noutros termos, a neurose obsessiva não é necessariamente o culminar de um processo, onde aconteceria a exaustão de um indivíduo. Na verdade, é o produto da obsessão que vai ditar em que campo ela se inscreve, a obsessão é um pharmakon (remédio e veneno). Se a linha de fuga for a física quântica ou um tratado de filosofia medieval, uma sinfonia completa ou uma instalação minimalista plena de mundo, um romance polifónico de 400 páginas..., isto é, se o produto dessa dedicação integral, dessa fidelidade sem fissuras for uma obra que encerra riqueza suficiente para conjurar a extrema focalização do sujeito num processo criativo, então a patologia habitual dos obsessivos – destruidora de afectos, de ligações emotivas e racionais, da lucidez poética inventiva – não emergirá, ou melhor, dificilmente emergirá. Nos génios (chamemos-lhe assim para facilitar) a produção de obras é a cura homeopática dos impulsos obsessivos negativos.

Noutros registos de vida, menos intensivos, sem a força ou a sorte para fazer nascer algo de extraordinário, também existe esta angústia que ensombra com dúvidas (anti-cartesianas) as coisas que vamos fazendo: aquela vírgula mal colocada que potencia insónias; o conceito que escapou à censura lógica e agora corrompe a felicidade que pensávamos retirar do ensaio publicado; a metáfora gasta, vulgarizada que dissemos nunca mais usar mas que se introduziu furtivamente no poema, impossível de rasurar porque outras exactidões seriam destruídas; um personagem, a quem demos a honra de conduzir a história, incapaz de encaixar na narrativa sem minar o equilíbrio perspectivista; uma nota deslocada, dissonante na partitura, que recusa silenciar-se e corrompe a arquitectura melódica; ou o facto, esse velho evangelho da objectividade, cortado pelo relativismo de uma análise incoerente.

Mas também aqui o resultado feliz, num belo produto, das preocupações exageradas transforma o que destrói no que salva e faz crescer, conduz a uma plenitude que jamais será alcançada através dos gestos codificados da vidinha.

II

Há umas semanas lia uma pequena entrevista de Jorge Silva Melo a propósito de O Regresso a Casa de Harol Pinter para o D. Maria II. Aí pronunciava um magnífico elogio aos seus actores, apelidando-os de “actores exactos” (João Perry, Rúben Gomes, Maria João Pinho, Elmano Sancho, João Pedro Mamede e Jorge Silva Melo). Mas aqui percebe-se que não se trata da “angústia da exactidão”, antes do perfeito domínio de uma arte onde se improvisa pelo menos tanto quanto se representa (repetir um modelo, voltar a apresentá-lo). É a exactidão da criação, como quando Gilles Deleuze no diz que o sentido de um acontecimento não o precede, ele surge à medida que o próprio acontecimento se desenrola. Por isso, este pensador francês prefere ao termo “exacto” o de “anexacto”, um outro tipo de rigor: do estilo e do gosto mais do que da adequação entre o empírico e o ideal, o modelo e a cópia. Também Ludwig Wittgenstein quis nas Investigações Filosóficas, com o conceito de “jogos de linguagem”, mostrar que “o significado de uma palavra está no seu uso”. Neste sentido, a verdade de algo resulta do seu funcionamento dentro de um determinado jogo de linguagem (Mendel não podia estar certo mesmo estando-o, porque o jogo de linguagem dominante da sua época não podia aceitar a sua linguagem quase privada sobre a hereditariedade. Que hoje, num volte-face de thriller, é a que domina). Foucault falará ainda mais claramente em “jogos de verdade”, relativizando com isso a exactidão, visto que a verdade é relativa ao que uma época/cultura considera como verdadeiro. Mas talvez seja mais clara ainda a afirmação de Jean-Luc Godard (brilhante Pierrot le fou), cito de memória: “não tenhais ideias justas, mas somente uma ideia”. Como se desconfiasse, até politicamente, da exactidão das ideias, instrumento várias vezes utilizado ao longo da história para impor a servidão, a quem percorreu a via-sacra para as encontrar e a quem as recebe e se vê obrigado a abdicar da liberdade de as recusar, porque, finalmente, sempre são “ideias exactas”.

Tenhamos, pois, uma ideia, anexacta ou rebelde, excêntrica em relação ao nosso verdadeiro, aos jogos de linguagem da opinião, mais ou menos erudita, deixemo-la emergir evitando as angústias estéreis. É que talvez toda a metafísica do mundo se esgote quando acolhemos o sol sentados numa esplanada à beira-mar.

Panta rei

(Poemas de Makki Ahtisaari)

Não não é por amor nem por compaixão
nem sequer por indiferença
que este sol pousa na pedra e no meu corpo
e os aquece a ambos
mas apenas porque
há uma abertura no dossel das árvores
e o planeta está assim alinhado
daqui a pouco a China a Rússia a Carélia
e todas as cidades do mundo e todas as aldeias e
as pessoas que há nessas aldeias
e todas as criaturas da terra em geral
rodarão imperceptivelmente no espaço
e a sombra também
cairá aqui
e portanto tudo procede
com a mesma indistinta
falta de vontade

Delícia de betão

Antes da aula nocturna entrei no bar

No placard havia um anúncio

de uma jovem Engenheira:

Mestre dá explicações de Betão Armado

Tlm: 96 . . . . . .

Mexendo bem o açúcar no café

vi-a espancá-los com delicadeza

em cofragens de latex negro 

com veias de ferro a latejar 

numa mistura tão suave e dura    

          E a minha colher sempre a rodar ... 

K. CANGURU

                                   Vives no desejo de quem te quer: A casa mais ampla: Ainda em expansão.

 

I.

O meu amigo trabalhava na Google, andava num carro a filmar a Austrália. O carro da Google levantava o pó vermelho do deserto e a câmara filmava as nuvens que se formavam; às vezes ia ter com Canguru e lia-lhe “O Principezinho”.

 

II.

 O meu amigo foi apanhado pela policia do deserto a conduzir com álcool no carro da empresa. Prenderam o meu amigo numa prisão do deserto. Depois soltaram o meu amigo e ele foi para o aeroporto. Entrou num avião - O avião foi para a América.

Quando estavam por cima da estátua da Liberdade as hospedeiras disseram para apertarem os cintos e os meninos olharam pela janela para ver a América. Uma rapper feminista de Manhattan despertava e olhava para o avião da janela. Regou as flores enquanto tomava um Nescafé na chávena colorida. Escreveu num guardanapo que “Os sonhos americanos são os mais húmidos”.

 

III.

Canguru sentia-se sozinho no meio da Austrália porque o seu amigo tinha-se ido embora.

Canguru tinha só uma pata porque tinha pisado uma mina com a outra. O meu amigo ligou-lhe a pata doente mas três dias depois o veterinário do deserto cortou-lhe a pata doente. O meu amigo comprou uma pantufa cor-de-rosa e calçou a pantufa ao Canguru. Meteu-lhe algodão dentro das orelhas peludas para não ouvir as explosões. Comprou uns phones cor-de-rosa e felpudos e meteu-os nas orelhas do Canguru, ligou-os a um mp3 e meteu o mp3 na bolsa do Canguru. Meteu também na bolsa do Canguru uma carta de amor de uma antiga namorada de Melbourne, um santinho de Amsterdão, um mapa da Austrália bem dobrado e um girassol que ficava metade de fora. Meteu também um trevo de quatro folhas dentro do “Principezinho” e meteu também “O “Principezinho” dentro do bolso do Canguru – Toma, isto é tudo o que tenho, se te sentires sozinho e com medo, vai a uma estação de serviço e pede a um gasolineiro que te tire do bolso o livro e te leia até não teres mais medo, os gasolineiros quase não têm trabalho, só passa um camião de duas em duas horas, entretanto os gasolineiros dormem e esperam os Cangurus. Lembra-te que a noite já não existe, já sabes que às vezes o céu fica um bocado escuro, acontece todos os dias quando o sol se põe mas não é noite – Disse ao Canguru e foi trabalhar para a ONU. O Canguru saltava com a pantufa e dançava a música que lhe entrava nos phones cor-de-rosa.

Read More

"O homem que acena ao longe"

O homem que acena ao longe
Reconhece a demora e espera
Ainda que veja nada mais além das sombras.
E fala enquanto acena, diz
O que entre riso e memória lhe escapa,
Talvez dor ou sono, homem parado

Longe, insistindo na fragilidade de um gesto
Repetido. E quando fala não lhe escapa
O que pensa: «pode a morte resvalar
Para mais tarde, mais fundo, revelar-se
Teatro na cave do mundo, cena
No escuro, longe do centro?»